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2.2 A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIA E AS QUESTÕES SÓCIO-CIENTÍFICAS

2.2.1 Cidadania e Questões Sócio-Científicas

Vivemos numa sociedade marcada por desenvolvimentos científicos e tecnológicos controversos (Nelkin, 1992). Quase diariamente, os meios de comunicação social abordam questões sócio-científicas controversas: utilização de alimentos transgénicos, clonagem, experimentação em animais, efeitos adversos da utilização de telemóveis, do consumo de determinados medicamentos ou da co-incineração de resíduos tóxicos em cimenteiras, entre outras.

Na sociedade actual, a vida dos cidadãos assemelha-se a uma viagem num comboio de alta velocidade, no qual os passageiros apenas conseguem vislumbrar a paisagem muito rapidamente e de forma pouco nítida: a evolução extremamente acelerada da ciência e da tecnologia, associada à iliteracia científica de grande parte da população, impossibilita uma focagem/reflexão aprofundada sobre as opções de desenvolvimento (Reis, 1997a, Reis e Pereira, 1998). No entanto, o futuro da ciência e da tecnologia não deverá ficar a cargo apenas dos médicos, dos cientistas, da indústria, dos governos ou de qualquer outro grupo limitado; uma sociedade na qual as decisões sobre questões científicas e tecnológicas sejam privilégio de especialistas não poderá ser considerada democrática. Torna-se vital a passagem progressiva do conceito de cidadão passivo, governado por uma elite iluminada, para um conceito de cidadão activo predisposto e apto a participar em processos de decisão sobre as opções de desenvolvimento que lhe são apresentadas. Para tal, toda a sociedade deverá estar preparada para participar em processos de acompanhamento, avaliação e controlo do progresso científico e tecnológico e das suas implicações profundas e controversas.

Assim, um dos argumentos mais frequentes a favor da literacia científica da população consiste na sua preparação para responder a questões sócio-científicas, ou seja, a questões sociais com uma dimensão científica ou tecnológica considerável (por exemplo, a manipulação do genoma de seres vivos ou a fertilização in vitro)(Kolstoe, 2001; Millar, 1997). Considera-se que, numa sociedade

democrática, a avaliação pública da ciência depende de indivíduos capazes de reconhecerem o que está em causa numa controvérsia científica, de alcançarem uma opinião informada e de participarem em discussões, debates e processos de tomada de decisão. No entanto, existem evidências de que a educação científica não tem cumprido este objectivo. Os resultados de algumas investigações, centradas na forma como os adultos entendem e utilizam a ciência e na articulação da ciência com a acção prática, não são conciliáveis com a imagem de ciência transmitida pela escola formal (Collins e Shapin, 1986; Jenkins, 1997b). Habitualmente, a escola formal retrata a ciência como coerente, objectiva, não problemática e claramente distinguível de actividades não-científicas, veiculando um modelo de racionalidade científica que leva os alunos a pensarem que os métodos de investigação rigorosos revelam, de forma repetida, única e sem ambiguidades, factos verdadeiros sobre o mundo natural. No entanto, a realidade é bem diferente. Os especialistas discordam frequentemente dos pareceres uns dos outros, razão pela qual se torna extremamente importante a capacidade de avaliar a qualidade das informações apresentadas pelas facções envolvidas. Por vezes, em algumas controvérsias (por exemplo, a co-incineração de resíduos tóxicos), as questões técnicas não obtêm resposta apesar da vasta quantidade de informação técnica disponível e as facções acusam-se de enviesamento na selecção dos dados que fundamentam as respectivas opiniões. Verifica-se, ainda, que controvérsias deste tipo não podem ser resolvidas simplesmente numa base técnica pois envolvem outros aspectos, tais como hierarquizações de valores, conveniências pessoais, questões financeiras, entre outras. Szanto (1993), num estudo efectuado sobre a controvérsia em torno da manipulação genética de seres vivos, verificou que o fulcro desta se situava em torno de posições sócio-filosóficas e não de questões científicas. Neste mesmo estudo, sublinha a importância dos valores, dos interesses, das necessidades e das crenças como factores essenciais nas controvérsias. Logo, que literacia científica será necessária à avaliação pública das questões sócio-científicas controversas com as quais a sociedade é confrontada?

Cientistas e educadores são unânimes no reconhecimento da importância do conhecimento dos conteúdos científicos envolvidos. Contudo, o conhecimento

específico necessário à compreensão de apenas uma pequena fracção das questões sócio-científicas mais recentes iria preencher por completo os currículos de ciências e poderia revelar-se completamente inadequado para a compreensão de questões futuras. Assim, o currículo escolar deverá limitar-se a proporcionar um enquadramento de ideias fundamentais indispensáveis à apropriação de conhecimentos mais pormenorizados sobre as questões específicas que possam surgir. No entanto, o conhecimento científico, apesar de necessário, revela-se insuficiente para a compreensão de uma disputa sócio-científica. Frequentemente, a razão de muitas destas disputas centra-se em incertezas (relativamente aos resultados obtidos e às metodologias ou modelos utilizados) e em diferentes hierarquizações de valores. Logo, alguns educadores consideram que a compreensão de disputas deste tipo requer uma apreciação mais subtil da natureza e do estatuto do conhecimento científico através de uma maior compreensão de métodos de pesquisa científica e da ciência como empreendimento social (Bell, 2003; Driver, Leach, Millar e Scott, 1996; Millar, 1997; Nelkin, 1992).

Outros autores defendem, ainda, que a preparação dos alunos para a avaliação e tomada de decisões relativas a questões sócio-científicas controversas passa, indispensavelmente, pelo desenvolvimento do seu raciocínio lógico (capacidades de pensamento crítico como, por exemplo, a selecção, análise e interpretação de informação relevante, a previsão e a formulação de hipótese) e do seu raciocínio moral (Berkowitz e Simmons, 2003; Zeidler, 2003). Na sua opinião, a literacia científica não implica apenas conhecimentos mas também capacidades, valores e atitudes que impeçam utilizações irresponsáveis ou pouco éticas da ciência e da tecnologia. Segundo Berkowitz e Simmons (2003), a educação em ciência deverá integrar-se com a educação do carácter e a educação democrática, ou seja, com: a) o desenvolvimento das competências morais e sociais dos alunos, nomeadamente, a capacidade de raciocinar acerca de questões éticas e morais; e b) a sua preparação para uma intervenção competente, responsável e democrática na sociedade através da vivência e da prática de situações igualitárias. Consideram que a integração destes três domínios educacionais (educação em ciência, educação do carácter e educação democrática) poderá assegurar a promoção de

uma literacia científica que contemple a compreensão e a preocupação dos alunos relativamente às dimensões morais e éticas da ciência e da tecnologia, bem como a sua preparação para uma actuação responsável no âmbito da ciência e da tecnologia. A abordagem do conhecimento científico e tecnológico no contexto da educação moral e cívica permite que professores e alunos: a) experimentem a complexidade da ciência e da tecnologia segundo uma perspectiva pessoal e social; b) participem em reflexão informada sobre a ética na ciência e na tecnologia; e c) se envolvam em activismo social em torno de questões científicas e tecnológicas.

Constata-se, assim, que a preparação dos alunos para a participação em processos avaliatórios e decisórios sobre questões socio-científicas controversas não é uma tarefa simples. A avaliação das consequências e a correcção dos eventuais problemas resultantes do crescimento científico e tecnológico requer: a) um enquadramento de conhecimentos científicos indispensáveis à apropriação de conhecimentos mais pormenorizados sobre as questões em causa; b) conhecimentos metacientíficos sobre a natureza, as potencialidades e os limites da ciência; c) capacidades de pensamento crítico, tomada de decisões e resolução de problemas; d) atitudes e valores úteis à avaliação das dimensões ética e moral da ciência e da tecnologia; e e) vontade e confiança para lidarem com assuntos científicos do seu interesse.

Vários autores defendem que o desenvolvimento deste conjunto de conhecimentos, capacidades e atitudes, necessário à compreensão das controvérsias sócio-científicas, deve ser efectuado através do envolvimento dos alunos na análise e discussão desse tipo de controvérsias (Cachapuz, Praia e Jorge, 2002a; Driver, Leach, Millar e Scott, 1996; Millar, 1997; Reis, 1997a; Reis e Pereira, 1998; Zeidler e Lewis, 2003). Na sua opinião, a discussão de questões sócio-científicas na sala de aula justifica-se não só pelos conhecimentos que promove acerca dos conteúdos, dos processos e da natureza da ciência e da tecnologia mas também pelas potencialidades educativas deste tipo de interacção no desenvolvimento cognitivo, social, político, moral e ético dos alunos.