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A sociedade civil dentro e fora dos espaços de participação institucionalizados da cultura – reverberações e mobilizações

3 POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA NO BRASIL [2º SINAL]

3.2 Participação social nas políticas culturais brasileiras

3.2.3 A sociedade civil dentro e fora dos espaços de participação institucionalizados da cultura – reverberações e mobilizações

De todo o exposto, pôde-se demonstrar que tanto a situação caótica a que chegaram as políticas culturais no país hoje assim como as conquistas que já se deram na área especialmente após o ano de 2003, atreladas ao reconhecimento de direitos culturais, estão diretamente ligadas à atuação de grupos de interesse e sua repercussão na esfera da agenda e desenho político. Seja por meio de coalizões de defesa, alinhamentos ou embates aos

processos e agentes decisórios, ou pelo aproveitamento de janelas de oportunidade, o que de fato se constata é a força de mobilização dos grupos de interesse na área cultural.

O que ficou claro também, infelizmente, é que tais grupos, a despeito de suas efetivas e incontestáveis mobilizações, na grande maioria das vezes permanecem sem conseguir mover as decisões que pretendem. E não é pela falta de propostas ou alternativas, mas, substancialmente, por serem preteridos em relação a outros segmentos julgados mais importantes, tanto pelo governo quanto pela sociedade como um todo.

Viu-se que a cultura só entra na agenda e pauta política, bem como na mídia, quando está atrelada a outro tipo de desenho político, geralmente de aspectos entendidos como de relevância econômica e política, ou ainda grandes acordos e lobbies, ou seja, fatores externos à dinâmica de reivindicações destes grupos de interesse. É o caso da Lei Rouanet, conforme foi demonstrado neste artigo, mas também de inúmeros outros acontecimentos, a exemplo das polêmicas e constantes mudanças na legislação de Direitos Autorais – que envolvem parte significativa do empresariado com o ECAD – entre outros lobbies externos que tiram proveito de pautas culturais realmente importantes.

Fato é que a cultura continua com pouco orçamento, marginalizada, e aparecendo na agenda política como problemática e causadora de “arruaças”, como se já não bastasse o histórico de desvalorização e instabilidade da área. Tal qual demonstrado no início deste artigo, a cultura é elemento estruturante e transformador da sociedade e, caso fosse reconhecida como tal, não só os grupos de interesse da área, mas também diversos outros segmentos se beneficiariam.

Ainda assim, mesmo que as grandes mudanças ainda sejam pautadas por lobbies poderosos externos aos que as mobilizações dos grupos reivindicam (e que agendas como o Procultura, PEC150, recursos suficientes, fortalecimento dos Fundos de Cultura, efetividade do Sistema Nacional de Cultura entre outros nunca cheguem), ocorre que o fluxo desses grupos de interesses organizados, bem como suas respectivas coalizões de defesa, é constante e intenso.

Tudo isso ocorre por conta do ciclo vicioso em que a cultura está inserida, de desvalorização e falta de reconhecimento. Quanto mais pautas de escândalos políticos fundamentados em fatores externos e atrelados ao estigma de marginalização da área, mais ela tende a ser desvalorizada e sempre parecerá haver algo mais importante que as políticas culturais na agenda, e os grandes atores das políticas continuarão a se utilizar dela apenas quando for conveniente.

Além disso, o pouco poder representativo alinhado à falsa representatividade de conselhos de cultura (ainda que deliberativos), das conferências e do SNC em geral, contribuem para esse panorama. Mesmo assim, é curioso o tamanho do impacto que esses grupos conseguem causar, ainda que por fatores exógenos, em detrimento do pouco orçamento atrelado à desvalorização histórica do segmento. A cultura não faz parte somente da indústria cultural e desse nicho de mercado, mas é também, e principalmente, capital simbólico de uma nação, pertencente à sua dimensão antropológica.

Talvez isso se explique em decorrência de outros tantos recursos – logicamente que não financeiros – que a área possui. Tudo que pode ser utilizado pelos lobbies e coalizões de defesa em busca de influência é considerado recurso, tais como a legitimidade da causa, a dimensão e proporção do segmento, conhecimento de especialistas, bem como o número de agentes envolvidos nos grupos de interesse. Essa discussão acerca dos recursos é baseada principalmente no livro Who governs?, do cientista político norte-americano Robert Dahl.

Procurou-se, aqui, exemplificar, através de acontecimentos pautados pelos fluxos dos grupos de interesses, elementos que evidenciam a luta por esses direitos, já que o próprio Estado não os garante, bem como se buscou a aplicação de teorias de políticas públicas voltadas para a realidade da discussão que abrange os direitos e as políticas culturais. Fato é que as pessoas ainda não se conscientizaram acerca de tais direitos, que são fundamentais e estruturantes. Enquanto isso não acontecer, os grupos de interesse da cultura continuarão à margem, lutando para que suas pautas realmente façam parte do desenho, das agendas e do jogo político. Pelo que se pretendeu demonstrar, esses direitos têm sido identificados muito mais pela atuação da própria sociedade civil do que pela relação com o governo.

O que se quer dizer é que há participação da sociedade civil, tanto dentro dos espaços institucionalizados quanto fora deles, e que, mesmo fora, as manifestações repercutem muitas vezes até em maior grau do que quando inseridas no contexto cotidiano das políticas públicas institucionalizadas.

A área da cultura está, inequivocamente, atrelada à mobilização de grandes e intensas manifestações no país, seja motivada pelos próprios meandros da gestão pública, seja por suas próprias reivindicações. Além disso, a cultura está sempre a postos para, lado a lado com as pautas humanitárias, militar contra abusos nos mais variados âmbitos, normalmente aqueles

que representam imposições governamentais. Um exemplo recente é o de corte nas verbas das universidades públicas, tido também como caso de afronta aos direitos culturais.47

De igual modo, como já citado nesta pesquisa, os casos que se espalharam pelo país em 2017, de censura a exposições e performances artísticas. O resultado da coibição à liberdade de expressão artística foram inúmeras manifestações, além da repercussão midiática e, sobretudo, uma proliferação de mais exposições e performances que defendiam os artistas atingidos pelos episódios de censura.

A área da cultura reúne características tão plurais quanto às suas formas de expressão que, recentemente, até mesmo foi criado um grupo para recrutar o que nomearam como ‘artistas conservadores’, para agregar no que seria uma ‘guerra cultural’. Mais um caso em que a cultura dominou as manchetes, pois, por obviedade, além de ter havido envolvimento do presidente da República também nesse caso, logo na sequência do tal recrutamento outros grupos contrários, também de artistas, manifestaram-se48. E novamente a cultura virou pauta, não pelos motivos mais nobres pelos quais há tanto tempo lutam suas categorias – como a questão do orçamento, por exemplo.

Em suma, o mais importante a se apresentar é como todo o movimento ativo iniciado pelo SNC – as conferências, os conselhos, as proposições – foi de certa forma incorporado e impregnado na sociedade civil que manteve esse contato. Todos esses processos reverberaram nas pessoas e permanecem até hoje nas estruturas regionais dos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura que continuam atuando. A experiência de estar nesses espaços institucionalizados fez com que se proliferasse a ideia de que a democracia participativa é realmente um meio de democratização não só da área cultural, mas de cumprimento do que de mais nobre é preconizado pela Constituição Federal: o poder que emana do povo.