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2.2 A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIA E AS QUESTÕES SÓCIO-CIENTÍFICAS

2.2.2 A Discussão como Experiência Educativa

A discussão é uma forma particular de interacção em grupo na qual os membros se juntam para abordar uma questão do interesse comum, algo que necessitam de compreender, apreciar ou decidir (Dillon, 1994). Durante a discussão, as pessoas reflectem sobre uma questão, apresentando e examinando diferentes propostas (interpretações, factos, sugestões, opiniões, perspectivas, experiências, etc.) de forma a construírem a resposta mais satisfatória possível (uma melhor compreensão, uma nova apreciação, um parecer melhor fundamentado, uma resolução mais firme). Quando os elementos do grupo já conhecem, compreendem ou já decidiram sobre o tópico em causa, ele não constitui uma questão e, portanto, não existe qualquer discussão: o assunto está encerrado. Apenas ocorre discussão quando existe uma questão relativamente à qual se deseja alcançar uma resposta (Dillon, 1994; Parker e Hess, 2001). Existem, ainda, várias outras condições necessárias para o envolvimento de um grupo numa discussão, nomeadamente: a) apresentação de mais do que um ponto de vista sobre o assunto em causa; b) disponibilidade para examinar e reagir aos diferentes pontos de vista apresentados; c) ausência de dogmatismos; d) partilha de um respeito recíproco; e) preocupação com a coerência dos argumentos apresentados; e f) intenção de desenvolver o conhecimento e a compreensão do assunto em discussão (Bridges, 1988; Dillon, 1994).

Frequentemente, o termo discussão é utilizado de maneira incorrecta, tanto na escola como no dia-a-dia, englobando várias formas de interacção verbal como, por exemplo, a conversa, o debate, a troca de opiniões e a recitação. Contudo, na opinião de Dillon (1994), existem diferenças significativas entre estes termos:

1. A conversa difere da discussão em todos os aspectos menos no facto das pessoas falarem umas com as outras. Na conversa, não existe um objectivo definido, qualquer pessoa pode falar sobre quase tudo o que desejar e pode fazê-lo sempre que o desejar, sem ter que ouvir os outros ou esperar pela sua vez. Pelo contrário, a discussão é disciplinada, tem um objectivo bem definido e centra-se num tópico específico.

2. O debate é mais constante, prolongado e requer mais esforço do que a conversa; contudo, difere da discussão pelo facto de envolver a apresentação e a defesa de opiniões previamente formadas e de terminar com a vitória de um dos lados ou com um impasse em que ambas as facções mantêm os seus pontos de vista sem terem sofrido qualquer influência mútua. Na discussão, as propostas são desenvolvidas colaborativamente através da integração de contribuições dos diferentes elementos do grupo. A posição final é única, assumida e partilhada por todos os participantes. Logo, a discussão nunca é uma questão de duas facções.

3. A partilha de opiniões é uma forma de conversa em grupo que combina a conversa e o debate. O seu objectivo consiste na criação de um fórum para a apresentação de opiniões e de sentimentos. Existe muita conversa, o tópico é comentado extensamente, mas não se alcança qualquer conclusão pois as pessoas estão mais preocupadas em defender a sua posição do que em ouvir os outros. A interacção termina quando todos já apresentaram os seus argumentos, por vezes mais do que uma vez, ou quando se sentem exaustos ou frustrados pela apresentação recorrente e improdutiva de opiniões e reacções impulsivas.

4. A recitação é a forma predominante de interacção verbal nas salas de aula e distingue-se da discussão em vários aspectos:

a) O domínio do discurso pelo professor;

b) A existência de um padrão de interacção de tipo pergunta-resposta-avaliação, através de uma intervenção sequenciada professor-aluno-professor;

c) A existência de uma sequência previsível de interacção iniciada pelo professor e concluída por um aluno;

e) A existência de respostas únicas, pré-determinadas como certas, para todos os alunos;

f) O predomínio de comentários do tipo "certo/errado" (geralmente, emitidos pelo professor) e a ausência de expressões do tipo "concordo/discordo" (provenientes de alunos ou de professores).

De acordo com Cowie e Rudduck (1990), as actividades de discussão realizadas na escola enquadram-se em três grandes categorias: discussão de questões controversas, resolução de problemas e representação de papéis. Todas elas pretendem promover aprendizagens através da expressão e exploração de ideias, opiniões e vivências, num ambiente de cooperação onde a discussão não é encarada como combate verbal; não se trata de ganhar uma argumentação, mas de mobilizar os recursos de todo o grupo com o objectivo de aumentar o conhecimento e a compreensão de um dado assunto ou de resolver um problema.

A escolha da discussão como veículo de aprendizagem reflecte, de forma explícita ou implícita, concepções sobre a natureza do conhecimento, a importância da autonomia intelectual e da colaboração social, bem como valores políticos relacionados com a construção de uma sociedade democrática (Bridges, 1988; Cowie e Rudduck, 1990; Parker e Hess, 2001). Em primeiro lugar, a discussão pode ser considerada a base do pensamento (Doise, Mugny e Perret-Clermont, 1975; Parker e Hess, 2001; Resnick, 1991; Vygotsky, 1978). Segundo esta concepção epistemológica interaccionista, os sujeitos constroem os seus instrumentos sócio-cognitivos a partir da acumulação e interiorização de experiências e progridem intelectualmente através de interacções com outros indivíduos. Desta forma, os nossos conhecimentos e decisões têm uma origem externa, formando-se a partir dos intercâmbios de linguagem estabelecidos nos múltiplos contextos do dia-a-dia: em casa, na rua, nos programas de televisão, nos jornais, na rádio, nas salas de aula, nas reuniões formais e informais, entre outros. O nosso discurso sobre conhecimentos e questões públicas é influenciado pelos diálogos em que participámos ou a que assistimos previamente. A discussão alarga o nível de compreensão individual pelo contacto com as interpretações e a experiência de vida

dos outros (Bridges, 1988). Logo, o impacto da discussão no nosso pensamento justifica uma atenção especial ao tipo de interacção verbal que promovemos na sala de aula.

Em segundo lugar, a discussão não é eticamente neutra: está associada aos valores da democracia, do respeito, da tolerância (Parker e Hess, 2001). Logo, qualquer pessoa preocupada com o desenvolvimento desses valores poderá recorrer à discussão como um veículo potencial para a sua promoção. A discussão sustenta a democracia e a cidadania (Brookfield e Preskill, 1999; Dewey, 1996; Gutmann e Thompson, 1996), constituindo: a) a base da soberania popular; b) o processo não-violento de tomada de decisões através do reconhecimento e da superação de divergências; c) a forma de promover a coesão dos grupos em torno de objectivos ou problemas comuns. A discussão requer uma atitude de respeito pelas opiniões dos diferentes participantes que é incompatível com atitudes autoritárias. Envolve, inclusivamente, algum cepticismo quanto à autoridade. Logo, a liberdade de discussão é defendida por uma tradição epistemológica liberal, céptica relativamente à autoridade e defensora do envolvimento de todos os cidadãos no desafio e na melhoria de opiniões, propostas ou decisões através da argumentação e da crítica (Bridges, 1988).

Vários autores atribuem um leque diversificado de potencialidades educativas às actividades de discussão. Para Brookfield e Preskill (1999), são múltiplas as contribuições potenciais da discussão na promoção da aprendizagem:

1. Estimula a exploração da diversidade de perspectivas;

2. Aumenta a consciencialização e a tolerância relativamente à ambiguidade e à complexidade;

3. Contribui para o reconhecimento e a investigação das suposições individuais;

4. Estimula a escuta atenta e respeitosa; 5. Desenvolve a agilidade intelectual;

6. Facilita o estabelecimento de ligações pessoais e intelectuais com os assuntos em discussão;

7. Implica respeito pelas vozes e experiências de todos os participantes; 8. Contribui para a aprendizagem dos processos e convenções do discurso

democrático;

9. Encara os alunos como co-produtores do conhecimento;

10. Desenvolve a capacidade de comunicação de ideias e de significados; 11. Desenvolve hábitos de aprendizagem colaborativa;

12. Aumenta a empatia entre os alunos;

13. Desenvolve a capacidade de síntese e de integração; 14. Contribui para a transformação social.

De acordo com Bridges (1988), a discussão inicia os alunos numa cultura moral específica (desenvolvendo atitudes e comportamentos democráticos característicos de uma livre sociedade de pensamento e de acção) e promove a aprendizagem: a) dos processos de interacção verbal; b) das formas de discurso (nomeadamente, das regras intelectuais, das regras de procedimento e das convenções sociais que, de forma mais ou menos explícita, orientam a actividade de discussão); c) das características dos vários elementos do grupo; e d) do assunto em questão (contribuindo para a recolha de informação, a partilha e a exploração de diferentes perspectivas, a estimulação de ideias, a melhoria das ideias através da crítica e da integração das contribuições dos diferentes elementos do grupo).

Várias destas alegações têm sido apoiadas pela investigação. Algumas meta-análises dos estudos centrados nas potencialidades da discussão como método de ensino revelaram impactos bastante significativos a cinco níveis: 1) domínio geral dos conteúdos disciplinares; 2) capacidade de resolução de problemas; 3) desenvolvimento moral; 4) modificação e desenvolvimento de atitudes; e 5) capacidades de comunicação (Gall, 1985; Gall e Gall, 1976, 1990).

Numa avaliação da eficácia das discussões em pequeno grupo, Byrne e Johnstone (1988) constataram que as actividades de representação de papéis, discussão e tomada de decisão podem ser bastante mais eficazes que os métodos tradicionais no desenvolvimento de atitudes e na estimulação do pensamento, do interesse e do envolvimento dos alunos. Diversos estudos permitiram verificar a importância da interacção social no desenvolvimento cognitivo e sócio-afectivo dos indivíduos (César, 1994; Doise e Mugny, 1981; Doise, Mugny e Perret-Clermont, 1975; Perret-Clermont e Mugny, 1985). A chave deste desenvolvimento reside na ocorrência de conflitos sócio-cognitivos entre os elementos do grupo, ou seja, no confronto interpessoal e intrapessoal de ideias diferentes. A existência de perspectivas diferentes entre os alunos desencadeia um desequilíbrio duplo: um desequilíbrio interpessoal momentâneo, pelo facto das respostas apresentadas serem diferentes; e um desequilíbrio intrapessoal, pela tomada de consciência individual da existência de outras respostas, o que suscita dúvidas sobre a sua própria resposta. Para ultrapassarem este impasse os alunos têm que, simultaneamente, analisar os pontos de vista discordantes – o que implica a existência de conhecimentos mínimos sobre a problemática em questão – e gerir as relações interpessoais dentro do grupo, com o objectivo de chegarem a acordo. A probabilidade de ocorrência de conflito sócio-cognitivo pode ser aumentada através do agrupamento de alunos com diferentes características e potencialidades (Berkowitz e Simmons, 2003; Borges e César, 2001; César, 2000). Desta forma, procura-se estabelecer uma complementaridade de personalidades e competências que possibilite um maior desenvolvimento cognitivo e sócio-afectivo dos alunos. Para tal, poderá assumir especial relevância a avaliação prévia das competências dos alunos através da utilização de instrumentos ou tarefas específicas (Reis, 2002).

No entanto, apesar dos dados de investigação que evidenciam estas potencialidades da discussão, constata-se que este tipo de actividade não tem sido incorporado facilmente na prática lectiva (Dillon, 1994; Gall, 1985). Existem vários factores que desencorajam a sua utilização na sala de aula (Dillon, 1994; Lusk e Weinberg, 1994; Reis, 1998; Rudduck, 1979, 1986):

1. Dificuldades inerentes à discussão – A discussão, apesar de aliciante, é difícil de realizar, requer tempo, o seu processo é imprevisível e os seus resultados incertos. Apesar de necessitar de ser aprendida por professores e alunos, não se trata de um processo sequencial passível de treino, implementação e avaliação através de uma lista de verificação. 2. Dificuldades dos professores – Os professores, além de não terem

experiência de discussão, não possuem os conhecimentos necessários para a conduzir. Muitos não concebem o conhecimento como problemático e, como tal, têm dificuldade em questioná-lo; encaram o conhecimento apresentado pelos manuais escolares, professores e cientistas como verdades estabelecidas e indiscutíveis. À semelhança da maioria dos cidadãos, raramente participaram em boas discussões ao longo da sua escolarização e, no dia-a-dia, recorrem, principalmente, a outras formas de interacção verbal (por exemplo, conversa, troca de opiniões e recitação). Mesmo quando dispuseram de alguma preparação e prática sobre a realização de discussões em sala de aula durante a sua formação inicial como professores, poderão não ter usufruído da orientação e do apoio necessário à superação das dificuldades inerentes às primeiras tentativas de ensino através de discussão. Muitos professores revelam alguma indisposição relativamente à utilização desta metodologia, encarando-a como uma perda de tempo (que dificulta o “cumprimento do programa”) e temendo eventuais opiniões imaturas e incorrectas dos alunos, conflitos na sala de aula e dificuldades em dirigir e controlar o processo. A impossibilidade de preverem, antecipadamente, o ritmo e a evolução da actividade e a eventual falta de controlo e de disciplina durante a discussão ameaçam os professores que avaliam a sua própria eficiência pela capacidade de manterem um ambiente de ensino calmo e ordeiro.

3. Dificuldades dos alunos – São vários os problemas sentidos ou evidenciados pelos alunos durante a realização de actividades de discussão, nomeadamente, a excessiva dependência relativamente ao

professor, o controlo da discussão por poucos alunos, a relutância em valorizar as opiniões dos colegas, o individualismo, a competitividade extrema e impeditiva de um ambiente de cooperação e de partilha, a interpretação das opiniões divergentes dos colegas como ataques pessoais, a defesa acérrima e intransigente de opiniões com a consequente divisão do grupo em facções e a polarização das opiniões entre rapazes e raparigas. Na opinião de Bridges (1988), torna-se extremamente difícil realizar uma actividade de discussão quando os alunos têm medo de falar livremente e não são tolerantes relativamente a opiniões diferentes das suas, nem sensíveis à razão, à evidência e aos argumentos. Rudduck (1986) sublinha a dificuldade de se transmitirem os princípios duma aprendizagem centrada na discussão a alunos habituados a um ensino expositivo; alunos com uma concepção de ensino marcada pela recepção passiva de informação debitada pelo professor, poderão resistir e funcionar como forças de bloqueio a metodologias activas que não tenham sido previamente bem explicadas e fundamentadas.

4. Antipatias do sistema – A discussão é desencorajada pela organização da maioria das escolas (o tempo de cada aula, o arranjo físico das salas de aula, o número excessivo de alunos por turma) e por muitos professores, gestores e encarregados de educação que percepcionam esta actividade como uma perda de tempo ou como um esforço inútil ou despropositado em face das muitas tarefas urgentes com que se supõe que os educadores deparam. Burbules (1993) identifica na escola várias práticas anti-dialógicas com efeitos nefastos sobre a discussão, nomeadamente, (a) aulas sobrelotadas e competitivas, controladas pelo professor e (b) as noções de currículo como abordagem de conteúdos, de finalidades como resultados testáveis, de ensino como gestão e controlo e de interacção como recitação de tipo pergunta-resposta. As práticas educativas tendem a reforçar o individual relativamente ao grupo, a privacidade de pensamento e de objectivos relativamente à participação pública e a

autoridade em vez da comunidade e da discussão como fonte de conhecimento e de decisão.

Muitos destes problemas resultam de hábitos e valores enraizados e só serão ultrapassados quando professores e alunos explorarem e reconhecerem, na prática, as potencialidades educativas da discussão. Numa época em que grande parte do tempo dos jovens é passado diante da televisão e do computador, a grande vantagem da escola poderá residir na promoção da interacção, nomeadamente, do confronto de ideias e de sentimentos, do intercâmbio de conhecimentos e de opiniões e da resolução conjunta de problemas (Barbosa, 1995). Como afirma Smith (1990), “Os alunos e os professores devem aprender a não ter receio de (...) desafiar as asserções dos outros, e de verem, por sua vez, as suas próprias ideias postas em causa. O oposto é a tirania e a estultificação” (p. 72).

2.2.3 A Discussão de Questões Sócio-Científicas Controversas nas Aulas de