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Entre os autores no mundo todo que se preocupam com a qualidade social da Educação, situa-se, com reconhecimento, o autor referência para este trabalho, cuja teoria e práticas inspiram aqueles que atuam na perspectiva democrática e libertadora. Destaque-se, entre as ações de Paulo Freire, sua gestão na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, que inspirou outras no país e fez parte do movimento Escola Cidadã (GADOTTI, 2010), como será tratado no capítulo 3. Neste, cabe-nos expor a compreensão de cidadania que orienta esta tese, após a revisão anterior e o estudo de algumas obras do educador.

Ao “pé da letra”, encontramos em Freire a definição de cidadania como “condição de cidadão, quer dizer, com o uso dos direitos e o direito de ter deveres de cidadão” (FREIRE, 2001b, p. 25). Quer dizer: usufruindo tudo aquilo a que tem direito o cidadão, encontrando-se em situação de servir-se do que lhe é seu, ou deveria ser, por direito. Estando o sujeito, ainda, em situação de ter deveres, pois ter deveres também é um direito. Eis o cidadão: “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado” (p.25).

Mas, como chama atenção Oscar Jara (informação verbal)30, é preciso ler Freire considerando os contextos31 em que seus textos foram escritos e relê-los em diálogo com os

28 A ideia de cidadania planetária será tratada ao final deste capítulo.

29 Inspirados, também, pelas ideias de Freire, que também fundamenta o projeto da Escola Cidadã (ROMÃO,

2000) que será tratado no capítulo 3 e possui compreensão semelhante.

30 Anotações pessoais da palestra do pesquisador peruano Oscar Jara apresentada em 19 de setembro de 2014

(data em que Freire completaria 93 anos se estivesse vivo) durante o IX Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, em Turim (Itália).

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dias de hoje. Nesse sentido, consideramos que seria redutor diante da obra e legado freiriano considerar cidadania como uma condição relacionada apenas a direitos e deveres, como uma qualidade a priori. Freire dedicou sua vida à defesa da humanização dos homens e a construção de outras realidades; e, para isso, por uma Educação desveladora, libertadora. Sempre defendeu que estar no e com o mundo, intervindo criticamente nele, deveria objetivar mais vida para todos, não uma adaptação acrítica. A centralidade da relação entre os sujeitos é premissa em sua teoria, concebendo-os como autores de sua própria história e comprometidos com outro mundo, não mero repetidores do que aí está, não objeto da vontade de outros, portanto, engloba a luta pela concretização de direitos e deveres, mas vai além.

Não seria possível compreender a ideia de cidadania em Freire como uma condição entregue por alguém ou por um poder aos sujeitos, ainda que direitos e deveres por meio dos quais, em parte, se realiza a cidadania em democracias sejam determinados em leis nacionais e declarações internacionais. Compreendemos que cidadania seria uma condição a ser conquistada não apenas por aqueles que não a usufruem ou o fazem em parte, mas por quem também deseja criar e/ou modificar novos direitos e deveres e, principalmente, pelos que almejam um mundo mais humano para todos. Cidadania seria um estado constante de posse da realidade, e por isso, implicaria ao sujeito desenvolver criticidade na sua relação com o mundo e os outros.

Encontramos em Freire algumas passagens que confirmariam a ideia de cidadania como uma condição que não é pronta, que precisa ser construída, “inventada” pelos sujeitos em comunhão com os demais. Para isso, a Educação pode ser grande aliada. “Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção da cidadania” (2009b, p. 41). A Educação que contribui para “inventar” a cidadania é “problematizadora”, fundada na criatividade, na ação e na reflexão sobre a realidade, que implica politicidade.

Cidadania também aparece em Freire como resultante de luta política.

Assistimos a uma sessão de um “Círculo de Cultura” em que militantes armados se alfabetizavam, aprendiam a ler palavras fazendo a releitura do mundo. O aprendizado da escrita e da leitura da palavra, que faziam na compreensão do discurso, emergia ou fazia parte de um processo maior e

31 Um dos contextos é o de que Paulo Freire foi exilado político, perseguido por ser um dos responsáveis pelo “Programa Nacional de Alfabetização” que pretendia estender o “Sistema Paulo Freire para alfabetização em tempo rápido” a 1.834.200 analfabetos, na faixa de 15 a 45 anos, em 1964, durante o governo João Goulart,

segundo site comemorativo dos 50 anos de Angicos (cidade do Rio Grande do Norte onde a primeira experiência de alfabetização foi realizada) e do Programa Nacional de Alfabetização (INSTITUTO PAULO FREIRE, 2013). Retornou ao país em junho 1980, aos 57 anos.

41 mais significativo – o da assunção de sua cidadania, o da tomada da história em suas mãos. É isso que sempre defendi, é por isso que sempre me bati por uma alfabetização que, conhecendo a natureza social da aquisição da linguagem, jamais a dicotomize do processo político da luta pela cidadania. (FREIRE, 2009b, p. 102)

A cidadania demandaria aos sujeitos tomar a “história em suas mãos” o que implicaria, necessariamente, consciência sobre a natureza política de sua intervenção no mundo. A clareza de posição política que todos precisamos desenvolver permeia a obra freiriana e, em resumo, diria respeito a reconhecer que é sempre a favor de quê ou de alguém, contra alguma coisa ou alguém e que sempre há um por que em nossos atos (2001b, 2009b) e no mundo.

Também em Política e Educação (2001b, p. 13), Freire afirma: a “cidadania está relacionada ao poder que exercemos na cidade”, referindo-se ao fato de que a somatória das posições políticas dos sujeitos é que levam as ações públicas em uma direção ou em outra. São “os nossos sonhos que ‘embebedam’ a política, a defesa de quem e de que as decisões públicas são concretizadas”. Por implicar decisão/ escolha para intervir no mundo, o exercício da cidadania não é neutro. Pode ser feito de maneira crítica ou alienada, buscando a construção de um mundo mais justo ou contribuindo com a mercantilização das relações políticas, sociais, culturais, a desumanização.

Nesse sentido, compreendemos que cidadania – no usufruto de direitos e deveres - pode estar comprometida com o favorecimento apenas de quem a exerce ou de todos, em oprimir ou libertar, com a manutenção do atual contexto ou com sua transformação; dependeria do “serviço” a que se presta. O exercício da cidadania resulta em ações públicas em um sentido ou em outro.

Imaginemos que o “cidadão” possa ser adjetivado, pois a adjetivação é um recurso recorrente na obra freiriana para qualificar e distinguir tipos, como “curiosidade ingênua”, “curiosidade epistemológica” e “consciência crítica”. Não encontramos em Freire o uso desse recurso para “cidadania” ou “cidadão”, mas ousamos - como ele assim incentivava - a qualificar “cidadãos”, apenas como exercício de reflexão quanto ao comprometimento político dos sujeitos.

Haveria o cidadão que, ao usufruir/praticar um direito e/ou dever, não reflete sobre essa ação e mal tem conhecimento a respeito dessas prerrogativas. Vive sua “cidadania”, mas não tem consciência da politicidade de seus atos, da sua importância, sendo incapaz de se comprometer com a construção de novas realidades. Nesses casos, entendemos que o sujeito comporta-se como um “cidadão” ingênuo, não crítico.

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O cidadão crítico, por sua vez, como a qualificação sugere, seria o sujeito com clareza de sua politicidade e comprometido com as lutas de humanização. Suas ações e reflexões caminhariam no sentido da efetivação de direitos e deveres para todos, ampliação de novos visando a justiça local e planetária. Enfim, compromissada com a vida coletiva.

Na contramão, o “cidadão” consciente da politicidade de seus atos, mas que opta pela omissão, pela manutenção e/ou aperfeiçoamento de estruturas desiguais e opressoras. Seria um “cidadão” egoísta preocupado apenas com interesses que lhe são próprios, sem compromisso com os demais. Afinal, a condição de usufruir de direitos e deveres também recai sobre homens sem qualquer preocupação com o outro, com a melhoria da vida de todos.

Não temos a pretensão de propor ou teorizar a respeito desses tipos de “cidadãos” e continuaremos associando cidadania à luta permanente dos sujeitos para conquistar uma condição digna para si e os demais. Apontamos tal distinção apenas para chamar atenção para a politicidade inerente à qualquer ação humana e também para enfatizar a necessidade de uma Educação comprometida com a humanização e para a formação de cidadãos “críticos”.

Temos nos referido muitas vezes à humanização porque Freire (1987, 1996, 2009b) defende que faz parte da natureza humana a busca constante dos sujeitos em “ser mais”, como sentido de sua existência. É recorrente em sua teoria a proposta de “vocação ontológica para a humanização”. Por ser vocação, não é inata ou determinada pelas estruturas, mas algo que se constitui na história como possibilidade.

É a própria natureza humana em seu modo de existir na história – por implicar um constante autofazer-se no mundo humano – que, no entender de Freire (1995; 1997), o habilita a definir a vocação ontológica do ser humano como a luta pela humanização. Ante as realidades históricas de desumanização de milhões de pessoas no mundo todo (que constitui a própria negação dessa vocação ontológica), a luta por humanização funda-se antropologicamente e eticamente no processo de construção desse ser inconcluso, que busca recuperar sua humanidade e/ou superar o atual estágio de afirmação de seu ser mais. Esse é o sentido antropológico que devemos conferir à existência humana. (ZITKOSKI, 2010, p. 370, grifos do autor)

A busca constante por “ser mais” dialogaria com a ideia de cidadania. Afinal, ambas configuram-se como luta constante por condições que permitam aos sujeitos (individual e coletivamente) usufruir de meios promotores dessa vocação de humanização. Frequentar escolas compromissadas com uma Educação promotora de autonomia, ter acesso a meios que promovam saúde e ter o direito de se manifestar, entre muitos outros, assim como cumprir deveres, são meios que contribuem com a construção de níveis elevados de humanização.

43 No entanto, usufruir de direitos e deveres requereria ao sujeito, em um primeiro momento, formar um saber comum a respeito de sua condição de cidadão, uma tomada de consciência a respeito da realidade vivida. Mas, por ser espontânea essa primeira aproximação, não seria suficiente para levá-lo a compreender as questões relacionadas à condição em que se encontra, muito menos a lutar pela cidadania. Demandaria permanente esforço individual e coletivo no mundo, e transformando-se com ele, participando de contínuo processo de conscientização. Quer dizer, o exercício da cidadania exigiria consciência crítica para autêntica posse da realidade. Como escreveu Freire (1979, p. 16): "a conscientização é isto: tomar posse da realidade".

Trataremos do processo de conscientização, que nunca se esgota, por isso é permanente, no capítulo dedicado à Educação cidadã. Mas já antecipamos que, nesta tese, educar para a cidadania implicaria contribuir com o desenvolvimento crítico dos sujeitos, para que sejam capazes de optar, de decidir, de romper, enfim, de agir conscientemente e de perceber criticamente sua presença no mundo, não simplesmente se adaptar a ele. A aprendizagem de caráter utilitarista não seria capaz de contribuir com essa formação.

Importa, neste ponto, enfatizar a nossa compreensão de cidadania a partir da revisão realizada até aqui: condição a ser permanentemente conquistada por meio do desenvolvimento da consciência crítica.