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Cidadania planetária e os novos movimentos sociais

CAPÍTULO II – A CIDADANIA NA ERA PLANETÁRIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS

2.2 Cidadania planetária e os novos movimentos sociais

A planetarização do mal-estar social tem se expressado num protes- to cada vez mais generalizado contra aquelas atividades e visões que, basea- das na globalização econômica, pressupõem que o mundo seja governável como uma mercadoria. Esse processo

abre caminho para a emergência de outras alternativas de con- figuração social mais coerentes com o destino da humanidade,

a idéia do mundo como pátria comum. Os movimentos sociais, fermentos de uma sociedade planetária, que ativamente se opõe à globalização unidimensional não só são movimentos contra a expansão da primeira mundialização, mas também contra determinada forma de viver e de estar no planeta. (MO- RIN, CIURANA e MOTTA, 2003,p.86-87).

A consolidação de uma nova sociedade civil organizada, na qual se encontre uma unidade na diversidade, onde os princípios da igualdade e da diferença andem juntos por considerar que temos o direito de sermos iguais quando a diferença nos descarta e a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza tem sido também defendida por Santos (2003a). Para o sociólo- go, a busca da nova sociedade passa pela disseminação de uma democracia de alta intensidade que pressupõe participação ativa da sociedade.

A participação da sociedade civil, nesses termos, tem sido evidenci- ada na luta contra os efeitos excludentes da política neoliberal. A resposta da sociedade civil à globalização tem seu marco histórico nas manifestações que mobilizaram 50 mil representantes de organizações não-governamentais contra a política de liberalização do comércio mundial proposta pela III Conferência Ministerial da Organização Mundial de Comércio, realizada em Seatlle — EUA, em 1999. As ONGs conseguiram, de certa forma, deter as forças da globaliza- ção através de manifestações democráticas e passaram a assumir uma “postu- ra de contrapoder ao executivo global formado pela OMC, Banco Mundial, FMI e OCDE, o qual decide soberanamente, sem qualquer abertura democrática, acerca do destino de todos os habitantes do mundo”. (Vieira, 2001, p. 103). De acordo com Morin, Ciurana e Motta (2003)

Os acontecimentos que se produziram em Seatlle demonstram a superação das fronteiras nacionais, do mal-estar e do protes-

to mediante a tomada de consciência cidadã transfronteiriça e transcultural em que se manifesta claramente que os proble- mas mundiais requerem respostas mundiais. Dada a concor- rência, sinergia, retroalimentação, retroação e recursividade de seus males, as respostas locais e nacionais que surgem confi- guram um caldo de cultura para uma política planetária. (p. 87- 88).

Os protestos de Seatlle tiveram continuidade no XXX Fórum Econô- mico Mundial em Davos, na Suíça, e em outras manifestações transnacionais realizadas nas reuniões internacionais em Washington, Montreal, Genebra, Praga, Nice. Mas é no Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre, em 2001, um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, que o movimento contra-hegemônico se consolida. O FSM I envolveu 16 mil participantes de to- dos os quadrantes com o objetivo de discutir “propostas e formas de ação con- creta para a sociedade civil enfrentar, em escala global, os desafios da globali- zação econômica dominante” (VIEIRA, 2001, p. 110).

Durante o primeiro FSM, foi “sendo teorizado o surgimento de um novo tipo de cidadania, de caráter global, mais além das fronteiras nacionais, cujo debilitamento foi sendo dado como suposto” (SADER, 2003, p. 88). Não por acaso, no âmbito do Eixo III de discussão do FSM — A afirmação da socie- dade civil e dos espaços públicos — um conjunto de conferências1 foram reali-

zadas sob o título “Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária”, abordando justamente as possibilidades de uma cidadania planetária com base no surgimento de uma sociedade civil transnacional.

Os anos de 2002, 2003 e 2004 registraram a segunda, terceira e quarta versões do Fórum Social Mundial, os dois primeiros em Porto Alegre e o

1 Conferencistas de diversas partes do mundo apresentaram a sua visão sobre a temática,

entre os quais destacam-se Sylvia Borren (Holanda), Boaventura dos Santos (Portugal), Njoki Njehu (Quênia) Ana Esther Ceceña (México), Virginia Vargas (Peru) e Hillary Wainright (Ingla- terra).

último em Mumbai (ex-Bombaim). O movimento tem crescido não só em núme- ro de participantes, mas, sobretudo em importância e legitimidade2. Morin

(2001), por exemplo, considera o movimento de Porto Alegre como “a interna- cional cidadã em gestação” que se produziu pela compreensão que os oposito- res da mundialização neoliberal desenvolveram de que a um problema mundial a resposta só poderia ser mundial. Além disso, o seu desdobramento em fó- runs regionais tem sido outro avanço expressivo no sentido da “tendência à globalização da sociedade civil, de uma globalização por ’baixo’ para enfrentar a globalização autoritária imposta ‘por cima’ pela constelação dos interesses políticos dominantes” (VIEIRA, 2001, p. 111).

Todas essas manifestações são demonstrações do processo de re- sistência à globalização por parte do movimento mundial de cidadãos que aponta para o fortalecimento transnacional da sociedade civil. Trata-se de um movimento global de cidadania ativa que se fortalece na ação local dos cida- dãos como forma de resistência à nova onda de colonização global.

Verifica-se, segundo Morin, Ciurana e Motta (2003), o surgimento de uma antropolítica ou política do homem, caracterizada pela mobilização da hu- manidade na busca de soluções planetárias, que tende a progredir reunindo e organizando movimentos de cidadãos que, mesmo de culturas diferentes, compartilham a vivência comum do planeta.

De fato, a geografia dos novos movimentos antiglobalização neolibe- ral tem assumido uma nova configuração mediante a reunião das contribuições teóricas, sociais e políticas no espaço instituído pelo Fórum Social Mundial — FSM, em busca de alternativas globais ao neoliberalismo. Nessa perspectiva, o

2 De acordo com dados do site oficial do fórum, o FSM II, o FSM III e FSM IV registraram, res-

FSM, com ampla representatividade e participação dos mais diversos segmen- tos da sociedade civil organizada, vem se constituindo em espaço de luta e resistência por possibilitar o restabelecimento das forças de oposição da perife- ria e do centro do capitalismo às políticas neoliberais, agora no âmbito mundial (SADER, 2003).

Sader (op.cit.), ressalta que o FSM, desde o início, caracterizou-se pelo papel central das ONGs e como espaço de aglutinação da “sociedade ci- vil”. Como esse termo possui múltiplos significados apresenta elementos para os quais se deve estar atento. Um aspecto refere-se as parcerias de muitas ONGs com empresa privadas a ao fato da existência de “coincidências perigo- sas do resgate da “sociedade civil” com movimentos neoliberais e, em particu- lar, com a linha do Banco Mundial de incorporação de ONGs” (p. 86, grifo do autor) na aplicação de políticas sociais compensatórias propostas pelo Banco. Outro aspecto a considerar é que a opção pela sociedade civil — a cidadania organizada nos movimentos sociais, ONG, entidades civis de defesa dos direi- tos civis, políticos e sociais — é excludente na medida em que, ao assumir a postura de oposição sociedade civil / Estado, não inclui os partidos políticos e os governos. Na ótica de Sader, esse posicionamento é grave porque

um movimento antineoliberal não pode prescindir de nenhuma força numa luta ainda tão desigual, mas principalmente porque se abstrai das temáticas do poder, do Estado, da esfera públi- ca, da direção política e até mesmo, de alguma forma, da luta ideológica. (Ibid,p. 86).

Nessa mesma direção caminha a crítica segundo a qual o debate no FSM tem enfatizado a sociedade civil, a conquista da cidadania, a democracia radical em detrimento do conceito de luta de classes. Contudo, existe um con-

senso mais ou menos generalizado da importância do FSM como expressão de uma intensa busca de um projeto alternativo ao modelo neoliberal.

Outro marco importante desse conjunto de movimentos que se arti- culam no FSM assinala a utilização do campo anárquico da internet, onde não há liderança e ninguém sabe os próximos passos a percorrer, como ferramenta de articulação. Um claro exemplo foram as recentes ondas de manifestações contra a invasão do Iraque pelo Estados Unidos, particularmente a realizada em fevereiro de 2003, que chegou a mobilizar, simultaneamente, aproximada- mente 12 milhões de participantes em cerca de 600 cidades espalhadas por 75 países ao redor do globo, feito nunca antes registrado nos anais da história humana. Santos (2003a) denominou esse movimento de a cidadania contra a guerra cujo significado político está vinculado à “emergência, o embrião de um novo ator político transnacional, em que pode vir a assentar, no futuro, uma sociedade civil global”. Essa manifestação histórica, segundo esse autor, é o desdobramento do Fórum Social Europeu, realizado em novembro de 2002, o qual, por sua vez, é uma emanação do Fórum Social Mundial que Santos (2003) define como “o movimento dos movimentos que, ainda de forma incipi- ente, organiza globalmente a luta contra neoliberalismo, pela justiça social e pela paz. O seu significado político reside em ter mostrado que há alternativas à globalização neoliberal, agora geminada com a globalização da guerra impe- rial”. O FSM expressa também a necessidade dos diferentes movimentos soci- ais de se unirem em torno de objetivos comuns, pois já não é possível que te- nhamos lutas de mulheres, trabalhadores, estudantes, indígenas, ambientalis- tas isoladamente. A luta de um é a luta de todos.

a concepção de cidadania planetária se desenvolveu pioneiramente, até por- que a agonia planetária provocada pela crise ecológica e pela crise de desen- volvimento assim exigia. Os alertas ecológicos, desde a década de 1970, vêm assinalando a degradação do meio ambiente pelo desenvolvimento tecno- industrial e denunciando problemas como as diversas poluições, o efeito estu- fa, o buraco na camada de ozônio, o lento esquentamento do planeta e conse- qüente derretimento das calotas polares e o seu potencial de perigo para a humanidade.