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2.1. Os estudos sobre políticas públicas

2.1.1. Os modelos de análise de políticas públicas

2.1.1.1. Multiple streams model

O modelo de múltiplos fluxos (Multiple streams model) foi elaborado por John Kingdon e explicado em seu livro Agendas, Alternatives and Public Policies, publicado originalmente em 1984. A ideia do autor era explicar como e por que alguns problemas se tornam importantes e são incluídos na agenda governamental.

Nem todos os temas que manifestam preocupações da sociedade e dos governan- tes se constituem um problema a ser resolvido. Uma questão passa a fazer parte da a- genda governamental e se transforma decididamente num problema a ser resolvido quando os formuladores de políticas (policy makers) têm sua atenção voltada para ela.

No entanto, seguindo paradigma da racionalidade limitada de Herbert Simon, já citado anteriormente, os formuladores de políticas não são capazes de dar atenção a to- das as questões ao mesmo tempo. Kingdon distingue a agenda governamental da agenda de decisões, que é aquela em que, dada a atenção a determinados problemas, alguns chegam ao topo das discussões e se aprontam para que seja tomada a decisão e se trans-

31 formam em política pública. Por fim, há ainda temas que são discutidos em agendas especializadas, como as da saúde, ambiental, da educação, entre outras.

Além da racionalidade limitada de Simon, Kingdon se inspirou também no mo- delo garbage can, ou ―lata de lixo‖. O modelo foi desenvolvido por Cohen, March e Olsen (1972). Para os autores, as escolhas de políticas públicas são feitas como se as soluções estivessem em uma ―lata de lixo‖. A metáfora foi usada por eles, porque, den- tro de uma lata de lixo existem vários problemas e poucas soluções. Para que a escolha seja feita, as soluções não são analisadas criteriosamente: os tomadores de decisão op- tam por alternativas que apareçam no momento da decisão.

O processo decisório, para Kingdon, é composto de três fluxos que atuam de forma independente. O fluxo de problemas (problems stream) corresponde ao momento em que um tema é reconhecido como um problema ser resolvido. O segundo fluxo é chamado de alternativas ou soluções (policies stream) e o terceiro é o fluxo político (politics stream).

Assim, segundo ele, uma política entra na agenda governamental e passa a com- por a agenda decisional no momento de interseção desses três fluxos, chamado de cou-

pling. O coupling ocorre em circunstâncias específicas, denominadas por ele de janelas

de oportunidades políticas (policy windows). Essas janelas são abertas em determinados momentos, provocadas por meio de três mecanismos: indicadores, eventos-chave e fe-

edback das ações governamentais.

No artigo Perspectivas Teóricas sobre o Processo de Formulação de Políticas

Públicas, a cientista social Ana Cláudia N. Capella (2007) explica esses três mecanis-

mos. Segundo ela, indicadores não se convertem imediatamente em problemas. Para isso, dependem da interpretação dos dados e da percepção de que são uma questão a ser resolvida.

Os eventos, por sua vez, podem ser criados por crises, desastres naturais, mas também por mudanças no fluxo político, como mudanças na estrutura de governo ou início de novos mandatos. Já o feedback, positivo ou negativo, é dado pelo monitora- mento de programas e ações governamentais, pelo cumprimento ou não de metas e por reclamações e levar a novas políticas.

Capella pondera, contudo, que o surgimento de um desses mecanismos não im- plica necessariamente a formulação de um problema:

Mesmo que indicadores, eventos, símbolos ou feedback sinalizem questões específicas, esses e- lementos não transformam as questões automaticamente em problemas. Essencial para o enten-

32 dimento do modelo é compreender que problemas são construções sociais, envolvendo interpre- tação (CAPELLA: 2007, p. 90)

Ou, nas palavras do próprio Kingdon: ―Problemas não são meramente as ques- tões ou os eventos externos: há também um elemento interpretativo que envolve percep- ção‖ (Kingdon, 2003. APUD Capella: 2007, p.90).

Além dos fluxos, outros componentes são centrais ao modelo: janelas de oportu- nidades políticas (policy windows); empreendedores da política (policy entrepreneurs), comunidades políticas (policy communities), humor ou clima nacional (national mood).

Janela de oportunidade (policy window) é o momento ou circunstância propícia para as mudanças políticas, o momento em que ocorre o coupling, a união entre os três fluxos que compõem o processo do agenda-setting.

A policy community é a comunidade formada por especialistas, entre acadêmi- cos, assessores parlamentares, servidores públicos, responsáveis pela criação de alterna- tivas ou soluções para determinado problema. Ela não é homogênea, composta de pes- soas que têm as mesmas ideias sobre o tema. Ao contrário, é nas policy communities que as ideias são debatidas e são propostas diversas alternativas, das quais algumas são mais propensas a saírem do fluxo de alternativas (policy stream) e passarem ao fluxo político (politics stream).

Se nem todas as alternativas se transformam em soluções propostas e passam pa- ra o fluxo político e dentro dele chegarem à decisão, como isso ocorre? No fluxo políti- co essa aceitação de uma proposta e sua inclusão na agenda governamental depende primeiro do national mood, o clima político para debater tal questão. Além disso, exis- tem outros dois fatores que produzem mudanças na agenda: as forças políticas e as mu- danças no próprio governo.

Quando são mudadas posições estratégicas em um governo ou quando surge um novo governo, surgem outros policy entrepreneurs (empreendedores da política), aque- les atores capazes de fazer um tema ser percebido como problema e de representar as ideias debatidas na policy community.

Capella explica a dinâmica do modelo:

De acordo com o autor, uma oportunidade para a mudança surge quando um novo problema con- segue atrair a atenção do governo (por meio de indicadores, eventos ou feedback), ou quando mudanças são introduzidas na dinâmica política (principalmente mudanças no clima nacional e mudanças dentro do governo). O fluxo de soluções (policy stream) não exerce influência direta sobre a agenda; as propostas, as alternativas e as soluções elaboradas nas comunidades (policy communities) chegam à agenda apenas quando problemas percebidos, ou demandas políticas, criam oportunidades para essas ideias (CAPELLA: 2007: p. 95).

33 É importante também citar o papel dos atores do processo decisório. Kingdon organiza os atores em dois grupos: atores visíveis e atores invisíveis. Os atores visíveis são aqueles que exercem influência direta sobre a formação da agenda. Ele destaca co- mo principal o papel do presidente (e por extensão, governadores e prefeitos), por ma- nejar recursos institucionais (poder de veto e de escolha para cargos-chave), econômi- cos, organizacionais e de comando da atenção pública. O presidente só não tem o poder de controlar as alternativas a ser consideradas, poder este que está nas mãos dos espe- cialistas nas policy communities.

Outros atores citados como visíveis ou influentes são os funcionários de alto es- calão nomeados pelo presidente, participantes do processo eleitoral, como os responsá- veis pelas campanhas e partidos políticos. No caso de parlamentares, sejam eles senado- res, deputados federais ou parlamentares estaduais e municipais, esses atores são impor- tantes porque não só influem na inclusão do tema na agenda como também podem fazer parte da comunidade política e são capazes de propor alternativas, representar os outros membros da comunidade e produzir as leis essenciais à grande maioria das mudanças.

De acordo com Capella,

o papel do Congresso é central para o processo de formação da agenda, seja porque os parlamen- tares buscam satisfazer seus eleitores, seja porque buscam prestígio e diferenciação entre os de- mais congressistas, seja ainda porque defendem questões relacionadas a seus posicionamentos politico-partidários (CAPELLA: 2007, p.100).

Quanto à mídia, Kingdon a considera importante, mas suas pesquisas não con- cluíram que ela afete diretamente a formação da agenda:

Apesar das boas razões para acreditar que a mídia teria um impacto substancial na agenda gover- namental, nossos indicadores revelaram-se desapontadores. Os meios de comunicação de massa foram apontados como importantes em apenas 26°/o das entrevistas, bem menos do que os gru- pos de interesse (84%) ou pesquisadores (66%) (Kingdon, 2003. APUD Capella: 2007, p.102). Ou ainda: ―a mídia pode ajudar a dar forma a uma questão e estruturá-la, mas não pode criar uma questão (Kingdon, 2003, APUD Capella: 2007, p. 103).

Capella tenta explicar essa ―subconsideração‖ da mídia, ponderando que, para Kingdon, a mídia apenas transmite as questões ao público depois que a agenda já está definida ou até mesmo depois que política foi implementada. Além disso, continua Ca- pella, a mídia enfatiza um assunto por um período limitado de tempo.

Abrimos um parêntese para discordar da análise de Kingdon sobre o papel da mídia. Acreditamos que, nos dias de hoje, não só a televisão, mas principalmente a In- ternet, com suas páginas pessoais e redes sociais, pode exercer influência na formação da agenda.

34 O modelo de Kingdon é muito citado e utilizado em pesquisas, porém isso não impediu que recebesse críticas. Nikolaos Zahariadis, que escreveu o capítulo sobre o modelo para o livro organizado por Paul Sabatier (2007), reúne algumas críticas feitas por outros autores.

Uma das questões mais controversas foi apontada, segundo Zahariadis, por Mucciaroni (2001) e por Bendor, Moe e Shott (2001). Eles criticam a total independên- cia dos fluxos proposta por Kingdon em seu modelo. Segundo eles, os fluxos são inter- dependentes, têm uma vida própria, porém mudanças em um dos fluxos podem acarretar ou mesmo reforçar mudanças em outro fluxo. Isso faz com que a janela de oportunida- des para o coupling não seja tão eventual.

Já Sabatier (1999) analisa que a política nem sempre é feita em nível sistêmico, as políticas nem sempre são desenvolvidas pela comunidade política, e soluções não são desenvolvidas sempre de forma independente dos problemas.

Segundo Zahariadis, o próprio Kingdon admitiu posteriormente a possibilidade de uma interdependência dos fluxos: ―O próprio Kingdon (1995, p. 228) abre a possibi- lidade de que o coupling, i.e., a interação dos fluxos, pode ocorrer na ausência de uma janela aberta‖. (ZAHARIADIS: 2007, p. 81)

Ana Cláudia Capella cita trabalhos anteriores de Zahariadis (1995,1999). Na a- nálise sobre o processo de privatização na Inglaterra e na França (1995), ele propõe três alterações ao modelo original. A primeira é que Kingdon foca sua análise apenas no processo de pré-decisão (formação da agenda) e Zahariadis estende o modelo até a fase de implementação. A segunda proposta de Zahariadis é usar o modelo em estudos com- parativos de vários países, diferentemente da aplicação na política dos Estados Unidos por Kingdon. Tematicamente, Zahariadis focaliza apenas a questão da privatização, enquanto Kingdon analisa o governo federal como um todo. Além disso, as três variá- veis do fluxo político - humor nacional, grupos de interesse e mudanças no governo (turnover) – são incluídas em uma única variável, a ―ideologia‖.