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Para melhor compreender os desdobramentos de uma política curricular voltada para a diversidade e diferença, no contexto da educação matemática, partimos da abordagem do

ciclo de políticas proposto por Stephen Ball (2001). O autor identifica três contextos

primários nos quais se constroem as arenas de ação, públicas ou privadas, e que constituem o ciclo contínuo das políticas: o contexto de influência, o contexto de produção do texto, e o contexto da prática (BALL apud LOPES, 2004, p. 112). Por esta primeira formulação, Ball (apud LOPES, 2004, p. 112) os caracterizou do seguinte modo:

a) contexto de influência, onde normalmente as definições políticas são iniciadas e os discursos políticos são construídos; onde acontecem as disputas entre quem influencia a definição das finalidades sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam nesse contexto as redes sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das agências multilaterais, dos governos de outros países cujas políticas são referência para o país em questão; b) contexto de produção dos

textos das definições políticas, o poder central propriamente dito, que

mantém uma associação estreita com o primeiro contexto; e c) contexto da

prática, onde as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas.

Esses três contextos, na visão do autor, não são independentes e sofrem influências mútuas, posto que “os profissionais que atuam nas escolas não são totalmente excluídos do processo de formulação ou implementação de políticas” (apud MAINARDES, 2006, p. 50). Os textos políticos, que representam as políticas, não são sempre coerentes entre si e nem sempre denotam clareza de proposições, podendo inclusive revelar contradições ou diversidade de significações de certos termos-chave. Por consequência, na arena da prática, os sujeitos da escola assumem um papel ativo, num processo de reinterpretação das políticas que recria e resiste às mudanças políticas.

Posteriormente, em 1994, Ball (apud MAINARDES, 2006, p. 54) expande sua visão do ciclo de políticas incluindo outros dois contextos: o contexto dos resultados/efeitos e o contexto da estratégia política.

O quarto contexto do ciclo de políticas – o contexto dos resultados ou efeitos – preocupa-se com questões de justiça, igualdade e liberdade individual. A ideia de que as políticas têm efeitos, em vez de simplesmente resultados, é considerada mais apropriada. Nesse contexto, as políticas deveriam ser analisadas em termos do seu impacto e das interações com desigualdades existentes. [...]

O contexto de estratégia política envolve a identificação de um conjunto de atividades sociais e políticas que seriam necessárias para lidar com as desigualdades criadas ou reproduzidas pela política investigada.

Essa perspectiva nos fornece um referencial analítico útil para uma interpretação das políticas curriculares e revela a dificuldade de se buscar uma compreensão plena de todo este ciclo que envolve a constituição de uma política, o que nos leva a uma seleção dos contextos que podem ser abordados a partir dos interesses e objetivos desta pesquisa, no caso, os contexto da prática e da produção do texto. Tal perspectiva leva em conta a análise de Mainardes (2006, p. 49) ao indicar que a abordagem do ciclo de políticas evidencia a natureza complexa, dialética, multifacetada e controversa da política educacional, que deve ser analisada em uma articulação entre processos micropolíticos, pela a ação dos profissionais que lidam com as políticas no nível local e pelos macroprocessos das políticas educacionais. Nas palavras do autor,

Esta divisão sugere-nos que a análise de uma política deve envolver o exame (a) das várias facetas e dimensões de uma política e suas implicações (por exemplo, a análise das mudanças e do impacto em/sobre currículo, pedagogia, avaliação e organização) e (b) das interfaces da política com outras políticas setoriais e com o conjunto das políticas. Isso sugere ainda a necessidade de que as políticas locais ou as amostras de pesquisas sejam tomadas apenas como ponto de partida para a análise de questões mais amplas da política. (MAINARDES, 2006, p. 54-5)

Esta perspectiva dialoga com os fundamentos da sociologia pragmática ao tratar das relações entre o macro e o microcontexto na análise dos problemas sociais. Para Mainardes (2006, p. 60), o contexto da prática exige a análise de como a política é reinterpretada pelos profissionais que atuam no nível micro, bem como a análise das relações de poder e das resistências. Nesse sentido, é preciso diversificar os procedimentos para coleta de dados, considerando elementos como os descritos a seguir.

Tanto no contexto macro quanto no micro, as relações de poder são particularmente significativas para se entender a política ou o programa. A atividade micropolítica pode ser identificada por meio da observação de

conflitos, do estilo das negociações durante o processo decisório, das restrições colocadas sobre as questões a serem discutidas e decididas, bem como por meio da identificação de estratégias, influências e interesses empregados nos diferentes contextos e momentos do ciclo de políticas. (MARINARDES, 2006, p. 60)

Portanto, para uma análise do contexto da produção de texto e das marcas da macropolítica, optamos por selecionar documentos representativos destas políticas, por seus efeitos e implicações para a sala de aula de matemática. Desse modo, elegemos como objeto de análise das políticas curriculares voltadas para a questão da diversidade no contexto do debate sobre o ensino de matemática dois contextos do ciclo de políticas que interessam a esta pesquisa: o contexto de produção dos textos, que leva em conta diretrizes, leis e documentos curriculares que sustentam as chamadas políticas da diversidade; e o contexto da prática, por meio estudo etnográfico em uma escola que privilegia o tratamento da diversidade em sua proposta curricular.

Assim, alimentamo-nos dos questionamentos apresentados por Lopes (2004) a respeito da separação entre propostas e sua implementação e sobre o processo de elaboração dos textos das políticas e suas reinterpretações:

[...] a prática não é apenas uma caixa de ressonância das definições oficiais, nem tampouco é um espaço autônomo que constrói sentidos para o currículo, a despeito das ações dos governantes. O contexto da prática é efetivamente produtor de sentidos para as políticas de currículo, reinterpretando definições curriculares oficiais e vendo suas práticas e textos serem reinterpretados por essas mesmas definições. Diferentemente de um modelo vertical e hierarquizado entre definição de curriculares oficiais e prática, penso com Stephen Ball em um ciclo de políticas no qual se desenvolve uma circularidade de discursos continuamente reinterpretados.

Este questionamento sobre uma visão verticalizante e hierarquizada das políticas curriculares, numa perspectiva top down, de cima para baixo, tem sido também problematizada pelos estudos de Valle e Santos (2018), Fanizzi (2015; 2018) e Lopes (2005; 2006) que procuram analisar o modo de produção curricular a partir do contexto da prática, considerando assim uma perspectiva bottom up (de baixo para cima). Tal debate alia-se a outros movimentos, como a campanha “Aqui já tem Currículo: o que criamos na escola”10

lançada em 2016 pela Anped a fim de fazer “circular por todo o Brasil vozes que narrem experiências curriculares já desenvolvidas”, no sentido de valorização destas práticas em contraposição à proposta de uma Base Nacional Comum Curricular obrigatória.

10

Disponível em: <http://www.anped.org.br/news/anped-lanca-campanha-aqui-ja-tem-curriculo-o-que-criamos- na-escola>. Acesso em: 1 jun. 2019.

Por esta perspectiva, Fanizzi (2018, p. 131) propõe uma relativização dos conceitos global e local:

Embora existam, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), mais recentemente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e propostas curriculares estaduais e municipais, uma escola de determinado município de um estado qualquer pode definir suas ações de acordo com princípios pedagógicos que lhe são próprios. Nesse sentido, os conceitos global e local podem ser redimensionados e compreendidos de acordo com o contexto de análise. Ora global pode significar mundial ou universal, ora pode referir-se a políticas públicas nacionais ou à macrodimensão de uma secretaria estadual ou municipal de Educação. O mesmo ocorre com o contexto local, que pode, por exemplo, corresponder a práticas educacionais de uma nação – quando a dimensão global se refere ao contexto mundial –, de um município ou da realidade de instituições escolares.

Desta perspectiva, é possível avançar na dicotomização entre local e global, ao admitir que o processo de articulação entre tais dimensões, na produção e prática curricular é inevitável, e desse modo, a adoção dos conceitos de hibridização e recontextualização como categorias de análise das políticas educacionais tem se mostrado como caminho alternativa a este debate. Ao colocar em questão a concepção da centralidade do Estado na produção das políticas curriculares, destaca-se o discurso da performatividade e da cultura comum.

Diante desta análise, Ball e Mainardes (2011) critica a existencia de certo “a- historicismo”, no sentido temporal, que coloca em xeque o status de achados e conclusões de estudos que acabam limitados a um momento específico, sem uma análise mais longitudinal dos processos de reforma e mudança. No sentido do espaço, critica também pesquisas que não possuem sentido de lugar, ou seja, “não localizam as políticas em algum quadro que ultrapasse o nível nacional nem conseguem dar uma explicação analítica ou conduzir a um sentido de localidade nas análises das realizações políticas” (BALL e MAINARDES, 2011, p. 40). Desse modo, o autor apoia-se em Popkewitz para defender uma “internacionalização particular das ideias”, assim como uma “reflexividade ‘nacional’ particular”. Outro aspecto relativo ao espaço é a defesa do autor de estudos que identifiquem características locais significantes na realização das políticas, pois constata-se o fato de que grande parte das pesquisas “desloca escolas e salas de aula de seu ambiente físico e cultural”, fazendo-as parecer iguais. Há portanto, uma omissão das pesquisas sobre política em conduzir um sentido de “região, comunidade ou lugar”, e recomenda-se, assim, outra perspectiva que permita ir além de uma descrição empírica, no sentido de buscar uma teorização (BALL e MAINARDES, 2011, p. 41).

Consideramos, assim, a partir da sociologia das políticas educacionais de Ball, uma análise crítica da pesquisa educacional que permita aproximar seu pensamento aos pressupostos da sociologia pragmática, reforçando a impossibilidade de tratar de modo desconectado certas dimensões na análise das políticas, como as marcas espaciais, de tempo, o papel dos atores, o significado das ações dos atores, as relaçõs de poder e os interesses que movimentam tanto as políticas quanto a ação dos atores.

Nessa articulação entre as macropolíticas e a ação dos sujeitos no contexto local, procuramos, aqui, analisar o efeito das “políticas da diversidade” no campo educacional e seus efeitos na prática, com recorte para uma análise do currículo de matemática. Assume-se, deste modo, uma discussão curricular que reconhece a influência dos macro e microcontextos nas políticas públicas educacionais identificando espaços de influência, reinterpretação, recriação e resistência inseridos num ciclo mais amplo da política educacional.