• Nenhum resultado encontrado

4 ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA DANÇA [3º SINAL – O PALCO]

4.1 Dança e política – história e movimento

4.1.1 Dança e história

Não há como iniciar este capítulo sem antes invocar a interdisciplinaridade que as áreas de conhecimento artes e dança carregam. Tão interdisciplinar e polissêmico quanto a abordagem de cultura, realizada no primeiro capítulo desta pesquisa. Tal fator é, portanto, transversal a todas as temáticas trabalhadas e trazidas, de modo que se complementam e coexistem no espaço e tempo das escolhas realizadas para compor este trabalho.

Os olhares e abordagens atinentes ao estudo do corpo, movimento e dança são os mais diversos, desde histórico e filosófico, semiótico, sociológico, antropológico, psicanalítico, político e, como não poderia deixar de ser, voltados também às questões de saúde e estética. E a dança não escapa a essa compreensão, mostrando-se frequentemente vinculada não somente às demais áreas artísticas, como também à Filosofia, Sociologia, Antropologia, Tecnologia, Neurociência, entre diversas outras. Não se reduz a dança, portanto, à área biológica, já que uma de suas principais premissas é traduzir uma expressão humana

tão antiga como a história da própria humanidade, entrelaçada que está à sua condição biocultural (VOSS, 2013).

Pois bem. Outro apontamento inicial válido e necessário – e novamente repisando um entendimento posto no primeiro capítulo deste estudo – reside no fator de complexidade que a busca por uma conceituação destes ramos de conhecimento (cultura, artes, dança) representa. Quaisquer destes entendimentos serão pautados a partir de um ponto comum a certo tipo de sociedade. No nosso caso, a ocidental. Giselle Guillon Camargo, em sua obra

Antropologia da Dança, abrange essa problemática:

Quando vamos assistir a um ballet num teatro ocidental, sabemos que os bailarinos dançarão, via de regra, sobre linhas paralelas e perpendiculares imaginárias que se cruzarão no espaço, obedecendo às leis da perspectiva; que o ‘palco’, de formato retangular, estará, marcadamente, separado da ‘plateia’; que as campainhas soarão duas ou três vezes para avisar que o espetáculo está por começar; que os primeiros bailarinos desempenharão os papéis principais; que haverá aplausos entre os atos; que o público, se gostar da peça, vai aplaudir de pé [...]. Essa é a ‘nossa’ tradição. É claro que essa não é a única forma ocidental de representação cênica! Nem é o único modelo de relação entre palco e plateia, público e bailarinos, existente no Ocidente! [...] ‘Mas isso é óbvio’, os leitores podem estar, nesse momento, dizendo a si mesmos. Sim, é óbvio porque se trata da “nossa” própria cultura. Porque gostamos de explicar bem direitinho o que é cada coisa, para que não se confunda ballet

clássico com dança moderna, Isadora Duncan com Martha Graham, capoeira com break, Pina Bausch com Eugênio Barba, sapateado americano com sapateado

irlandês, flamenco com dança cigana e assim por diante. (CAMARGO, 2013, p. 17)

Portanto, é importante resguardar as inúmeras possibilidades que compreendem o universo de entendimento da área da dança, não singularizado e reduzido a um conceito unificado, especialmente porque essa é uma forma de expressão milenar. Ainda nesse sentido:

É comum as pessoas separarem dança, com música, de outras formas de comportamento humano e rotulá-la “arte”. Uma vez que tenha estado tão separada, é frequentemente sentida como se não precisasse ser tratada. Essa visão etnocêntrica não leva em consideração a possibilidade de que a dança possa não ser “arte” (o que quer que isso seja) para as pessoas da cultura envolvida, ou que possa mesmo não existir uma categoria cultural comparável ao que os ocidentais chamam de ‘dança’. (KAEPPLER, 1978, P. 46)

Além disso, é preciso ponderar (nesse pensar múltiplo de corpo – movimento- gesto – dança) que, antes de qualquer outra coisa, após o nascimento, o ser humano gesticula e movimenta-se como forma de comunicar suas ideias e emoções. Assim entende Merce Cunningahm62, ao preceituar que a dança não começa pelo sentimento, mas pelo movimento.

62 Mercier Philip Cunningham nasceu em Centralia, Washington, em 1919. Teve seu primeiro contato com a dança aos 20 anos e neste mesmo ano foi convidado pela coreógrafa Martha Graham para dançar em sua companhia. Começava aí sua carreira na dança. Em 1939, se mudou para Nova Iorque como solista da companhia de Graham e, a partir de então, passou a contribuir fortemente para o desenvolvimento do que chamamos de dança moderna. Cunningham, falecido em 2009, aos 90 anos, é um dos nomes mais importantes da

Dançar é movimento no tempo e no espaço. Nessa mesma linha, Rudolf Laban63 (1990): “ Quando tomamos consciência de que o movimento é a essência da vida e que toda forma de expressão (seja falar, escrever, cantar, pintar ou dançar) utiliza o movimento como veículo, vemos quão importante é entender esta expressão externa da energia vital interior (coisa a que podemos chegar mediante o estudo do movimento)”.

São muitas as definições de dança enviesadas por especialistas das mais variadas áreas do conhecimento, conforme acima mencionado. Esses entendimentos diversificam-se, ainda, conforme o foco de interesse de quem os acolhe ou formula. A referência tida como uma definição intercultural de dança, contida na já citada obra Antropologia da Dança (2013 p.19):

A dança pode ser definida mais propriamente como um comportamento humano composto, do ponto de vista do dançarino, de sequências voluntárias, que são intencionalmente rítmicas e culturalmente estruturadas. Essas sequências são formadas de movimentos corporais não verbais, diferentes das atividades motoras cotidianas e possuem valores inerentes e estéticos

A dança é, entre todas as artes, talvez a única que dispense quaisquer tipos de materiais e ferramentas, pois depende apenas do corpo. Como afirma PORTINARI (1989, p.11) “dizem-na a mais antiga, aquela que o ser humano carrega dentro de si desde tempos imemoriais. Antes de polir a pedra, construir abrigo, produzir utensílios, instrumentos e armas, o homem batia os pés e as mãos ritmicamente para se aquecer e se comunicar”.

O homem primitivo dançava para invocar forças da natureza, imitando, através de gestos, fenômenos naturais, perfazendo a dança como própria forma de conjuro mágico, ritual, cerimonia e celebração ritualística. Então, para ele, praticamente não existia divisão entre dança, vida e religião.

história da dança e se destacou por sua ousadia e criatividade nas composições coreográficas. Ao lado de artistas de outras linguagens, especialmente do músico John Cage, com quem colaborou até sua morte, Cunningham apresentou ao universo da dança uma maneira totalmente nova de se criar (e olhar) dança.

63

Rudolf Von Laban nasceu na Bratislava, então pertencente à Hungria, em 1879. Criou vários centros de pesquisa buscando o retorno aos movimentos naturais na sua espontaneidade e riqueza, e na plena vivência consciente de cada um deles, a acarretar um desenvolvimento amplo e profundo em quem o pratica. Desenvolveu uma notação de movimento conhecido como “Labanotation”. Bailarino, autor de várias coreografias famosas, renovador da dança e de seu enfoque teatral. Trabalhou com grupos profissionais de onde saíram os mais importantes nomes da dança expressiva europeia, dirigiu seu trabalho principalmente para a dança, como meio de educação. Sua pesquisa e metodologia sobre o uso do movimento humano, pela profundidade e extensão, são hoje base para uma melhor compreensão do homem por meio do movimento, modernamente utilizada nos mais diversos ramos da arte e da ciência, dança, teatro, educação, trabalho, psicologia, antropologia etc.

De dança-rito, então, segue ao curso da historicidade universal e humana para dança- divertimento64 e, finalmente, dança-arte65. E, ao passo que a evolução é constante, aqui entendemos e passaremos à análise da dança-política.

Importante frisar que isso se dá no curso do tempo e em todos os cantos do mundo – cada um à sua maneira e costumes, evidente – porque a dança não foi descoberta, tampouco nasceu ou surgiu de alguém em alguma região, e nem poderia, já que, como visto, dança é movimento e esse sim é unanimidade, independentemente de quaisquer outros fatores. Ela passa, dessa forma, pelos diversos períodos evolutivos, sendo atemporal.

Durante muito tempo, a referência em dança foi o balé clássico, privilegiando o virtuosismo, rigidez e leveza para que seus movimentos aconteçam. Com o tempo, a dança vai incorporando outras configurações. Os movimentos passam a buscar, novamente, inspiração na natureza, partindo de uma improvisação do próprio dançarino e não de passos preestabelecidos. E então, uma infinidade de outros dançarinos começam a pesquisar dança moderna, dança contemporânea, outras possibilidades, poéticas e corpos (SOUZA, 2011).

Nesse sentido, para Maria Mommensohn66: “os livros sobre dança, já há algum tempo, ultrapassaram a era dos manuais técnicos e dos compêndios sobre a história ocidental do balé. Atualmente, essas obras estão inseridas em um movimento mais amplo e inclusivo da dança como arte e arte contemporânea” (2006, p. 15). E ainda: “a dança perdeu a universalidade universalizante garantida pelo balé ocidental e conquistou seu lugar na contemporaneidade da multi, pluriglobalização”.

E é nesse embalo que começamos a entender a dança também como política, já que atrelada à forma como o corpo se entende no tempo e espaço, frente a todos os acontecimentos e percepções desse mesmo corpo com ambientes externos e internos.