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2.2 Cultura e direito

2.2.4 Cidadania e diversidade cultural

Diz-se que a valorização da cultura está diretamente ligada ao grau de democracia e aceitação do pluralismo (CUNHA FILHO, 2002, p. 70). Ainda, que “não é exagero dizer que

um indivíduo desprovido de cultura tem ofendida a sua própria dignidade humana” (REGO, 2008, p. 41). A cultura enquanto possibilidade transformadora de um ambiente representa a sua valoração como eixo de sustentação de qualquer nação, à medida que resguarda a condição de modificadora dos modos de pensar e agir.

É por essa razão que tratar de cultura a partir da ótica jurídica e, portanto, democrática, implica indubitavelmente à valorização dos âmbitos da diversidade e cidadania cultural. Tanto é que, conforme já visto, a própria Constituição Federal brasileira é amplamente conhecida como Constituição Cidadã, além de também ser considerada, na seara dos estudos jurídicos, como Constituição Cultural. A cidadania é, de acordo com o Art. 1º, II da CF/88, um dos fundamentos da República, que se constitui em Estado democrático de Direito. E, assim, é inerente a toda e qualquer atividade estatal, como saúde, educação, cultura, meio ambiente etc. (CUNHA FILHO, 2018, p.100). É ainda comum que autores do campo das ciências sociais e jurídicas assemelhem o conceito de cidadania com o de participação dos indivíduos no tocante ao exercício de poder do Estado – seja ela direta ou indireta. Ou seja, participação na vida política do país.

No Brasil, exemplo claro de diversidade de povos e costumes, e de constantes transformações de cunho social, político e econômico, os aspectos constitutivos da cultura estão sendo cada vez mais valorizados, entendendo-se que, por meio da cultura, é possível construir um país mais justo e democrático. Nesse sentido, afirma Ribenboim (apud BRANT, 2003, p. 125):

Conscientes da premissa que cultura e arte agregam conceitos de cidadania e de responsabilidade social e, portanto, se arte e cultura são processos de formação de cidadania, ambas são ações sociais por princípio, assistimos a um movimento no país que tem alavancado projetos educacionais e/ou culturais de largo alcance, envolvendo todos os setores da sociedade brasileira.

Como poderá se verificar nos tópicos seguintes, a base dos direitos culturais, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, passou a ser a participação na vida cultural da comunidade. Para Cunha Filho (2018, p.95), isso significa “simplesmente exercício da cidadania”. Segundo o autor, o objetivo último dos direitos culturais é o de lembrar o “elemento comum e congregador de uma sociedade agora laica e pluralista, que é a cidadania”. Por isso, tratar da cidadania e diversidade cultural é tão relevante para o tema dos direitos culturais – cujo conceito e aprofundamento serão melhor expostos nos tópicos seguintes.

Diversidade Cultural e Cidadania Cultural são, ambas, expressões que fazem parte da grande maioria – para não dizer da totalidade – das normativas e legislações que abordam o

tema da cultura no ordenamento jurídico brasileiro – inclusive nos já citados artigos 215 e 216 da CF/88. Se não literalmente, certamente em suas derivações, pois é praticamente impossível estabelecer regramentos que protejam e reconheçam direitos culturais sem que se considere a dimensão cidadã e de diversidade que a cultura representa e a própria noção de cidadania enquanto condição formadora do Estado Democrático de Direito que é a República Federativa do Brasil.

Cita-se ainda um fator preponderante que foi o crescimento exponencial de legislações nessa área após a gestão do Ministro Gilberto Gil, iniciada em 2003 e que ressignificou o entendimento e o olhar do governo e da gestão pública para com a cultura, considerando-a em sua dimensão cidadã, conforme já visto.

Compreender, respeitar, reconhecer e valorizar a diversidade cultural existente, com o objetivo de garantir direitos culturais decorrentes exatamente dessa condição diversa que a cultura brasileira representa17, tais como a criação, fruição e memória cultural, é sem dúvida exercer na prática a dimensão cidadã da cultura, bem como da democracia como um todo. Nesse sentido, destaca-se que também se disseminaram, decorrentes da ideia de diversidade e cidadania, expressões como democracia cultural e democratização da cultura (por serem desdobramentos específicos, não serão abordados neste momento, mas importa mencionar).

São todas variações que, partindo do mesmo ideário antropológico de cultura, aliado à perspectiva e aos programas da gestão Gil, pela recorrência, acabaram consagrando-se também de forma ampla nas produções acadêmicas, nas produções de projetos culturais, nos comitês temáticos das conferências e audiências públicas de cultura, como eixos específicos a serem debatidos e estudados, e permanecem como centro das discussões atuais sobre políticas culturais no país.

No período de 1988 a 1992, Marilena Chauí foi secretária de Cultura da Cidade de São Paulo e realizou profunda pesquisa e reflexão acerca de uma política baseada no conceito de Cidadania Cultural – para a autora, seria a “cultura como direito dos cidadãos e como trabalho de criação dos sujeitos culturais” – quando a questão dos direitos culturais começava a tomar destaque no Brasil. As seguintes garantias faziam parte de sua política: (i) Direito de acesso e fruição dos bens culturais por meio dos serviços públicos de cultura; (ii) Direito à criação cultural, entendendo a cultura como trabalho da sensibilidade e imaginação; (iii) Direito a reconhecer-se como sujeito cultural, graças à ampliação do sentido da cultura e (iv)

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Seja por fatores regionais, linguísticos, coloniais, de crenças, religiões, cor, gênero, dentre tantos outros, todos tão latentes em suas diferenças, tão enraizados na história do país, e ao mesmo tempo tão mutantes, assim como a própria ideia de cultura e de evolução social.

Direito à participação nas decisões públicas sobre cultura, por meio de conselhos e fóruns deliberativos. (CHAUÍ, 2006, p. 67)

O aludido conceito de Cidadania Cultural presente na gestão de Chauí baseia-se na garantia dos direitos culturais a todos os cidadãos, mas vai além, ao estimular a geração de uma nova consciência política “a partir da apropriação da cultura como direito à fruição, à

experimentação, à informação, à memória e à participação”. Busca também o rompimento

com a passividade perante a cultura, por meio do consumo de bens culturais e a resignação ao estabelecido, ambos que bloqueiam a busca da democracia, alimentam a visão hierárquica da política e o poderio das oligarquias brasileiras. Fizeram parte da construção do aludido conceito o enfrentamento de três poderosos mecanismos que determinam as operações, funcionamentos e reproduções do imaginário social e político no Brasil: o mecanismo mitológico, o ideológico e o político (CHAUÍ, 2006).

O Instituto Pensarte18, previamente às eleições presidenciais de 2006, lançou o “Manifesto por uma cidadania cultural”, sendo esta [cidadania cultural] compreendida na ampliação do conceito de cultura, na democratização do acesso aos bens e serviços, bem como ao fazer cultural, e no cumprimento dos preceitos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição da República Federativa Brasileira.

Cunha Filho (2018, p. 103), por sua vez, entende que:

Se forem evocadas as múltiplas significações normativas e doutrinárias da palavra

cidadania, a expressão cidadania cultural dificilmente poderá ter definição única,

embora não deixe de evocar elementos constantes, como participação política, dignidade, cultura, direitos, deveres e cidadão, os quais podem ser objeto de alongados debates para serem compreendidos. [...] A cidadania cultural pode ser percebida e definida num sentido estrito e em outro mais amplo. O primeiro como sendo o fundamento republicano segundo o qual cada cidadão, exercendo direitos e cumprindo deveres, influencia na concepção, na execução e no controle das políticas culturais. [...] No sentido mais amplo, ela é o conjunto de ações que todas as pessoas naturais ou jurídicas, públicas ou privadas, individual ou coletivamente realizam em prol da cultura que materializa a dignidade do ser humano.

O autor discorre também, especificamente, sobre as formas previstas para o exercício da aludida cidadania cultural. Para ele, não há despropósito na referência a uma cidadania

cultural, uma vez que o setor a que a expressão se refere é dotado de peculiaridades que

justificam um exercício diferenciado desse fundamento republicano e democrático (2018, p. 114).

18 Fundado em 2000, apresenta-se como “organização gestora de cultura”. <http://www.pensarte.org.br/quem-

Como anteriormente mencionado, o conceito de cidadania está intimamente ligado ao de participação social na vida política. Cabe, portanto, destacar o papel fundamental dos órgãos colegiados de cultura, comumente designados conselhos, na esfera das políticas públicas e da participação social institucionalizada (ambas melhor delineadas no capítulo seguinte), fundamentais para o exercício da famigerada cidadania cultural19.

Apresentados de forma devida no segundo capítulo desta pesquisa, os conselhos de cultura fazem parte do já citado Sistema Nacional de Cultura, principal política cultural implementada pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil a partir do ano de 2003. Importante nesse aspecto destacar que o Ministério da Cultura, na gestão Gil, estruturou-se em secretarias temáticas específicas, dentre elas a Secretaria de Cidadania Cultural e a Secretaria de Identidade e Diversidade Cultural.

Também fruto da gestão de Gil, e importante de ser mencionado como parte do desenvolvimento dos conceitos de diversidade e cidadania cultural, é o Programa Cultura Viva – de nome oficial ‘Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania’ –, que, por meio dos chamados Pontos de Cultura, destacou-se como uma potente política de valorização da diversidade cultural do país:

O Programa [Cultura Viva] pode ser entendido enquanto uma política de cultura que se aproxima do paradigma da democracia cultural, que compreende o direito cultural na sua radicalidade, sendo o Estado responsável por assegurar a todo cidadão o livre exercício da sua cidadania cultural, ou seja, dispor de meios para a produção cultural, fruição e distribuição da cultura. (LACERDA, 2010, p.75-76)

Fato é que, para além do programa Cultura Viva, os entendimentos de diversidade e cidadania cultural foram também compreendidos e desenvolvidos em outras frentes do Ministério da Cultura na gestão de Gilberto Gil e de Juca de Oliveira, que o sucedeu. Para Alexandre Barbalho (2007, p. 13-14):

A diversidade não se torna uma síntese, como no recurso à mestiçagem durante a era Vargas e na lógica integradora dos governos militares, nem se reduz à diversidade de ofertas em um mercado cultural globalizado. A preocupação da gestão Gilberto Gil está em revelar os brasis, trabalhar com as múltiplas manifestações culturais, em suas variadas matrizes étnicas, religiosas, de gênero, regionais etc.

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O período de redemocratização da sociedade brasileira trouxe consigo a aparição dos Conselhos de Políticas Públicas como atores dessa nova fase de construção democrática e participativa do país. Sem dúvida, os Conselhos assumem papel de inovadores no campo da participação popular a partir do momento em que, de certa forma, detêm influência nas decisões governamentais. Por evidente, esse cenário se intensifica e ganha ainda mais força após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que lhes dá formato institucional, juntamente com a gama de direitos civis e do apreço por decisões coletivas que trouxe a nova ordem constitucional.

Finalmente, merece destaque a atuação internacional da já mencionada Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural, que atuou em parceria com o Ministério das Relações Exteriores, no âmbito internacional dos debates sobre diversidade cultural, especialmente naqueles promovidos pela UNESCO. Dentre os destaques, está o papel estratégico desempenhado pelo Brasil na promulgação da Convenção sobre a Proteção e Promoção da

Diversidade das Expressões Culturais em 2005. Esse documento defende a inclusão das

variáveis culturais nos planos nacional e internacional de desenvolvimento e reafirma o direito soberano dos Estados de implantar políticas de proteção das identidades culturais de suas populações. Foi ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006.

Alguns anos antes, em 2001, acontecia em Paris a Conferência Geral da UNESCO, na qual foi proclamada a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural, cujo objetivo principal é a defesa da ideia de que a diversidade cultural é tão necessária para a humanidade quanto a diversidade biológica o é para a natureza, sendo, portanto, necessariamente reconhecida e protegida em prol das gerações presentes e futuras. Tal Declaração também serviu como base para a Convenção supramencionada. Ambos os documentos são de fundamental importância no que condiz à proteção da diversidade cultural e promoção da cidadania cultural nos âmbitos nacional e internacional e, portanto, de menção indispensável para o presente trabalho.

À guisa de conclusão deste tópico, não se poderia deixar de relacionar todo o aspecto transversal apresentado nas temáticas de Direito, cultura, constituição federal, diversidade e cidadania cultural com elementos que lembrem movimentos relacionados à dança, seja pela conexão e fluidez dos pontos abordados, uma vez que todos eles partem e convergem de e para um mesmo eixo – noções de democracia –, assim como pelo eixo de sustentação corporal em uma dança, ou seja, pela cadência, pulso e ritmo que marcam diferentes abordagens e nuances, tanto como acontece na dança (que nunca é totalmente linear) quanto nas teorias aqui apresentadas, oriundas de constantes transformações históricas e sociais.