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2.1.1.5 Semelhanças e diferenças

2.3. Os estudos sobre cidadania

2.3.1. Cidadania como participação

Nos últimos anos da década de 60, a palavra ―participação‖ tornou-se parte do vocabu- lário político popular. Isso aconteceu na onda de reivindicações, em especial pelos estu- dantes, pela abertura de novas áreas de participação – nesse caso na esfera da educação

56 de nível superior -, e também por parte de vários grupos que queriam, na prática, a im- plementação dos direitos que eram seus na teoria (PATEMAN: 1993, p. 9)

Com tais palavras, Carole Pateman comentou a intensificação dos movimentos em prol de uma participação política maior da população, em seu livro Participação e

Teoria Democrática. Segundo Pateman, os teóricos da democracia, sobretudo norte-

americanos, rejeitam totalmente ou propõem uma revisão profunda nos conceitos de democracia dos ditos teóricos clássicos. Ela destaca uma preocupação que leva a não considerar positiva a participação: a preocupação com a estabilidade do sistema político e com as condições para manter essa estabilidade.

A participação, na opinião de Carole Pateman, tem uma função de integração – cada cidadão isolado ―pertence‖ à sua comunidade. Para ela, essa é sua função educati- va - com a participação política o indivíduo torna-se efetivamente um integrante da co- munidade.

Já o italiano Alessandro Pizzorno, por sua vez, ao escrever Introducción al estu-

dio de la participación política, retomou o trabalho de Marshall e Bendix, entre outros,

para construir sua teoria. Pizzorno parte da lista compilada por Lester Millbrath, que enumera 14 níveis de participação política – entre os quais votar, contribuir financeira- mente com uma campanha política e assumir um cargo público.

Pizzorno levanta a questão se a luta de classes é uma luta entre grupos, não de- limitada por fatores territoriais, mas portadores de valores universais. Para ele, isso só funciona se, para além do reconhecimento dos direitos, reconhece-se uma contradição no sistema, que funciona ―afirmando a igualdade e valorizando a discriminação‖.

Assim, o autor nos atenta para o fato de que temos de levar em conta diversos ti- pos de participação política, com diferentes origens e características: a atividade política profissional (exercer cargo público); participação política como expressão das posições da sociedade civil; e participação política em organizações associativas fechadas, mais ou menos isoladas de estruturas dominantes, que podem ser um movimento organizado ou uma subcultura. Pizzorno entende política como algo mais amplo do que aquilo que normalmente se refere ao processo eleitoral.

57 2.3.2. Cidadania como reconhecimento

Axel Honneth é considerado um dos principais teóricos do reconhecimento em fins do século XX e início do século XXI, ao lado de outros como Charles Taylor, a quem ele também cita em seus escritos.

Baseado inicialmente nos estudos do alemão Hegel (1770-1831) e do filósofo americano Georg Herbert Mead (1863-1931), Honneth parte do princípio de que ―a re- produção da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento recíproco porque os sujeitos só podem chegar a uma autorrelação prática quando aprendem a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus destinatá- rios sociais‖ (HONNETH: 2003a, p. 155). Honneth estabelece as bases para uma teoria contemporânea do reconhecimento. De acordo com ele, as chamadas lutas por reconhe- cimento incluem desde lutas simbólicas até batalhas materiais e legais. Segundo o autor, ―na autodescrição dos que se veem maltratados por outros, desempenham (...) um papel dominante categorias morais que, como as de ―ofensa‖ ou de ―rebaixamento‖, referem- se a formas de desrespeito, ou seja, às formas do reconhecimento recusado‖ (HONNE- TH: 2003 a, p. 213).

Ou, em outras palavras, ―são as lutas moralmente motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institucional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco, aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativamente gerida das sociedades‖ (HONNETH: 2003 a, p. 156).

Antes de construir seus próprios tipos de reconhecimento, segue comparando Hegel e Mead. Segundo ele, a teoria de Mead distingue três formas de reconhecimento: a dedicação emotiva, o reconhecimento jurídico e o assentimento solidário. Em Hegel são atribuídos respectivamente a esses três padrões de reciprocidade conceitos especiais de pessoa, no sentido de que a autonomia subjetiva do indivíduo aumenta também com cada etapa de respeito recíproco. Os dois autores coincidem na tentativa de localizar os modos de reconhecimento nas respectivas esferas da reprodução social. Hegel distingue entre os atores a família, a sociedade civil e o Estado. Mead destaca as relações primá- rias, as jurídicas e as do trabalho. Na tipologia de Honneth são descritos o amor, o direi- to e a solidariedade.

Honneth define como relações amorosas todas as relações primárias, que consis- tam em ligações emotivas fortes entre poucas pessoas: relações eróticas entre dois par- ceiros, de amizades e de relações pais/filhos. Ele avalia que as relações amorosas são

58 uma espécie de ―preparativo‖ para que o indivíduo obtenha autoconfiança. Por esse mo- tivo, o amor é anterior a todas as outras formas de reconhecimento.

A segunda forma de reconhecimento, a ordem legal, distingue-se do amor em quase todos os aspectos decisivos. No artigo Reconhecimento ou redistribuição? A mu-

dança de perspectivas na ordem moral da sociedade (2007), o reconhecimento dos di-

reitos corresponde à solução de uma segunda forma de desrespeito: a negação dos direi- tos e a exclusão social, em que a perda da dignidade decorre do fato de o sujeito não ter reconhecidos os direitos morais e as responsabilidades de uma pessoa legal plena em sua própria comunidade.

A atitude positiva que os sujeitos podem tomar em relação a si mesmos, quando eles adquirem esse reconhecimento legal, é a de um autorrespeito elementar. Eles se tornam capazes de com- partilhar, na comunidade, os atributos de um ator moralmente competente. As relações legais permitem a generalização do reconhecimento, nas duas direções da extensão material e social dos direitos. O conteúdo material resulta do fato de que o ordenamento jurídico considera as di- ferenças nas oportunidades disponíveis aos indivíduos para perceberem suas liberdades intersub- jetivamente garantidas. Na questão social, as relações legais são universalizadas, no sentido de conceder os mesmos direitos a grupos até agora excluídos ou desprotegidos dentro de uma co- munidade (HONNETH: 2007, p. 86).

A terceira vertente do reconhecimento classificada por Honneth é a solidarieda- de ou estima social. Honneth faz uma comparação entre o reconhecimento jurídico e a estima social: em ambos os casos, um homem é respeitado por suas propriedades, mas no direito se trata da propriedade universal que faz do indivíduo uma pessoa; na estima social, o respeito se dá pelas propriedades particulares que o caracterizam, diferente- mente de outras pessoas.

Ainda em relação ao ordenamento jurídico, Honneth cita uma distinção dos di- reitos subjetivos em direitos liberais de liberdade, direitos políticos de participação e direitos de bem-estar (distribuição equitativa de bens básicos, como educação, saúde, entre outros). Para atingir o reconhecimento social, a autoestima pode ser encontrada na aceitação solidária e no aspecto social das habilidades de um indivíduo e em seu estilo de vida. Segundo ele, a partir da estima social alcançada, a pessoa é capaz de se identi- ficar totalmente com seus atributos e realizações específicas. Para ele, o relacionamento de reconhecimento associado à solidariedade incorpora o princípio da diferença igualitá- ria, ou seja, o fato de todos terem valorizadas suas características pessoais provoca uma relação de igualdade. Em síntese, para Honneth:

Estes três padrões de reconhecimento – amor, ordem legal e solidariedade – parecem fornecer as condições formais para a interação, dentro das quais os seres humanos po- dem ter certeza de sua ―dignidade‖ e integridade. (...) Sempre que participam de um mundo social no qual eles encontram esses três padrões de reconhecimento, em qual-

59 quer forma que seja, eles podem, então, relacionar-se entre si nas formas positivas da autoconfiança, do autorrespeito e da autoestima (HONNETH, 2007, p. 88).

Nancy Fraser (2001), por sua vez, embora perceba a relevância do conceito de reconhecimento e de sua utilização como remédio contra injustiças, não considera, co- mo Honneth, a demanda por ―reconhecimento das diferenças‖ como central nas ques- tões sociais contemporâneas. Ela destaca que essas demandas alimentam a luta de gru- pos mobilizados. Nesses conflitos chamados por Fraser de ―pós-socialistas‖, identida- des grupais substituíram interesses de classe como principal incentivo para mobilização política.

Assim, ela define injustiça socioeconômica como aquela enraizada na estrutura político-econômica da sociedade e cita como exemplos exploração (ter os frutos do tra- balho de uma pessoa apropriados para o benefício de outros); marginalização econômi- ca (ser limitado a trabalho indesejável ou baixamente remunerado ou ter negado acesso a trabalho assalariado completamente) e privação (ter negado um padrão material ade- quado de vida).

Já a injustiça cultural ou simbólica está arraigada a padrões sociais de represen- tação, interpretação e comunicação. Como exemplos, Fraser inclui dominação cultural (ser sujeitado a padrões de interpretação e de comunicação associados a outra cultura estranha e/ou hostil); não-reconhecimento (ser considerado invisível pelas práticas re- presentacionais, comunicativas e interpretativas de uma cultura); e desrespeito (ser di- famado habitualmente em representações públicas estereotipadas culturais e/ou em inte- rações cotidianas).

Mas na avaliação da própria Fraser, há pessoas que estão sujeitas a ambas, injus- tiça cultural e injustiça econômica, e, portanto, precisam tanto de reconhecimento como de redistribuição. Fraser chama esse grupo de ―coletividades ambivalentes‖ e explica, nesse caso, que os dois tipos de injustiça são simultâneos e que nenhuma dessas injusti- ças é um efeito indireto da outra: ambas são primárias e originais. Nem remédios redis- tributivos nem de reconhecimento isoladamente são suficientes.

Outra distinção importante feita por Fraser é a descrição dos tipos de remédios para as injustiças. Segundo ela, o remédio para injustiça econômica – o qual denomina genericamente de redistribuição - é a reestruturação político-econômica de algum tipo, incluindo redistribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, sujeitar inves- timentos à tomada de decisão democrática. Já o remédio para injustiça cultural – deno- minado por ela de reconhecimento - é algum tipo de mudança cultural ou simbólica, que

60 pode ser aplicado na forma de reavaliação positiva de identidades desrespeitadas e dos produtos culturais de grupos marginalizados; reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural e a transformação geral dos padrões sociais de representação, inter- pretação e comunicação, a fim de alterar todas as percepções de individualidade.

Na opinião de Nancy Fraser, políticas de reconhecimento e redistribuição apa- rentam, frequentemente, ter fins contrários, já que onde a primeira tende a promover a diferenciação, a segunda tende a eliminar isso.

Vê-se, assim, que Honneth e Fraser - sem se referir ao termo cidadania e à tipo- logia de Marshall e Bendix – valem-se dos mesmos argumentos utilizados na conceitua- lização da cidadania. Ele, para construir sua classificação abrangente de reconhecimen- to, enquanto ela separa reconhecimento e redistribuição, mas não deixa de reconhecer a existência de grupos ―ambivalentes‖, que demandam tanto reconhecimento como redis- tribuição para atingirem sua cidadania plena. Assim, temos aqui novos parâmetros para a definição de cidadania: a cidadania como reconhecimento e como redistribuição.