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Ciclo do Componente Lexical: do regular à imprevisibilidade

O léxico ocupa destacado papel na tradição estruturalista que Saussure principia. Dentro do estudo da língua-objeto, o signo linguístico, formado da composição entre significante e significado, é tomado como arbitrário e estruturado, sistemático e linear. Com isso, um componente lexical articulado entra no escopo da visão de língua enquanto sistema no qual, segundo Saussure, o signo linguístico não existe por relações externas à língua, mas pela relação de oposição que mantém com os demais signos linguísticos. Em ambas as faces da palavra, como forma ou substância, “[...] a língua não comporta nem ideias nem sons preexistentes ao sistema linguístico, mas somente

diferenças conceituais e diferenças fônicas resultantes desse sistema.” (SAUSSURE, 1960, p. 139).

Assim, os signos atingem existência real dentro do sistema linguístico porque entram em relação de oposição com os demais signos. Por essa relação dissociativa, estabelecem-se as noções de valor que os termos assumem dentro de um sistema de valores. O que o pensamento saussuriano põe em evidência para o léxico, então, são duas instâncias de estruturação: primeiro, o signo se define pela relação significante/significado, depois, essa relação se define por contrastar com outras relações de mesmo tipo, estabelecidas na constituição de outros signos.

No funcionamento das regras da língua, o sistema de signos, o léxico, resulta de um conjunto de relações responsável por fazer da língua um equilíbrio de termos complexos que se condicionam reciprocamente. Assumir, no âmbito dos estudos saussurianos, que o componente lexical é estruturado e sistemático, significa considerar sistematizadora a concepção que o autor adota para a vinculação entre signos – por relações sintagmáticas (alinhamento de signos na cadeia da fala que se apoia na extensão sentencial) e por relações associativas paradigmáticas (formação de grupos de signos por associação mental, fora do discurso, na memória). Assim, nos jogos de linguagem, o modo de compreensão das unidades linguísticas é duplamente articulado e o conjunto de relações estruturais mantidas entre essas unidades, pode-se pensar, chega a ser mais relevante que elas próprias. (ILARI, 2004, p. 64).

No estruturalismo de vertente americana, diferentemente do que se pode encontrar no Curso de Linguística Geral de Saussure, a orientação para o desenvolvimento científico da linguagem não incluía o estudo do sentido. Bloomfield, para quem o sentido fazia parte unicamente de processos mentais individuais, sustentava que apenas após ter sido encerrada uma completa e exaustiva descrição dos aspectos físicos do mundo seria possível realizar alguma investigação semântica. (ILARI, 2004, p. 79-80). Para Bloomfield e seguidores, as categorias mentais e conceituais eram um desafio à análise gramatical de línguas particulares que, naquela época, ainda eram totalmente desconhecidas. Esse procedimento behaviorista de análise desencadeou, a princípio, a redução mínima da semântica a relações entre estímulos físicos e verbais, e desenvolveu-se até o ponto de sua extinção dos padrões de análise pautados exclusivamente nos níveis fonológico e morfológico – considerando-se que muito pouco se fez pela sintaxe (WEEDWOOD, 2002, p. 131). Foram significativas as consequências da

[...] adoção da teoria behaviorista da semântica, segundo a qual o significado é simplesmente a relação entre um estímulo e a reação verbal. [...] era preferível, tanto quanto possível, evitar basear a análise gramatical de uma língua em considerações semânticas [...]. Assim, um dos aspectos mais característicos do estruturalismo americano pós-bloomfieldiano foi seu completo desprezo pela semântica. (ibidem, p. 131). A atenção estrutural, centrada sobremaneira em aspetos formais morfológicos e fonológicos das línguas descritas pelos estruturalistas americanos, fez com que Bloomfield definisse o léxico, em parte, como a totalidade do conjunto de morfemas (formas mínimas resultantes da associação de fonemas) de uma língua, enfatizando no componente lexical o que era concreto e, portanto, estava exposto à observação do pesquisador. O estudo de unidades linguísticas maiores ficou prejudicado pela falta de definições claras que se pudessem construir a partir da observação dos dados em corpus. A significação, dentro de um modelo teórico que desejava a clareza e a segurança das respostas visíveis, era um ameaçador conjunto de estruturas mentais não-objetivas indesejáveis.

Tratar como lista de irregularidades básicas o que escapava às generalizações foi, portanto, a alternativa encontrada pelos estruturalistas americanos para solucionar a questão do léxico e dar o formato de lista aos itens cujas propriedades distribucionais não eram aparentes. Em contraponto, estudos lexicalistas posteriores observaram que há um considerável grau de idiossincrasia afetando o conhecimento que qualquer falante tem sobre o léxico de sua língua, contudo, a opção teórica de deixar no léxico apenas o que é irregular e idiossincrático não se sustentou, uma vez que não se podem negar os aspectos de regularidade do conhecimento que os falantes têm das palavras.

Nos estudos gerativistas, que tiveram especial expressividade para as pesquisas linguísticas da segunda metade do séc. XX, o componente gramatical de base é o sintático, no qual se concentra todo o potencial gerativo das representações. Nesse modelo, o componente semântico e o componente fonológico são considerados níveis interpretativos e o componente lexical, em consonância com os estudos estruturalistas bloomfieldianos, é formado por um conjunto de itens linguísticos cuja organização ocorre por lista (BORGES NETO, 2004, p. 113). Essa opção de estudo tem a consequência imediata de resultar na

avaliação da sintaxe como um paradigma fechado, se contrastado com o léxico, por exemplo, avaliado como um paradigma aberto em que se depositam itens ainda sem gramática, pois estão apenas estocados, não entram em relação nem possuem função (PEREIRA, 2000).

Em outros termos, dentro do aparato gerativo chomskyano, o léxico da língua é um conjunto de itens lexicais armazenados e não relacionados e reduz-se à função de inserir, nas estruturas de base transformacionais geradas no nível sintático, os termos necessários ao preenchimento das estruturas linguísticas que geram sentenças. Em uma das interpretações possíveis para esse esquema, detalhadamente apresentado em Chomsky (1965), o léxico funciona como um mecanismo alimentador de base, que fornece ao aparato formal abstrato da sintaxe o material linguístico necessário à constituição das sentenças (exceção clara nessa linha teórica são os trabalhos em morfologia distribuída, para os quais o léxico é componente da gramática).

No desenvolvimento da teoria gerativa, cf. aponta Borges Neto (2004, p. 115), essa visão do componente lexical é revista e alterada, à medida que os itens lexicais passam a ser tratados como feixes de traços e que muitos fenômenos antes explicados exclusivamente por regras transformacionais passam a ser considerados como resultantes de relações lexicais. O que Borges Neto não avalia é a representatividade dessas relações que começam a ser consideradas no plano lexical. Apesar da reformulação do papel do léxico na teoria gerativa, os fenômenos linguísticos reservados às relações lexicais são aqueles que não se pôde explicar por regras sintáticas e que no léxico, ainda desprovido de gramática, perpetuam a prática de lista de irregularidades. Pela definição apresentada por Raposo (1992, p. 89), o léxico é exposto como “[...] o dicionário da gramática: as regras desta manipulam os itens lexicais, fazendo um uso crucial da informação aí contida.”. O autor também afirma que, no léxico, estão guardadas tanto as propriedades gerais responsáveis pela identificação de classes quanto aquelas propriedades idiossincráticas que identificam itens singulares ou mesmo um pequeno conjunto de itens da língua. O que se deve destacar sobre esses dois grupos de propriedades que Raposo aponta é o fato de eles serem considerados como não-regulares, i.e., como “[...] propriedades dos itens lexicais que não podem ser derivadas a partir das regras da gramática.” (RAPOSO, 1992, p. 89), ou seja, são arbitrariedades estocadas.

No cenário linguístico atual, a concepção, tradicionalmente difundida desde Bloomfield, de que o léxico é uma lista de irregularidades e serve de depositório a um conjunto de idiossincrasias é

questionada em trabalhos como Bresnan (2001), Pustejovsky (1995) e Levin e Rappaport-Hovav (1995), os quais argumentam em favor da descrição das regularidades lexicais, de sua organização e de seu funcionamento, discutindo os reflexos das regras lexicais na sintaxe da língua. O que emergiu desses recentes estudos foi a consideração de que os falantes dispõem de um conhecimento tácito que lhes permite relacionar propriedades semânticas e propriedades sintáticas das palavras. Esse conhecimento pode ser generalizado e descrito por meio da criação de classes de palavras que mantenham entre si tanto proximidade de significado quanto de comportamento sintático.