• Nenhum resultado encontrado

De acordo com a tradição de estudos gramaticais17, a transitividade foi empregada para classificação dos verbos em pelo menos cinco classes distintas, definidas de acordo com a seleção de objeto direto: verbos transitivos diretos, transitivos indiretos, bitransitivos (diretos e indiretos), intransitivos e de ligação. A oposição entre verbo transitivo e intransitivo ilustra com clareza a aplicação e a ineficiência desses critérios. No âmbito das teorias tradicionais de gramática, é chamado transitivo o verbo que exige objeto direto e intransitivo o verbo que recusa objeto direto – caso haja regência de preposição, o objeto é indireto e, nessas ocorrências, a transitividade também; caso o verbo selecione dois objetos, um regido por preposição e outro não, classifica-se como bitransitivo; caso o verbo não seja de “sentido pleno” e tenha valor relacional, ligando o sujeito ao predicativo e servindo se suporte às categorias gramaticais expressas pelas desinências, classifica-se como de ligação.

Uma crítica direta à definição tradicional de verbo transitivo e de verbo intransitivo pode ser feita com base na variação de transitividade de muitos predicadores verbais. Há verbos, como fazer, que sempre ocorrerão na presença de objeto, para os quais a definição de verbo transitivo se aplica sem restrições. Há verbos, como nascer, que sempre rejeitarão a presença de objeto, e para esses a definição de verbo intransitivo se aplica sem restrições. O problema está na oscilação de transitividade de um grande conjunto de verbos do português, que pode ser ilustrada com o emprego de ler e morrer. O primeiro, embora chamado verbo transitivo, frequentemente é empregado

intransitivamente (cf. (3.2a)); o segundo, embora chamado verbo intransitivo, pode ser empregado transitivamente (cf. (3.2b)):

3.2 (a) Alunos de Letras lêem pouco. (b) O pai morreu uma morte tranquila.

Segundo Perini (2000, p. 162), uma solução de recorrência para o problema de classificação da transitividade verbal exemplificado em (3.2) é afirmar que a transitividade não seria uma propriedade dos verbos, mas de contextos de uso ou de verbos em contexto de uso. Para o autor, essa posição implica o esvaziamento da noção de transitividade, uma vez que passaria a ser uma categoria gramatical supérflua. Entre seus argumentos, Perini considera que as categorias transitivo e intransitivo já não poderiam ser aplicadas aos verbos fora de contexto, tal como estão no léxico. Essa posição viola a definição tradicional, para a qual transitivo é o verbo que exige objeto direto (não o que oscila na seleção) e cria uma equivalência semântica entre ser transitivo e ocorrer com objeto direto, uma vez que dela decorreria, p.ex., a classificação de ler como transitivo quando ocorresse com o objeto e intransitivo quando ocorresse sem o objeto. Nesse caso, “[…] a noção de ‘transitivo’ deixaria de ser útil, pois não faria mais que repetir a informação já dada pela expressão menos misteriosa ‘que tem objeto direto’.” (ibidem, p. 163).

Com base em propriedades paradigmáticas dos predicadores verbais, Perini (2000) avalia, é possível que se depreendam generalizações vindas do comportamento geral das unidades linguísticas, pautadas, logicamente, nas ocorrências sintagmáticas. Em vez de se fundamentar o critério de definição da transitividade exclusivamente no contexto ou na exigência e na recusa de objeto direto, Perini amplia a descrição da transitividade em termos de exigência, recusa e aceitação livre de objeto, o que inclui na descrição gramatical a robusta lista de verbos que oscila quanto à transitividade (ler, comer, entre outros que somados chegam a 58% dos verbos do português, segundo o autor). Também as funções sintáticas relevantes para a definição das classes verbais são ampliadas. Enquanto a gramática tradicional destacava as funções de objeto direto, objeto indireto e predicativo do sujeito, estudos recentes avaliam que as quatro funções relevantes para o estabelecimento da transitividade são objeto direto, complemento do predicado (basicamente o predicativo do sujeito), predicativo (basicamente o predicativo do objeto) e adjunto circunstancial (que inclui objeto indireto e outros casos).

Uma consequência indesejável dessa multiplicação de funções sintáticas e de propriedades relevantes para o estabelecimento da transitividade verbal é a profusão de classes. Da aplicação dos critérios essencialmente sintáticos empregados por Perini (2000, p. 167) resultam onze classes verbais18, e não mais cinco, conforme prega a tradição gramatical. Para o autor, embora seja nítido o aumento de complexidade na classificação do fenômeno, a ampliação de classes é um mal necessário, já que o próprio fenômeno linguístico da transitividade verbal envolve fatos complexos. Ainda que se reconheça a necessidade de desenvolvimento de um estudo linguístico sobre transitividade que efetivamente dê conta de explicar o comportamento dos verbos do português, essa questão não será discutida a fundo aqui, pois está além dos objetivos de estudo.

Neste trabalho, a transitividade será tratada como propriedade básica dos predicadores verbais, em conformidade com Perini (2000), mas, diferentemente desse autor, será mantida a divisão primária entre transitivos e intransitivos (que não corresponde à classificação tradicional), mesmo que isso signifique ignorar a existência de uma série de problemas. Esse procedimento é suficiente para o estudo proposto para as duas instâncias de alternância causativo-incoativa de predicadores verbais, uma cujo predicador é um verbo inacusativo e outra cujo predicador é um verbo inergativo.

Primeiramente, porque será assumida a proposta de Levin e Rappaport-Hovav (1995), detalhada ainda neste capítulo, que considera os inacusativos como verbos primitivamente transitivos em função de grande parte dos membros da classe dos inacusativos apresentar menor grau de restrição para a seleção do argumento em posição de objeto da contraparte transitiva, na qual a expressão linguística do evento embute a relação entre dois dos argumentos semânticos do verbo, um desencadeador e o outro, afetado. Depois, Pustejovsky (1995) assume tratamento semelhante ao prever, na matriz lexical de verbos do tipo de

18 Perini (2000, p. 166) apresenta as onze classes sob o rótulo de matrizes de transitividade

verbal e as apresenta acompanhadas do percentual de verbos que se enquadram em cada matriz: I. [L-OD, L-AC, Rec-Pv, Rec-CP] (57,6%): comer; II. [Ex-OD, L-AC, Rec-Pv, Rec- CP] (22,3%): encontrar; III. [Rec-OD, L-AC, Rec-Pv, Rec-CP] (5,1%): acontecer; IV. [Rec- OD, Ex-AC, Rec-Pv, Rec-CP] (3,7%): morar; V. [Ex-OD, Ex-AC, Rec-Pv, Rec-CP] (2,1%): acostumar; VI. [Ex-OD, L-AC, L-Pv, Rec-CP] (1,3%): considerar; VII. [L-OD, L-AC, L-Pv, L-CP] (0,7%): julgar; VIII. [L-OD, L-AC, Rec-Pv, L-CP] (0,6%): permanecer; IX. [Ex-(OD v AC), Rec-Pv, Rec-CP] (5,2%): lembrar; X. [Ex-(CP v AC), Rec-OD, Rec-Pv] (0,7%): estar; XI. [Ex-(CP v PV), Ex-OD, L-AC] (0,7%): sentir. LEGENDA: Ex (exige), L (aceitação livre), Rec (recusa), OD (objeto direto), AC (adjunto circunstancial), Pv (predicativo), CP (complemento do predicado), CP v AC (‘v’ indica alternância entre as funções).

quebrar, a estrutura biargumental, em que a relação com o quale agentivo e o evento processo desencadeia a realização transitiva do predicador com agente e paciente, e a relação com o quale formal e o evento de mudança de estado desencadeia a realização incoativa com expressão do argumento afetado.

Já verbos inergativos, chamados intransitivos puros na definição de Keyser e Roeper (1984), que constituem a outra instância de alternância causativa, serão tratados como verbos primitivamente intransitivos, também de acordo com critérios estabelecidos em Levin e Rappaport-Hovav (1995), e explicitados a seguir. Similarmente, Pustejovsky (1995) corrobora essa definição. O autor prevê, na matriz lexical de verbos como correr, um argumento cuja expressão linguística resulta da interação entre um evento de atividade e o quale agentivo. Sendo assim, enquanto inacusativos possuem uma estrutura argumental complexa (de dois argumentos) e a realização transitiva potencializada, inergativos possuem estrutura argumental simplificada e a realização transitiva condicionada a fatores tão restritivos que se torna possível afirmar que a forma transitiva não pode ser a forma básica para estes predicadores verbais, mas a intransitiva.

3.3 Caracterização dos Predicadores Alternantes: distinção entre