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O homem, com sua “vocação para a humanização”, para “ser mais” (FREIRE, 2009b), tem desenvolvido meios capazes de diminuir as distâncias físicas e aproximar os sujeitos usando sua criatividade para oferecer condições que ampliem as oportunidades de diálogo. Não é preciso citar números para comprovar crescentes alternativas que proporcionam a homens, mulheres, crianças, jovens e idosos(as) a possibilidade de dialogarem (no senso comum e freiriano) de forma síncrona ou assíncrona por texto, voz e/ou imagem. São experiências diferentes da realizada entre esses sujeitos reunidos no mesmo local, podendo ser tanto melhores quanto piores.

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Em uma perspectiva freiriana, diálogo não é apenas conversa entre pessoas, mas um processo dialético-problematizador, que permite aos sujeitos dizer o mundo segundo o modo de ver de cada um, transformando-o e a si mesmo (FREIRE, 1987). O diálogo-dialético, condição para uma Educação emancipadora, não seria possível apenas a partir do encontro de sujeitos em um mesmo espaço físico; nem exclusivo à sincronicidade da fala imediata.

Problematizações, compartilhamento de contradições, busca de soluções e ações que contribuam para mudar a realidade opressora são realizados por meio de muitos recursos e em diferentes intervalos de tempo. Se o calor do debate presencial pode contribuir para que os sujeitos alcancem níveis maiores de consciência acerca do objeto/questão, o espaço entre mensagens assíncronas (por exemplo), resultando em maior tempo para reflexão e inclusão de considerações não deixaria por menos, podendo ser até mais - por que não? Os tempos podem ser muitos, mas não impossibilitam o diálogo, que também varia quanto à profundidade.

As tecnologias mudam, os princípios podem permanecer, serem alterados ou excluídos. Compartilhando da filosofia dialética, Freire defendia o movimento, o mundo processual, a possibilidade. Lutava contra a ideia de uma realidade acabada, tal como reconhecia o inacabamento dos seres como fenômeno vital. “Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele” (1996, p. 53). Apostava na conscientização dos sujeitos para a construção esperançosa do futuro. Sua visão de mundo e de epistemologia parece incompatível com a ideia de que sua concepção de diálogo só pudesse ser restrita ao encontro “presencial”.

Freire escrevia cartas, suas cartas se transformaram em livros, seus livros tem a marca dialógica na escrita - aberta ao outro. Podemos sentir sua proximidade durante a leitura e com ele dialogarmos a respeito de nossas dúvidas, buscando sugestões em suas linhas que aprofundem nosso entendimento. Não foi preciso encontrá-lo pessoalmente para com ele dialogarmos e aumentarmos o nível de criticidade acerca de algumas questões. O conteúdo por ele produzido, sua linguagem, sua perspectiva, contribuíram para muitas problematizações, para exercícios dialéticos sobre o mundo. Esta tese é um exemplo, finalizada quase vinte anos após sua morte.

[...] o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor (FREIRE, 1987, p. 72, grifo nosso).

93 Portanto, o sentido de diálogo em Freire não se restringiria ao encontro de pessoas em um mesmo espaço e ao mesmo tempo - considerando os sentidos do senso comum. Dependeria da “presença” daqueles que se educam, assim como a presença do sujeito (cognoscitivo) diante do objeto (cognoscível), mesmo inanimado. Com presença, queremos dizer estar presente: mobilizando sentidos e conhecimentos para novas construções; queremos apontar o oposto da distância, a proximidade.

Em Freire, “presença” tem a especificidade da relação dos sujeitos “no e com o mundo”, em uma relação dialógica e dialética:

Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo mas, ao mesmo tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a mim. Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica, política e social que a promoção do suporte a mundo nos coloca. Renuncio a participar a cumprir a vocação ontológica de intervir o mundo. O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História (FREIRE, 1996, p. 53, grifo nosso)

Presença, no sentido freiriano, é construção “que não se faz no isolamento”. Mas em diálogo com o outro, consigo mesmo, com o objeto, com a realidade, sendo o diálogo uma categoria sine qua non do conhecimento e do processo de conscientização dos sujeitos de sua “presença no e com o mundo”. Questionamentos, hipóteses, análise de contradições, dúvidas, generalizações implicam um movimento dialógico de construção, que exige dos sujeitos abertura, escuta e dizer sua própria palavra. “É nessa perspectiva mais ampla de diálogo como categoria de conhecimento que Freire aposta sua teoria”, acredita Mafra (2007, p. 160).

A força que move a curiosidade, própria do ser como humano, em um primeiro ato para que sua consciência ingênua movimente-se em direção a graus maiores de criticidade, promove a situação dialógica essencial para a Educação. Mesmo estando sozinho, educa-se

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com outros porque se volta aos seus conhecimentos anteriores - fruto do diálogo com outras vozes - dialogando consigo e com o objeto80.

Sem presença, sem proximidade, não há diálogo. E, na ausência deste, não há Educação. Então, qual o sentido da expressão Educação a Distância? Não estaríamos negando a própria condição do diálogo, a presença, a proximidade? Que diferença faz os sujeitos dialogarem a um metro ou mil quilômetros? Somente estando próximo, presente, para se instaurar a “situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza” (FREIRE, 1987, p. 83).

Diversos autores já apontaram a incongruência do uso do adjetivo “distância” à palavra Educação, pois não pode haver Educação onde há distância. Mas, para além dessa razão, o uso da expressão estaria com os dias contados. Não pela substituição por termos mais relacionados aos recursos, metodologias e ideologias (ex: Educação on-line). Mas pela crescente convergência entre as modalidades presencial e a distância, expandindo tempos e espaços. E pela percepção cada vez maior de que se trata em essência de Educação, nem presencial nem a distância.

Em um futuro próximo, em vez da contraposição, como tem acontecido historicamente, valerá mais “compreender o que podemos agregar de uma modalidade à outra, caminhando rumo à Educação de qualidade, sem interessar quais presenças e distâncias são adotadas nas relações pedagógicas”, deseja Mill (2012, p. 25). Ele compartilhou a informação de que quase a totalidade dos professores com os quais trabalha em formações a distância na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) “alteraram sua prática no presencial depois que passaram um semestre na EaD”81. A vivência parecer ser mesmo o melhor caminho.

Para Nunes (2009, p. 2), a integração já estaria em curso há pelo menos vinte anos no mundo e “é provável que passe a se constituir norma e prática corriqueira de todos os sistemas. Essa nova maneira de Educação, na qual a presencialidade se dará por um amálgama de formas e usos de tecnologias, ainda não tem nome”. Particularmente, esperamos que seja apenas “Educação”.

O oferecimento de disciplinas a distância em cursos presenciais82 estimulada pela portaria n. 4.059/04 (BRASIL, 2004) incentiva a incorporação na modalidade presencial em até 20% do currículo de um curso de graduação. Podemos mencionar também o crescente

80Como lembra Mafra (2007, p. 163), “a rigor, como descreve Bakhtin (1978), todo discurso é resultado de muitas vozes que falam por meio do sujeito falante. Para ele, o ‘eu é sempre social e não individual”.

81 Conforme breve relato durante a banca de qualificação da tese, em 27/09/2013.

82 Em 2012, os participantes do Censo EAD.BR (ABED, 2013) indicaram 6.500 disciplinas na modalidade

95 movimento de professores dessa modalidade que, por conta própria, disponibilizam materiais e dialogam com os estudantes em plataformas da Internet, fora de sua carga horária de trabalho presencial. Essa situação, inclusive, tem provocado investigações e reflexões sobre mudanças no trabalho docente com a apropriação de tecnologias digitais (KENSKI, 2013; MILL, 2012).

No contexto universitário brasileiro, Kenski (2013) acredita que a integração entre as modalidades depende mais de mudanças culturais do que estruturais. Sugere que a superação deva ser iniciada pela compreensão de que se professores e estudantes pertencem à mesma instituição, seus direitos e deveres devem ser os mesmos. A partir daí, o caminho seria o aproveitamento das particularidades de cada modalidade para a diversificação de práticas e procedimentos, o enriquecimento do aprendizado coletivo e as mudanças há muito reclamadas às aulas presenciais.

É possível começar a flexibilidade curricular e a integração entre docentes, discentes e a sociedade pela própria intercomunicação e colaboração entre os participantes das ações acadêmicas nas duas modalidades. Eventos virtuais, encontros, trocas e parcerias entre todos os professores e alunos indistintamente podem auxiliar a “romper o muro” das salas de aula em direção a movimentos de inovação (KENSKI, 2013, p. 80).

O tratamento desigual de educandos, docentes e equipes de cursos a distância em IES, apontado por Kenski (2013), seria incompatível com o que determina a LDB (BRASIL, 1996) como um dos objetivos da Educação, problematizada nesta tese. Como promover a cidadania se direitos e deveres não são respeitados, se a desigualdade marca os sujeitos? Onde fica o respeito e a valorização da diversidade, também de formas de organização de um processo educativo? E o exercício democrático de busca de soluções para que a Educação possa atender às necessidades de parte dos sujeitos que não podem se dirigir à universidade, para citarmos a justificativa básica para adoção da modalidade?

A formação cidadã exige que as IES se assumam como um “centro de direitos e deveres” e oportunizem a “experiência tensa da democracia” (FREIRE apud GADOTTI, 2010, p. 69), como exercitava a Escola Cidadã, tratada no capítulo 3. Não é fácil, mas não se constrói uma sociedade de caráter planetário com preconceito, o sufocamento do novo ou rejeição do velho sem o aproveitamento de suas características potencialmente humanizadoras.

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O novo nasce do velho, como bem constatou o pensamento dialético de Hegel83. É a contradição e o movimento que constituem profundamente a realidade e a história. Como em outros períodos, a Educação vive uma série de conflitos, de oposições, de lutas internas e com outros campos da qual pode surgir o novo, mais tarde, novamente superado. As apreciações desfavoráveis e os problemas associados à modalidade fazem parte desse movimento que - torcemos e trabalhamos - contribuam com novas práticas rumo à liberdade dos sujeitos.

A realidade, de fato, é um processo incessante e inseparável de ser, não-ser e de vir a ser. E, se isso gera insegurança e dramaticidade na vida das pessoas, representa também a possibilidade de superar a estagnação e criar novas situações (SEMERARO, 2011, p. 89).

É inegável que tecnologias digitais farão cada vez mais parte da vida humana e que essa presença traz benefícios e prejuízos, como tudo em nossa existência. Como é compreensível que elas estejam provocando tensões no campo da Educação, questionando práticas, apontando soluções, gerando danos também. Novas Educações são criadas neste momento, embrionárias de outras, ainda que, sob a perspectiva dialética, possam não vir a ser necessariamente “novas”, ou seja, a superação do que existe; tais como variáveis em suas opções políticas.

Na próxima página, apresentamos a Figura 3, uma tentativa gráfica de apresentar os pontos principais deste capítulo.

83 HEGEL, Georg W. F. Fenomenologia do Espírito. 7. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. (Coleção:

97 Figura 3: Mapa-síntese do capítulo 484.

Fonte: Elaborada pela autora.

84 O mapa é uma tentativa didática de representar o conteúdo tratado no capítulo. Como ilustração, possui limites quanto ao exposto.

CAPÍTULO 5

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5 UM OLHAR FREIRIANO SOBRE TEORIAS DE EAD

Há algum tempo existe um esforço por parte de alguns pesquisadores em formular uma fundamentação específica para a Educação a Distância, a partir de experiências desenvolvidas. Em 1972, o teórico Michael Moore (2002) expressava preocupação com a necessidade de definir e descrever a EaD, discriminando seus componentes e identificando os elementos críticos das diversas formas de ensino e aprendizagem a distância. As experiências que vinham sendo desenvolvidas no âmbito de universidades a distância – tais como a Universidade Estatal a Distancia (UNED) na Costa Rica, a Universidade Nacional de Educação a Distância (UNED) na Espanha, a Universidad Nacional Abierta (UNA) na Venezuela e a Open University no Reino Unido – apontavam características que seriam capazes de definir sua natureza, conferindo-lhe identidade e legitimidade própria.

Ainda assim, pesquisadores como Garrison (2000) questionam se as propostas teóricas têm conseguido acompanhar os recentes avanços tecnológicos; outros como Watson85 (apud García Aretio, 2011) acreditam que o desenvolvimento da EaD se deve mais a essas evoluções do que à produção acadêmica, ainda que esta tenha crescido consideravelmente nas últimas décadas.

De qualquer modo, não podemos nos se furtar de refletir sobre parte da produção teórica existente na EaD, tendo em vista o caráter filosófico desta tese e seu objetivo em discutir premissas para a formação cidadã a distância. Historicamente, essas teorias alimentam práticas (e vice-versa) e auxiliam a tomada de decisões em diversos níveis (políticos, pedagógicos, econômicos).

A partir de um recorte que abrange o final dos anos 1960 e o início do século XXI, este capítulo começa com uma revisão de algumas teorias em que procuramos observar questões referentes à autonomia de estudantes e educadores, ao diálogo entre os sujeitos e/ou à estrutura do ensino. A revisão também sugere que essas teorias, mesmo que em parte e sendo algumas delas muito antigas, ainda orientariam ações na modalidade, enquanto propostas mais recentes ainda não foram totalmente apropriadas pela Educação. Depois, apresentamos uma reflexão, a partir de uma perspectiva freiriana, acerca do que foi observado quanto àquelas questões. Por fim, discutimos uma abordagem que seria mais adequada para

85 WATSON, D. Pedagogy before technology: Re-thinking the relationship between ICT and teaching.

101 formações de caráter emancipatório, considerando para isso que a maioria dos cursos a distância atualmente é desenvolvida pela Internet (ABED, 2013).

Grosso modo, este capítulo relaciona aportes freirianos às teorias da modalidade, ainda que essas tenham sido desenvolvidas sob perspectivas distintas ou nem sempre passíveis de reconhecimento, o que não invalidaria o esforço de realizar uma leitura crítica dessas produções. Trata-se da costura de um pano de fundo para condições de uma Educação cidadã a distância a serem discutidas no próximo capítulo.