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1 OS FUNDAMENTOS E A CRISE DOS REFERENCIAIS E PARADIGMAS

2.1 Cidadania Planetária

Um dos desafios para o pensamento complexo é pensar a universalização da ética, que na atualidade se apresenta como uma emergência, tendo em vista o contexto do estágio atual da era da planetarização da humanidade. Em sua obra, Morin considera que, pela primeira vez na história da humanidade, a universalidade tornou-se possibilidade concreta. Por mais que ainda não se viva em um mundo em comunidade universal real, a consciência da comunidade de destino, em que os destinos individuais se ligam ao destino do planeta, possibilita a concretude atual da comunidade planetária. Na concepção de Morin (2007a, p. 162), o universal compreende “[...] a intersolidariedade objetiva da humanidade, na qual o destino global do planeta sobredetermina os destinos singulares das nações e na qual os destinos singulares das nações perturbam ou modificam o destino global”.

Para explicar esse processo de planetarização da humanidade, Morin (2007b, p. 65) faz um resgate da história da humanidade, começando pela diáspora humana, que resultou na ocupação de todo o planeta por grupos de humanos divididos em sociedades geográfica e culturalmente distintas. Nesse estágio da história humana, a visão de mundo de cada sociedade correspondia aos limites físicos de cada grupo social, o que implica que, para o europeu, o mundo restringia-se à Europa. Paradoxalmente, a diáspora humana sobre a Terra, que promoveu a fragmentação da humanidade, também constituiu a diversidade das identidades culturais dos povos que habitam o planeta, contribuindo para o enriquecimento da cultura humana. Mas, é apenas a partir dos tempos modernos, quando, pela navegação, torna- se possível a comunicação entre esses diversos grupos humanos (étnicos e culturais) espalhados pelo planeta, que a percepção do mundo se alarga e um novo contexto global é formado e, de fato, surge um novo mundo, interdependente, que se compreende planetarizado.

O mundo se torna cada vez mais um todo. Cada parte do mundo faz, mais e mais, parte do mundo e o mundo, como um todo, está cada vez mais presente em cada uma de suas partes. Isto se verifica não apenas para as nações e povos, mas para os indivíduos. Assim como cada ponto de um holograma contém a informação do todo do qual faz parte, também, doravante, cada indivíduo recebe ou consome informações e substâncias oriundas de todo o universo (MORIN, 2007b, p. 67).

Esse movimento de tomada de consciência da planetarização da humanidade, em que o mundo parece tornar-se encolhido, faz com que os grupos humanos, que até então permaneciam separados pela cultura, percebam-se enquanto humanidade que habita um único planeta, a mesma Terra-Pátria. Consolida-se, assim, o sentimento de pertencimento a uma

única humanidade, a uma mesma comunidade planetária. O autor ainda fundamenta esse sentimento de pertença à comunidade planetária na tomada de consciência da una/múltipla identidade humana, no elo que torna cada ser em sua cultura pertencente ao todo humano. Esse elo que liga as partes ao todo e o todo às partes são os caracteres genéticos que identificam a espécie humana; assim, a unidade humanidade se mantém presente em cada indivíduo, “[...] temos todos uma identidade genética, cerebral, afetiva comum em nossas diversidades individuais, culturais e sociais” (MORIN, 2007b, p. 76).

O autor formula o conceito de Terra-Pátria para enfatizar a ideia de que o planeta que a humanidade habita, a Terra, constitui-se como pátria comum a todos os homens. Mas ele alerta que a consolidação da Terra-Pátria precisa ser pensada em perspectiva complexa e não pela lógica reducionista, que dissolveria as fronteiras criando uma identidade cultural única em escala mundial, homogeneizando a diversidade humana. Morin (2007b, p. 78) esclarece que é preciso “desenvolver nossas identidades a um só tempo concêntricas e plurais: a de nossa etnia, a de nossa pátria, a de nossa comunidade de civilização, enfim, a de cidadãos terrestres”. A complexidade concebe, na dialógica indivíduo-nação-mundo, a construção da identidade planetária considerando o uno e o múltiplo, o local e o universal. Assim, a pretensão do autor é de que nesta Terra-Pátria se complementem as identidades nacionais e planetária, que se mantenham as diversidades culturais e, ainda, que se desenvolva uma identidade planetária, para que seja possível a toda humanidade conviver num planeta que é pátria comum.

Na sequência do texto mostraremos que o autor liga o surgimento dessa comunidade planetária, desta sociedade-mundo ou mesmo da Terra-Pátria, na origem e consolidação na própria constituição complexa do ser humano, não sendo apenas fenômeno do contexto atual de globalização.

O pensamento disjuntivo fragmentou a noção de humano ao separar o conhecimento das ciências naturais do das ciências humanas, reforçando a concepção insular de que o homem é um ser à parte do todo do planeta, que está fora da natureza. Além do mais, as ciências denominadas humanas, que teriam como objeto compreender o ser humano, também se fragmentam dividindo a complexidade humana em áreas específicas, como a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia. Essa separação do conhecimento sobre o humano impede a compreensão da multidimensionalidade e da complexidade humana, pois os saberes produzidos a partir das partes, das ciências específicas, não se comunicam, não se interligam, promovendo a ignorância do todo, da condição humana.

[...] é impossível conceber a unidade complexa do ser humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe nossa humanidade de maneira insular. Fora do cosmos que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual somos constituídos, bem como pelo pensamento redutor, que restringe a unidade humana a um substrato puramente bioanatômico. As ciências humanas são elas próprias fragmentadas e compartimentadas. Assim, a complexidade humana torna-se invisível e o homem desvanece ‘como um rastro na areia’ (MORIN, 2007b, p. 48).

Para resgatar uma concepção mais abrangente de humano, o autor vai buscar nas ciências biológicas as raízes de uma Antropologia complexificada. Morin (2007b, p. 47) alarga a noção de humano ao afirmar que para conhecer o ser humano é necessário situá-lo no universo, e não separá-lo dele. O autor contextualiza a noção da condição humana ao questionar a posição do homem no cosmos, quando nas suas interrogações coloca como inseparáveis os questionamentos de “Quem somos?” do de “Onde Estamos?”, reconhecendo que a condição humana é marcada por um duplo enraizamento, no cosmo físico e na esfera viva. Logo, pela via da complexidade, compreende-se que o homem está simultaneamente dentro e fora da natureza.

Na concepção complexa, a espécie humana é compreendida na sua evolução e condição cosmobioantropológica, como parte da natureza e da vida, ou melhor, mais do que isso, é reconhecida como parte da epopeia cósmica que originou o mundo atual: “somos física e quimicamente filhos do cosmos [...], somos filhos do mundo vivo, saímos da evolução da vida” (MORIN, 2005a, p.269). O reconhecimento de que o ser humano é produto da aventura cósmica que forjou todo o universo, a vida e a morte no/do planeta, faz com que seja tomada a consciência da identidade terrena, física e biológica, de que a identidade humana é constituída numa relação dialógica da tríade indivíduo/espécie/sociedade.

Nessa interpretação complexa, para além da identidade terrena, física e biológica o ser humano comporta, na sua constituição, uma identidade antropológica, marcada pelos aspectos psico-sócio-culturais desenvolvidos no processo de hominização. Desse modo, na concepção complexa a condição humana é constituída numa relação dialógica pela tríade indivíduo/sociedade/espécie, na qual o ser humano é compreendido como indivíduo, como parte da sociedade e como pertencente à espécie humana. Na complexidade, o ser humano é concebido na sua totalidade, na interdependência dos três termos desta relação trinitária, em que cada termo inscreve-se um no outro, cada um contendo o outro e vice-versa. Nesse caso, pode-se compreender que o ser humano é uma espécie biossocial que se organiza em estruturas sociais, e mais, que pertence ao universo e evolui junto com ele.

No nível antropológico, a sociedade vive para o indivíduo, o qual vive para a sociedade; a sociedade e o indivíduo vivem para a espécie, que vive para o indivíduo e para a sociedade. Cada um desses termos é ao mesmo tempo meio e fim: é a cultura e a sociedade que garantem a realização dos indivíduos, e são as interações entre indivíduos que permitem a perpetuação da cultura e a auto-organização da sociedade (MORIN, 2007b, p.54).

Portanto, segundo a perspectiva do autor, é a tomada de consciência da condição humana de ser cosmobioantropológico “que é ser ao mesmo tempo indivíduo/sociedade/espécie” (MORIN, 2007b, p. 17), o fator que fundamenta o sentimento de pertencimento a uma comunidade planetária. Torna-se possível reconhecer nos tempos de hoje que, apesar das diversidades culturais, sociais, de língua e de costumes, a humanidade é uma só, que os seres humanos têm uma origem comum, formam uma comunidade de origem, bem como, compartilham do mesmo destino. A consciência da finitude do planeta e do cosmos, engendrada pelas ciências cósmicas e biológicas, provoca no humano um sentimento comunitário de humanidade universal que transcende as limitações das comunidades (Estados-Nação) fechadas. O reconhecimento do limite físico do planeta impõe à humanidade, como comunidade de destino, a necessidade de compartilhar a mesma casa, a Terra, o que implica uma retomada radical dos pressupostos filosóficos das muitas éticas comunitárias em uma ética universalista.

É a dupla consciência de pertencer a uma mesma e única humanidade e de habitar o mesmo planeta que, para a complexidade, constitui, em cada indivíduo, a identidade planetária. Enfim, a consciência de que todos os humanos vivem e convivem juntos, compartilham do mesmo destino planetário, dos mesmos problemas de vida e de morte, faz emergir o sentimento de pertencimento a uma comunidade de âmbito planetário. Esta comunidade-mundo, na perspectiva do autor, faz com que o humanismo seja retomado, agora em perspectiva planetária, como um humanismo regenerado na complexidade que regeneraria a ética em ética da humanidade.

O que torna possível a ideia de uma ética universal ressalta Morin (2007a, p. 160), é a condição de conexão e interdependência das comunidades, nações e indivíduos ao todo planetário e ao universal humano que a era planetária vem proporcionar. Revisitar a ética nessas condições implica considerar o caráter ternário da condição humana na própria ética, o que, por sua vez, conduz a uma antropoética. Para Morin (2007b, p. 106), a antropoética é a ética propriamente humana, pois emerge da consciência da condição humana de ser indivíduo/sociedade/espécie. A antropoética conserva o caráter trinitário desse circuito fazendo com que o ser humano assuma-se enquanto humanidade. E ao recuperar o espírito

propriamente humano, a humanidade, o autor acredita que seja possível, através da antropoética, à comunidade terrena, alcançar a cidadania planetária.

A ética universalista, tornada concreta, é antropoética: impõe-se cada vez mais nos desenvolvimentos atuais da era planetária que não apenas colocaram os seres humanos em comunicação e em interdependência, mas, mais ainda, fizeram emergir uma comunidade de destino para a espécie humana (MORIN, 2007a, p. 160).

Indivíduo, espécie e sociedade compõem um elo recorrente e, portanto, formam a base de entendimentos éticos universalistas para uma sociedade planetária.

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