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12. Partir e Regressar

12.1. Gênero

Como descrevemos até aqui, depois da chegada e permanência nesta temporada de Cieja, aos poucos foi chegando o momento da partida. Neste período de Cieja, almoçava às vezes em um restaurante bem pequeno de Maria Arlete Nascimento, que descobri depois ser ex-aluna do Cieja e mãe de uma aluna com síndrome de down, que estudava no Cieja. Arlete contou-me sobre sua trajetória escolar no Cieja, que infelizmente foi interrompida antes de se formar por razões da vida e da própria escola, em momentos de um Cieja menos acolhedor do que o que eu encontrei durante a pesquisa. O relato de Arlete revela as questões de gênero que afetam outras personagens comuns no Cieja.

Arlete

Arlete - Eu nasci no Ceará, vim pra cá com 13 anos de idade e estou aqui até hoje. Hoje eu estou com 48 anos, vou fazer 49 e estou aqui até hoje, distante da família, contato muito pouco com a família ... Quando eu cheguei em São Paulo eu não sabia ler, nem escrever, logo em seguida, com 13-14 anos eu engravidei, tive meu primeiro filho, aí eu fui prá lá, ...

Pesquisadora - Voltou pra lá?

Arlete – É.. Fui ter o nenem lá. Aí o nenem nasceu morto, e eu fiquei na minha mãe e só voltei de novo com 17. E minha filha com 4 ou 5 dias, não lembro bem exatamente.. Voltei pra São Paulo e tó aqui até hoje né... criando ela. Fui casada, depois meu marido morreu, eu sou viúva, meu marido morreu e eu fiquei com ela.

Pesquisadora - Que idade ela tá agora?

Arlete - Ela tá com 31. ... Depois de um tempo eu arrumei um outro paquera e to com ele até hoje, mas é paquera né. Cada um na sua casa. (risos)

Pesquisadora - E você entao só tem uma filha, que estuda aqui? Arlete - Estuda aqui no Cieja.

Pesquisadora - E a sua filha ela tem uma deficiência né?

Arlete - Minha filha ela nasceu com Síndrome de Down. Ela tem os limites dela, né? E assim, quando ela nasceu ela nasceu com uma dificuldade de visão. Ela nasceu ela já tinha 4 graus de miopia, e isso so foi aumentando, e hoje ela tem seratocone, .com 15 anos ela perdeu o olho esquerdo. Agora com 23 anos ela também tem hora que os médicos falam que ela enxerga cino por cento no olho direito e ... ta aí...

Pesquisadora - Ta aqui... e... ela gosta do Cieja?

Arlete - Ela gosta muuuuito aqui da escola. A escola é a vida pra ela. Pesquisadora - Bom você tem um restaurante, você cozinha...

Arlete - Sim... Eu trabalhei 28 anos na cozinha. Sempre trabalhei muito com três empregos. Eu trabalhava desde as seis horas da manhã e ia chegar em casa uma hora da manhã.

Pesquisadora - E a Roberta ficava com quem?

Arlete - Tinha umas escolas, no começo era berçário, depois foi escolhinha, depois foi a escola normal. Ela ficou no Gepeto, depois ela saiu de lá com 15 anos...

Pesquisadora - Você praticamente criou ela sozinha?

Arlete - O pai dela faleceu há muito tempo, eu já não lembro, mas a Roberta era muito pequena, eu sempre criei a minha filha sozinha. Porque quando ele morava comigo, nos casamos e tudo mais, só não casei no civil porque não tinha idade. Mas eu casei na igreja, com 14 anos, me lembro disso muito bem, meu pai fez o casamento, que era com o filho do compadre que eu tinha que casar.

Pesquisadora - Então, como que foi essa volta para o Cieja, você é uma ex-aluna né, por isso também a gente está te entrevistando. Por que que você resolveu voltar a estudar?

Arlete - Então, quando eu morava com o meu primeiro marido ele não deixava eu estudar. Depois que ele faleceu, por muito tempo eu tirava um pouquinho do tempo, pedia pra patroa pra entrar mais tarde, porque são só duas horas e pouco aqui né? ... Eu entrava às seis e saía quinze pras oito. Na verdade eu não entrava às 6 horas, eu sempre chegava atrasada pedia desculpa para professora..., mas vinha. E aí foi muitos anos...

Pesquisadora - E por que que você quis voltar a estudar?

Arlete - Ah porque é muito difícil, você está numa cidade grande, sem saber de nada, tipo você vai pegar um ônibus, você tem que pedir para aquela pessoa que está do teu lado: “- quando vier o ônibus tal você pode falar para mim?”

Pesquisadora - Você reconhecia números? Arlete - Não, nada;

Pesquisadora - E dinheiro? como você fazia?

Arlete - Dinheiro eu conhecia, é fácil. Eu conhecia porque tem vários desenhos. Tanto que hoje eu falo que a garopa, que é o cem reais, eu conheço tudo, eu falo opa estou recebendo uma onça...Eu tenho aquelas imagens... Imaginações láaaa detrás do dinheiro, que eu conhecia por causa do desenho. Fui aprendendo a lidar com o dinheiro, mas assim sem saber o valor que tinha o dinheiro, eu não conhecia os números.. sei lá 2 reais, dois centavos, sabe aquela coisa?... E aí eu fui tendo esta noção. ...E a volta para escola... é que eu ficava muito tempo no ponto de ônibus,e se eu chegasse no ponto antes tinha muita gente ali... Eu falava assim você pode falar para mim quando vem ... tal ônibus? ... E o ônibus da pessoa vem primeiro que o meu... Eu ficava... Eu tinha que esperar ou outra pessoa chegar para eu pedir um favor para ela para me falar qual era o ônibus. Eu me perdi muito aqui em São Paulo... Eu já chorei muito aqui em São Paulo... Eu tenho uma coisa que nunca saiu da minha cabeça... Eu já caí dentro de fossa...Andando na rua tentando acertar caminho estava chovendo... Minha filha ficou internada um mês, bebezinho, lá no Hospital das Clínicas, ela teve erisipela, .... Eu tava lá e eu não conseguia vir para casa porque todo mundo chegava no ponto para pegar o seu ônibus mas... Eu resolvi descer lá da Doutor Arnaldo, eu tive que vir de lá até aqui, levei 3 horas para chegar, porque eu não sabia o nome do ônibus, eu não tinha como pegar o ônibus. E todo mundo que pegava no ponto... ia embora e eu ia ficando. E eu tive que voltar para casa, fazia uns três dias que eu estava lá sem banho tem comida sem escova sem higiene nenhuma... Pesquisadora - Então voltar para escola era uma sobrevivência? Uma necessidade?

Arlete - Isso, eu sentia que tudo aqui nessa cidade você tem que saber. Você tem que saber porque se você não sabe você sofre demais.. Aí foi o momento que eu falei vou estudar. Pesquisadora - E você soube do cieja porque era do lado da sua casa?

Arlete – É, na verdade, eu tenho quase certeza ... por que faz muitos anos... eu tenho quase certeza que aqui era o jornal do Cambuci. E eu tinha um patrão que trabalhava aqui. E eu vinha deixar marmita para ele. Aí teve a mudança, eu não sei como foi e passou a ser uma escola. Ele falou para mim: “ – Olha, lá vai ser uma escola de alfabetização, ele falava isso para mim, “– de adulto, por que que você não vai estudar se você tem tanta vontade?” E esse patrão, ele falava assim para mim: “– que letra que é essa? que letra que é aquela? Olha você está quase sabendo ler! Vai olhando... Olha nas placas.. Que vai ser fácil, você é uma menina que é muito esforçada...” E aquilo foi me animando. E aí eu vim até aqui e quando eu cheguei aqui não tinha ninguém na escola... essas carteiras ...ainda não era assim. Era de braço. ... Essa sala não tinha, era só uma ou duas não tinha tanto assim. E a gente ficava pela lida da apostila. Eu não sabia de nada... Enfim, aí vai chegando um colega vai chegando outro, tem uns que sabe mais outros que sabe menos...

Pesquisadora - Você disse que naquela época não tinha tanto professor, né? Era apostila e você tinha que se virar ali... E você não sabia ler... E algumas pessoas iam se ajudando... Arlete - Isso mesmo. Aí a pessoa que veio comigo, que era minha vizinha, já até faleceu já...Ela sabia já mais do que eu, a gente ia se ajudando, em casa a gente se ajudava, quando a gente tinha um tempo, então foi muito difícil... Eu sempre tive o sonho assim de aprender a ler e escrever pra eu fazer um livro da minha historia pra deixar guardado em casa porque pensa num ser humano que tem muita coisa... Eu falo pras meninas, dava umas cem folhas, ou mais, da minha história...

Arlete conta em sua entrevista que, embora tenha praticamente concluído quase todas as disciplinas na época do Cieja, acabou não conseguindo concluir a etapa do ensino fundamental, e hoje, em razão de outras demandas da vida, incluindo o acompanhamento de sua filha já não tem conseguido retornar à escola para finalizar seus estudos e não sente a urgencia em conquistar esse diploma, mas segue à espera de que um dia possa regressar. Sua entrevista, em conjunto com o de outras alunas como Vani e Romilda, apresentam histórias comuns entrecruzadas pela condição de serem mulheres, mães e reivindicadoras de condições melhores de vida e estudo para si e para seus filhos.