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2.1 Noções de cultura

2.1.3 Entendimentos contemporâneos para as políticas culturais

Tendo visto o percurso etimológico, histórico e antropológico que o termo ‘cultura’ carrega, aliado ao entendimento de teóricos reconhecidos internacionalmente pelos estudos nessa área, de modo a aproximar o diálogo – tanto territorialmente quanto temporalmente – é pertinente seguir com a abordagem a partir de visões conceituais mais contemporâneas, nacionais e de representatividade para a área das políticas culturais – foco da presente pesquisa.

Para a filósofa Marilena Chauí (2006, p.12), após a evolução do entendimento de cultura como cultivo, no final do século XVII, ‘cultura’ passa a ter duas significações: processo interior do indivíduo educado artística e intelectualmente – no campo das humanidades que distingue o ‘culto’ do ‘inculto’ – e conjunto internamente articulado dos modos de vida de uma sociedade – campo do simbólico. Chauí traça ainda a compreensão de cultura como “ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam suas relações”.

Isaura Botelho (2001, p. 39), autora e pesquisadora brasileira reconhecida na área de políticas culturais, estabelece duas dimensões para a cultura, as quais denomina de antropológica e sociológica. No aspecto antropológico, estão a rotina, vivência e consequente interação social dos indivíduos nos mais variados aspectos que possam desenvolver e construir, no mundo ao seu redor, elementos associados à cultura, pensamentos, sentimentos e valores que juntos criem uma estabilidade e padrões culturais, em equilíbrio:

Aqui se fala de hábitos e costumes arraigados, pequenos mundos que envolvem as relações familiares, as relações de vizinhança e a sociabilidade num sentido amplo, a organização dos diversos espaços por onde se circula habitualmente, o trabalho, o uso do tempo livre etc. Dito de outra forma, a cultura é tudo que o ser humano elabora e produz, simbólica e materialmente falando.

No que diz respeito ao aspecto sociológico, pode-se dizer que condiz ao modelo organizacional gerador e produtor de desenvolvimento, proposto via de regra pelo Estado. Diferentemente do modelo antropológico, trata-se aqui de um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, compondo um universo que gere (interferindo ou não) um circuito organizacional, complexo e sendo o foco de atenção das políticas culturais:

Trata-se de expressão artística em sentido estrito. É nesse espaço que se inscreve tanto a produção de caráter profissional quanto a prática amadorística. É aqui

também que existe todo o aparato que visa propiciar o acesso às diversas linguagens, mesmo como prática descompromissada, mas que colabora para a formação de um público consumidor de bens culturais.

Passando para denominações institucionalizadas, temos a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), organismo das Nações Unidas destinado a questões de educação, cultura e ciências, que assim assevera: “ Tendo sido por muito tempo vista pelo ângulo das belas artes e da literatura, a cultura abrange um campo muito mais amplo: deve ser considerada como um conjunto distinto de elementos espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de uma sociedade ou um grupo social. Além da arte e da literatura, ela abarca também os estilos de vida, modos de convivência, os sistemas de valores, as tradições e as crenças.” (preâmbulo da Declaração Universal de Diversidade Cultural da UNESCO, 2001).

O Ministério da Cultura (MinC)9, por sua vez, a partir de 2003, com a gestão de Gilberto Gil, começa a construir uma política nacional de cultura, reestruturando e ressignificando a noção de cultura, que passa então a ser considerada em três dimensões: simbólica, cidadã e econômica. A dimensão simbólica parte da premissa de que é inerente aos seres humanos a capacidade de simbolizar, que se expressa por meio de diversas línguas, valores, crenças e práticas. Associa-se essa perspectiva ao conceito antropológico de que a cultura humana é o conjunto de modos de viver, traduzindo-se culturas humanas no plural. Já a dimensão cidadã, garantida constitucionalmente, baseia-se no princípio de que os direitos culturais fazem parte dos direitos humanos e devem constituir-se como plataforma de sustentação das políticas culturais.

Por fim, a dimensão econômica dispõe que a cultura, progressivamente, vem se transformando num dos segmentos mais dinâmicos das economias de todos os países, gerando trabalho e riqueza, considerando-a elemento estratégico da economia do conhecimento, aliada aos preceitos de informação e de criatividade, impulsionadas pelos investimentos em educação e cultura (BRASIL/MINC, 2011, p. 9).

A gestão do ministro Gilberto Gil seguido por Juca de Oliveira ampliou o leque das políticas culturais por meio do entendimento de papel central que a sociedade civil organizada deve desempenhar no processo de construção de uma política nacional de cultura. Prioridade do MinC em 2003, esse projeto passou pela construção do Sistema Nacional de Cultura- SNC,

9 Ao ser eleito presidente, em 2018, Jair Messias Bolsonaro anunciou a extinção do MinC, sendo suas atribuições incorporadas ao recém-criado Ministério da Cidadania, que absorveu também a estrutura dos antigos Ministério do Esporte e Ministério do Desenvolvimento Social. Com a publicação no Diário Oficial da União em 1° de janeiro de 2019 da medida provisória n° 870, a Cultura passa a ter o status de secretaria especial.

um regime de colaboração descentralizado e participativo que visa articular ações entre as unidades da federação e com a sociedade civil (o SNC será detalhado no segundo capítulo desta pesquisa).

O governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, a partir de 2003, pretendia tomar a participação como estratégia de governabilidade, privilegiando formas institucionais de interação entre o governo e a população, o que gerou um ambiente inovador no que condiz à relação Estado-sociedade. Inclusive e especialmente na área da cultura:

Para nós, a cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo. Porque não a vemos como algo meramente decorativo, ornamental. Mas como a base da construção e da preservação da nossa identidade, como espaço para a conquista da cidadania, e como instrumento para a superação da exclusão social – tanto pelo fortalecimento da autoestima de nosso povo, quanto pela sua capacidade de gerar empregos e de atrair divisas para o país. Ou seja, encaramos a cultura em todas as dimensões, da simbólica à econômica. Vem daí o nosso entendimento da cultura como uma das preocupações centrais do Estado. (Lula da Silva, discurso na cerimônia de lançamento do Programa Mais Cultura, 2007).

Em comparação a outros períodos da história do país, os programas implementados a partir do ano de 2003 na área da cultura representam um maior avanço no que toca à participação social-democrática nas políticas públicas. Trata-se de um consenso tanto entre movimentos sociais quanto no meio acadêmico, fato que poderá ser comprovado ao longo deste trabalho. Para a historiadora e especialista em políticas culturais Lia Calabre (2018, p.23):

Desde o primeiro ano da gestão do Ministro Gilberto Gil, pudemos assistir a um esforço, por parte do Ministério da Cultura (MinC), na direção da produção de informações e de estímulo ao aumento da produção de conhecimento na área da cultura. Dentre as inúmeras ações implementadas, há um foco especial na produção de informações/análises que deveriam permitir um conhecimento mais efetivo sobre a realidade e potência do campo da cultura, base fundamental para um processo de elaboração de novas políticas.

Importante, portanto, trazer as próprias palavras de Gilberto Gil sobre a concepção de cultura que passa a incorporar sua gestão em 2003 e inaugura uma nova forma de se pensar políticas públicas para a cultura na história do país:

[...] Pois, da perspectiva do Ministério da Cultura, o desejo de “construir um novo Brasil”, de recuperar a dignidade nacional brasileira, terá maior probabilidade de êxito se passar pelo mundo da cultura. Cultura não no sentido das concepções acadêmicas ou dos ritos de uma “classe artístico-intelectual”. Mas em seu sentido pleno, antropológico. Vale dizer: cultura como a dimensão simbólica da existência social brasileira. Como usina e conjunto de signos de cada comunidade e de toda a nação. Como eixo construtor de nossas identidades, construções continuadas que resultam dos encontros entre as múltiplas representações do sentir, do pensar e do fazer brasileiros e a diversidade cultural planetária. Como espaço de realização da

cidadania e de superação da exclusão social, seja pelo reforço da autoestima e do sentimento de pertencimento, seja, também, por conta das potencialidades inscritas no universo das manifestações artístico-culturais com suas múltiplas possibilidades de inclusão socioeconômica. Sim. Cultura, também, como fato econômico, capaz de atrair divisas para o país – e de, aqui dentro, gerar emprego e renda. Assim compreendida, a cultura se impõe, desde logo, no âmbito dos deveres estatais. É um espaço onde o Estado deve intervir. Não segundo a velha cartilha estatizante, mas mais distante ainda do modelo neoliberal que faliu. Vemos o governo como um estimulador da produção cultural. Mas também, através do MinC, como um formulador e executor de políticas públicas e de projetos para a cultura. Ou seja: pensamos o MinC no contexto em que o Estado começa a retomar o seu lugar e o seu papel na vida brasileira. Enfim, pensamos a política cultural do Governo Lula como parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática, plural e tolerante. Como parte e essência da construção de um Brasil de todos. (Discurso de Gilberto Gil na Abertura do Seminário Cultura XXI – Fortaleza, 19 de março de 2003)

Em resumo, pode-se perceber que o conceito de cultura é, como a própria cultura, fruto do desenvolvimento e movimento constante das sociedades. E assim continuará sendo. Buscou-se, com este tópico inaugural da presente pesquisa, apresentar conceitos consagrados historicamente quando se fala em cultura, até chegar no bem aceito conceito antropológico. E, para além disso, entendimentos que, partindo da visão antropológica, vão ainda mais a fundo, na abordagem dos saberes simbólicos e tradicionais. Por fim, os entendimentos contemporâneos e de relevância na seara das políticas culturais nacionais, por meio de autores especialistas e também de entendimentos institucionais afins.

A maior contribuição, todavia, deste tópico inaugural, vem a ser a consolidação, a partir de todas as vertentes apresentadas, de um entendimento de cultura que seja referencial para a presente pesquisa, que se prolongue nos debates trazidos ao longo de todos os capítulos, que justifique e incorpore a interdisciplinaridade tanto da condição do universo cultural quanto principalmente dos temas escolhidos para compor este trabalho.

Portanto, frisa-se a forma pela qual esta pesquisa se debruçará quanto ao entendimento de cultura: partindo do aspecto antropológico e plural, entendendo, como Raymond Willians, que ‘cultura é de todos’, sem qualquer forma de exclusão ou entendimento elitista, englobando também as mais diversas formas do fazer artístico, bem como os modos diversos de produção cultural, além do reconhecimento das manifestações de povos tradicionais que podem não se sentir alcançados pelos entendimentos trazidos (ainda que mais plurais possíveis). E, especialmente, a visão da UNESCO e do extinto MinC em sua reestruturação a partir do ano de 2003, que entendem a cultura como condição de instrumento do desenvolvimento humano, que valorizam a diversidade cultural e a transversalidade na área da cultura, ou seja, indo além das abordagens individualizadas (etimológica, conceitual, histórica, numérica etc.).

O trecho do discurso de Gilberto Gil acima mencionado traduz de maneira fiel a noção de cultura proposta, contemplada e necessária para este trabalho.

Tendo feitas tais considerações iniciais, imprescindíveis à compreensão do ritmo e da propositura da pesquisa como um todo, passa-se a aprofundar a relação específica entre Direito e cultura, iniciando com a consideração de um entendimento jurídico de cultura, percurso imprescindível para tratar sequencialmente dos chamados Direitos Culturais.