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Organização participativa e flexível do ensino

Diante de uma perspectiva de Educação que tem os sujeitos como centro do processo educativo, que desenvolvendo sua criticidade se voltam à realidade e a relacionam ao conhecimento já produzido pela humanidade, em um movimento de construção de graus mais elevados de conscientização, não seria possível pensarmos em um currículo fechado à prática social. Se a finalidade desse processo de conhecimento é justamente a construção de uma cidadania de caráter planetário, que implica profundas transformações na atualidade, os aspectos conceituais caminham de mãos dadas com a cultura e a vida dos participantes.

Uma prática encontrada em várias experiências da Escola Cidadã, da qual esta tese não pode se esquivar, é a organização do ensino a partir de uma investigação socioantropológica. Trata-se de um processo de pesquisa que envolve diversos sujeitos para concretizar a dialética da construção do conhecimento que articula o científico sistematizado ao senso comum (AZEVEDO, 2007), ou ao saber de pura experiência feito, como se referia Freire (1979). Também chamada de Leitura do Mundo (LM), a partir de sua teoria, a investigação é uma construção coletiva de interpretação da realidade pelos sujeitos que dela

163 fazem parte (ANTUNES, 2002). “É o momento da objetivação do senso comum em conteúdo curricular significativo” (AZEVEDO, 2007, p. 206).

Na modalidade presencial, esta investigação/leitura pode começar com um levantamento realizado pelos professores na comunidade – com auxílio de outros funcionários, pais e estudantes – buscando “fazer emergir as contradições e incoerências entre o falar e o agir, entre a percepção da realidade e de si e as pautas de comportamento cotidiano, entre o sonho e a realidade, entre o real e o impossível” (BRANDÃO128 apud AZEVEDO, 2007, p. 205). A sistematização das falas das pessoas é analisada pela comunidade e, a partir das expressões e fenômenos mais significativos mapeados naquele momento, os profissionais da Educação realizam a organização do ensino nas áreas do conhecimento. Dessa maneira, a construção de conhecimento pressupõe “uma concepção de realidade referenciada na filosofia da práxis” e o ensino não é organizado “no seu absoluto e tampouco é resultado acabado que mecanicamente se transforma em ação pedagógica” (AZEVEDO, 2007, p. 206). Tratamos brevemente desse processo de construção do currículo no capítulo 3, quando Freire foi secretário de Educação.

Para a modalidade discutida nesta tese, os Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância (BRASIL, 2007, p. 7) também valorizam a organização curricular interdisciplinar, contextualizada, que permita aos estudantes realizar um diálogo entre o conhecimento historicamente acumulado, a sua cultura e a dos outros, ainda que o documento não mencione quais sujeitos poderiam ser envolvidos nesta organização:

Daí a importância da educação superior ser baseada em um projeto pedagógico e em uma organização curricular inovadora, que favoreçam a integração entre os conteúdos e suas metodologias, bem como o diálogo do estudante consigo mesmo (e sua cultura), com os outros (e suas culturas) e com o conhecimento historicamente acumulado.

Portanto, a superação da visão fragmentada do conhecimento e dos processos naturais e sociais enseja a estruturação curricular por meio da interdisciplinaridade e contextualização. Partindo da ideia de que a realidade só pode ser apreendida se for considerada em suas múltiplas dimensões, ao propor o estudo de um objeto, busca-se, não só levantar quais os conteúdos podem colaborar no processo de aprendizagem, mas também perceber como eles se combinam e se interpenetram (BRASIL, 2007, p. 9, grifo nosso).

A necessidade de articulação entre o conhecimento científico e a realidade dos sujeitos aparece em algumas entrevistas realizadas para esta tese. Explicitamente, Beatriz Tancredi

128 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante socioantropológica. Texto de apoio à assessoria da

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(informação pessoal) defende como condição um currículo “inclinado por teorias críticas (Freire, Kemis, Grundy, Gimeno Sacristán) [...] que toman en cuenta la realidad histórica y el contexto socio-cultural para las prácticas educativas y en la acción humana transformadora”. A pesquisadora acredita que tais teorias, em lugar de favorecer um corte mais academicista ou tecno-instrumental, favorecem as relações teoria-prática, reflexão-ação. Beatriz Tancredi (informação pessoal) também aposta na organização do ensino a distância considerando a definição de “unidades curriculares integradoras de áreas del conocimiento más que las clásicas disciplinas aisladas”.

Como bem define Silva (apud PADILHA, 2003, p. 117), “o currículo é o lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. [...] é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade”.

Na acepção freiriana, “currículo é [...] a política, a teoria e a prática do que-fazer na Educação, no espaço escolar, e nas ações que acontecem fora desse espaço, numa perspectiva crítico-transformadora” (SAUL, 2010, p. 109). Sua teoria, essencialmente democrática, e a prática de investigação socioantropológica do movimento Escola Cidadã, mais do que revelar que regimentos, programas de ensino, materiais didáticos, planos de ensino e outros documentos não deveriam ser prescritos e/ou elaborados apenas por especialistas, ressaltam a necessária participação dos educandos na construção do currículo – por meio da Leitura do Mundo. Desde seus primeiros escritos, Freire aposta em processos fundamentados nos e com os educandos para a organização do ensino (-aprendizagem).

Escolhemos a palavra “participativa” para a condição organização participativa e flexível do ensino com vistas a enfatizar que não se trata apenas de construir o currículo a partir dos conhecimentos e das experiências dos educandos (e demais sujeitos), o que por si só já implica um elemento de distinção de propostas emancipatórias. Mas de envolvê-los ativamente neste processo por meio da LM.

É para esse ponto crucial que pretendemos aqui chamar atenção, tendo em vista que é mais comum em experiências a distância (quando encontrada) a coleta de informações acerca dos estudantes e produção de materiais antes do início do curso. Ainda que muitas formações a distância sejam desenvolvidas sob redes e comunidades (CARVALHO, 2011b) e portanto contemplando maior participação dos educandos nos rumos do ensino, haveria conflito entre a condição aqui defendida e a prática de grande parte das formações a distância, em que o currículo é definido a priori e em seu absoluto. Muitas vezes, sequer contemplando os contextos, anseios e conhecimentos dos participantes. Mas, principalmente, sem contar com o

165 envolvimento deles em algum momento dessa organização, como experiência conscientizadora.

Reconhecemos que uma grande diferença entre as modalidades presencial e a distância costuma ser justamente a preparação minuciosa da formação antes do cadastramento dos estudantes, prática fundamental para a maioria dos modelos de EaD. Com certa razão, os profissionais responsáveis preocupam-se com a qualidade dos conteúdos e propostas de atividades, com as dúvidas que podem surgir no estudo dos materiais (não sanadas imediatamente com o professor, como na sala de aula), entre outros motivos. Mas aqui defende-se nem a organização em seu absoluto (sem a leitura coletiva do mundo), nem a não- organização do ensino antes da chegada deles, e sim, a busca de equilíbrio por meio da flexibilidade.

Olhemos para essa condição como um princípio, em sintonia com a condição “trabalho coletivo”. É orientador para que possa, sem perda de sua essência, atender modelos diferentes de EaD e particularidades da modalidade, em especial a participação de sujeitos de vários lugares, o que exige a criação de novas práticas de investigação (coletiva) socioantropológica.

A responsabilidade pela organização do ensino continua sendo dos profissionais, cabendo-lhes “tomarem decisões por antecipação das situações [de ensino] e ressignificar o currículo prescrito, que ganha novos contornos na prática segundo a abordagem pedagógica” (ALMEIDA; VALENTE, 2011, p. 15). No entanto, com a participação dos educandos por meio, por exemplo, da Leitura do Mundo.

Por conta da prática conscientizadora implícita na Leitura (coletiva) do Mundo, como brevemente detalhada no capítulo 3, a condição organização participativa e flexível do ensino difere-se da etapa inicial encontrada em formações a distância para caracterização do “público-alvo”, incluindo aí eventualmente a busca por informações por infraestrutura tecnológica e de estudo que possuem os educandos. A busca por informações prévias dos estudantes da EaD e seus contextos pode até ser uma das ações de Leitura do Mundo (LM). Mas a LM, em absoluto, não se resume a isso, pois esta é uma ação coletiva e dialógica dos sujeitos. Não se trata da leitura de uns sobre os outros, mas de todos juntos, compartilhando suas leituras e informações e se voltando a elas sistematizadas para elencar o que é mais significativo e orientará toda ou parte da organização do ensino-aprendizagem a distância. Essa etapa da organização do ensino (LM) dá a conhecer e já inicia a problematização das diferentes realidades dos sujeitos envolvidos, para a busca de caminhos que possam transformá-las.

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A Leitura do Mundo pode ser reinventada para atender as particularidades da modalidade a distância. Afinal, as tecnologias digitais129 tornam possíveis, por exemplo, o compartilhamento da leitura dos educandos sobre sua comunidade local, sua própria existência, as contradições que enxergam no mundo, seus desejos e comportamentos. Dessas leituras compartilhadas pelos educandos, sistematizadas pelos educadores e depois problematizadas com os educandos podem ser retirados os temas, pelos educadores, para serem vistos “sob as óticas de todas as disciplinas do currículo escolar, buscando a articulação entre as diferentes visões” (ANTUNES, 2002, p. 114). Podemos perceber, inclusive, uma conexão com outras condições como “trabalho coletivo”, “diálogo mediatizado pelo mundo” e “educar pela cidadania”.

Os participantes podem revelar muito de si, de suas culturas e do meio em que vivem ao longo de um curso a distância. Mas aqui trata-se de uma etapa anterior, para a qual seriam criadas estratégias para o conhecimento coletivo do “mundo” para preparação (ou parte) da formação - o que se distingue do levantamento de informações sobre eles e a instituição. Quando possível, uma formação a distância pode contemplar a Leitura do Mundo em momento(s) presencial(is), como tivemos a oportunidade de vivenciar no Projeto SEJA Salvador130, envolvendo os profissionais do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA) da capital baiana (CARVALHO; GRACIANI; OLIVEIRA, 2010).

No caso dos estudantes, geralmente excluídos da organização do ensino, a participação propiciaria maior compromisso com o processo educativo que se inicia com eles, no qual veem sentido e se reconhecem. A motivação dos estudantes, sempre um desafio para a Educação, ainda mais a distância131, tende a ser maior porque se respalda no concreto vivido, está próximo, referendado nos participantes. Trata-se também de uma oportunidade para assumir a co-responsabilidade por decisões que dizem respeito a um coletivo, seja em relação ao ensino seja para transformação dos contextos e da situação existencial dos sujeitos. Afinal, um dos objetivos da Leitura do Mundo, o sentido do estudo da realidade, é favorecer o

129Para a discussão da condição “organização participativa e flexível”, ainda que ela possa ser adaptada a outros

contextos da modalidade, consideramos a Internet como infraestrutura para as formações.

130 Desenvolvida sob responsabilidade do Instituto Paulo Freire, “a partir de uma demanda da Secretaria

Municipal de Educação, o projeto previa o atendimento direto por meio de ações diversificadas e articuladas, presenciais e a distância, de cerca de 1200 profissionais da educação (professores, coordenadores pedagógicos e equipes técnicas), além de envolver indiretamente cerca de 20.000 educandos matriculados atualmente na rede municipal de ensino. Também contemplou a formação permanente de 15 educadores formadores responsáveis pelas ações de assessoria. Além disso, buscou favorecer a implementação de mudanças qualitativas no

currículo da escola noturna, propondo a elaboração coletiva da Proposta Político Pedagógica para a EJA”

(CARVALHO; GRACIANI; OLIVEIRA, 2010, p. 1).

167 processo de autoconhecimento e viabilizar as ações coletivas de intervenção na realidade (ANTUNES, 2002).

Não há como negar que a Leitura do Mundo promove uma organização curricular interdisciplinar e contextualizada, enraizada na realidade dos educandos (e dos professores), em suas culturas, de modo que os conteúdos de fato possam contribuir para a construção de “uma sociedade socialmente justa”, como propõem os Referenciais de Qualidade para Educação Superior a Distância (BRASIL, 2007, p. 9). Nem que esta investigação socioantropológica seria o passo inicial mais coerente com o compromisso de conscientização pelos sujeitos.

Não é objeto desta pesquisa o aprofundamento desta “condição”, até porque não estamos examinando um modelo de EaD, e/ou em nível específico, para termos a oportunidade de discutir uma prática e dela tirar caminhos. Refletimos, portanto, a grosso modo. Mas pretendemos, em futuro próximo, nos dedicar a vivenciar e pesquisar essa condição, especificamente, expandindo a contribuição que no momento não podemos fazer.

Não se trata, aqui, de sugerir práticas. Mas de afirmar que, sob a racionalidade emancipatória, um curso a distância não poderia ser compreendido com um produto pronto disponibilizado para “tutores” (também) e educandos. E sim como “[...] um processo em constante construção, que se faz e refaz. Fundamentalmente, como um caminho onde a participação dos atores que interagem no processo educativo é condição para sua construção” (SAUL, 1998, p. 155).

Sob esta racionalidade, incluímos à organização participativa o adjetivo flexível para a organização do currículo. Não se trata tão somente de incluir um termo que vem sendo muito utilizado na EaD ou porque a ideia de flexibilidade seria própria da natureza da modalidade a distância, mesmo que a Educação presencial também a persiga. Pela revisão de teorias no capítulo anterior, vemos o destaque dado à flexibilidade de os educandos estudarem a partir de locais e horários que atendam às suas necessidades, conferindo-lhes, assim, certa “autonomia”. Mas além de tempo e espaço, deve-se considerar o currículo nas discussões sobre flexibilidade na modalidade.

A flexibilidade curricular pode ser entendida como uma forma de organização do conhecimento, cuja matriz curricular não é rígida. A formação é, portanto, entendida como um percurso com possibilidades alternativas de trajetórias. A flexibilidade curricular busca a promoção de

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maior liberdade ao estudante e educadores para definição e desenvolvimento das atividades da formação (MILL, 2014, p. 102)132.

Nessa sintonia, a condição organização participativa e flexível do ensino diz respeito a educadores e educandos – principalmente – terem a liberdade de realizar modificações quanto a temas, atividades e materiais de estudo durante a formação. Sob uma perspectiva emancipatória, os sujeitos devem poder alterar propostas de ensino a partir de suas necessidades, de suas culturas e do desenrolar do processo, mesmo construído a partir da LM.

Desta forma, importa-nos enfatizar que a flexibilidade curricular, no contexto desta tese, enfatiza a liberdade do coletivo. Não menospreza discursos e práticas para que cada educando e educador possa fazer alterações individuais em seu percurso ao longo do curso, de modo a atenderem suas necessidades e características pessoais, e personalizando o ensino, mas destaca decisões coletivas desses sujeitos, em comunhão diria Freire, quanto ao currículo que vivenciam. Olhando para a formação cidadã, a organização flexível diz respeito a responsabilidades assumidas pelo e para o coletivo sobre decisões de currículo, durante o seu desenvolvimento, a exemplo da etapa de LM no início de sua organização.

Assim, durante uma formação, por exemplo, o diálogo acerca de um tema pode levar a outro que não estava previsto na proposta inicial. Nesse caso, o grupo considera importante realizar a alteração do currículo, “que se acomoda facilmente às circunstâncias, que é facilmente influenciável; dócil, maleável” – um dos significados da palavra “flexível” (HOUAISS, 2012) que atende esta discussão. Esta também está sob abordagem construtivista de rede/comunidade, tratada anteriormente, que exige maleabilidade durante seu caminhar.

Defender a flexibilidade do “design educacional” é considerá-lo aberto à própria experiência humana coletiva. Não se trata de falta de rigorosidade, mas de conceber o currículo como construção permanente, em movimento. É justamente por se tratar de formação humana que não se aplica a lógica de rigorosidade quanto ao desenho pedagógico, tida como razão de “sucesso” nas pesquisas mapeadas por García Aretio e Ruiz Corbella (2010), como tratamos no capítulo 3. Até porque essas investigações buscavam observar apenas o desempenho/resultado acadêmico dos estudantes. Como processo do devir, do vir a ser, a formação humana seria incompatível com processos educativos rígidos, fechados, controlados e, portanto, desconectados da natureza da vida.

132 Recomendamos este artigo de Mill (2014, p. 97) que relata pesquisa sobre a flexibilidade quanto a espaços, tempos e currículo em publicações de Educação e denuncia a “escassez de pesquisas voltadas para a

169 Para esse caso, contrariando os pesquisadores mencionados, depende dos estudantes, dos professores e demais sujeitos envolvidos (MOORE, 2002), em inter-ação. Depende da forma como eles se relacionam, seus valores e os interesses de estudo que surgem naquele coletivo ao longo da formação. Se a finalidade é contribuir para a conscientização, que demanda íntima relação com a realidade concreta, implicando movimentos de ação-reflexão- ação, seria contraditório desenhar rigorosamente o processo educativo.

Flexibilidade nos remete ao sentido dialético de movimento: um processo permanente de mudança. Para Heclácito, que considera a realidade sempre como um fluxo, “[...] nada permanece: só o movimento e a mudança são permanentes” (OLIVEIRA; ALMEIDA; ARNONI, 2007, p. 89). Este filófoso afirmava que um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio. Uma mesma formação pode ser desenhada de seu início ao fim e, ainda assim, “banhar” diferentes homens?

A “organização participativa e flexível do ensino” também é um “diálogo (coletivo) mediatizado pelo mundo”. Promove o “trabalho coletivo” dos profissionais da EaD. Contempla “materiais de estudo coerentes”, como veremos. Pode prever a “articulação com movimentos sociais em rede”, também a ser tratado adiante. E, certamente, transpira “educar pela cidadania”, condição básica.