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PARTE 2: A CONCRETUDE DAS IDÉIAS

2.1. Tradição e Modernidade: A transferência da Capital

2.1.1. Cidade Formal: Idéia e Ideal

O Brasil saltou entre 1900 e 1920 de 17 milhões de habitantes para 37 milhões de habitantes. De 1872 a 1900 o Rio de Janeiro cresceu 271%, São Paulo 870% e Belém de 53150 para 96560 habitantes (cf SEGAWA, 2002: 18, 24). Entretanto, a cidade de Goiás apresentava uma grande estagnação ao longo do século XIX, com a decaída da mineração e sua população era de menos de 5000 habitantes, em 1930. Mesmo a pequena cidade de Campinas, que funcionou como base para a construção de Goiânia possuía na época quase 15.000 habitantes (cf. IPLAN, 1992).

A urbanização crescente do país e a consolidação de uma elite urbana progressista fortaleciam uma vontade de modernização das cidades. A intelectualidade brasileira baseava- se, segundo Segawa, no tripé medicina, ciências jurídicas e engenharia. (2002: 18-21) A negação da estrutura urbana colonial iniciou-se, assim, entre as intervenções da regulação pelos Códigos de Posturas das cidades, pelas intervenções sanitaristas e os planos de vias em estilo haussmaniano.

A "disciplina" urbanismo surge como a construção não só de um novo espaço da modernidade, mas também como uma "disciplinarização" das atividades nos espaços urbanos, a construção de uma nova ordem, de um novo modo de vida moderno. A modernização era uma busca de inserção do país na esteira do desenvolvimento. Pereira Passos no Rio de Janeiro realizou grandes intervenções viárias a partir de 1904 e, em 1930, Donat Alfred Agache (que foi professor de Attílio Corrêa Lima em Paris) desenvolve diretrizes urbanísticas, também para o Rio de Janeiro. Em 1930, Prestes Maia também realizava seu "Plano de Avenidas" para a cidade de São Paulo.

Referenciados em propostas urbanísticas européias e norte-americanas, buscavam hierarquizar, racionalizar e organizar as vias e as construções, através de códigos de edificações. Na prática, muitos destes projetos limitaram-se a intervenções na circulação. Em paralelo, a cidade de São Paulo via florescer o movimento dos Bairros-Jardins, empreendidos pela companhia Inglesa "The City of San Paulo Improvements and Freehold Company". Raymond Unwin e Barry Parker (urbanistas de renome internacional) desenvolveram dois projetos e a remodelação de um jardim público para a cidade entre 1917 e 1919, que foram ocupados ao longo da década seguinte (cf. SEGAWA, 2002: 18-27).

É buscando a raiz destas idéias que Kenneth Frampton (2000) e (principalmente) Peter Collins começam sua historiografia da arquitetura moderna a partir de 1750:

"[Collins] es de los primeros autores que supera claramente los criterios establecidos por la historiografía del movimiento moderno. Más alla de los orígenes establecidos en el Arts & Crafts y en la arquitectura del hierro, Collins interpreta el período que va de 1750 a 1950 como una unidad."(MONTANER, 2000: 76)

O ecletismo (período mais depreciado pelo modernismo) é entendido como base de seu pensamento, não pelas soluções alcançadas, mas pela construção de um paradigma científico moderno, que busca na razão as regras e as verdades do mundo.

O Urbanismo moderno do ecletismo ainda não se baseava em uma "ciência" positiva, convicta da superioridade do progresso do saber, mas afirmava um outro tipo de positividade, a positividade da razão (a razão cartesiana) capaz de captar a verdade do mundo pelas concepções da "idea" absoluta, como no caso da geometria platônica pura, ou das proporções eternas e perfeitas da modenatura.

Esta concepção atingiria seu mais "alto grau" em Hegel, na sua análise da relação entre a "Idéia" e o "Ideal". Para ele, "não se deve confundir a idéia do belo artístico com a idéia como tal" (HEGEL, 1996: 98).

A "idéia" seria aquela idéia absoluta e verdadeira em si, verdadeira porque enquanto idéia, corresponde a si mesmo, nem mais nem menos, estando além da re-presentação, e por isso, ainda não objetiva, ou objetivada na realidade. O conceito (clássico) seria a idéia manifestada na consciência, na interioridade do sujeito racional que apresenta uma unidade fundamental com o absoluto (segundo a celebre afirmação de Hegel: o real é racional, e o racional é real). Aqui, o que entra na "forma" é um "conteúdo" totalmente diferente do que é o conteúdo para Lefebvre (conforme a "inversão" do hegelianismo que o marxismo promove). O conteúdo hegeliano que entra nas formas materiais é o próprio absoluto, o transcendente.

Por sua vez o "ideal", que seria o belo artístico, é já uma "realidade individual", uma realidade que deixa transparecer a "idéia" que lhe realiza. Assim, a "verdade do ideal" não é

apenas um formalismo capaz de exprimir algo, mas é a "adequação completa entre a idéia e a forma (...) Assim entendida, a idéia, realizada em conformidade com seu conceito, constitui o

ideal." (HEGEL, 1996: 98)

A verdade ideal na arte se faz, assim, pela superposição de duas verdades: conforme com a verdade absoluta da idéia, e a verdade formal, a verdade da forma concreta. Se na imaginação cristã a verdade permanece sempre inatingível, na realização da arte superior se dá o contrário:

"a idéia concreta guarda em si o princípio do seu modo de expressão, dá-se a si própria, com inteira liberdade, a forma que lhe convém. A idéia verdadeiramente concreta engendra assim a verdadeira forma, e é na correspondência entre uma e outra que reside o ideal." (HEGEL, 1996: 99)

Para Hegel, existem três formas de arte (ou seja, relações entre idéia e conteúdo, "adequação da realidade ao conceito"): a simbólica, a clássica e a romântica. A arte simbólica teria uma aspiração à "unidade" absoluta, mas apresenta ainda uma idéia indeterminada, obscura, "não pode apropriar-se da matéria natural", pois o conteúdo é "indeciso" e "sem precisão verdadeira", baseando-se numa indiferença à forma exterior (HEGEL, 1996: 100). Já na Arte Clássica, há uma liberdade na adequação entre forma e conteúdo, trata-se de:

"um conteúdo verdadeiro exteriorizado num aspecto verídico. O ideal da arte ergue-se em toda a realidade. O que sobretudo importa é que essa adequação entre a representação e a idéia não seja puramente formal: a figura, o aspecto natural, a forma que a idéia utiliza, deve conformar- se, em si e para si, com o conceito." (HEGEL, 1996: 101-102)

Se na arte clássica essa unidade se realizava na "natureza sensível", e na arte simbólica no espírito inatingível, a Arte Romântica seria a superação dialética das duas, pois esta unidade seria feita, então, no "espírito livre": "A idéia libertou-se" (uma forma de arte que procura aplicar a noção de "sublime" à arte). Se a arte clássica atingiu "os mais altos cumes" pela "correspondência perfeita do sensível e do espiritual", a romântica atinge "o máximo" ao conseguir lidar com uma "interioridade absoluta": "na arte romântica o conteúdo da idéia é de ordem mais elevada, é de caráter absoluto; esse conteúdo é o próprio espírito." (HEGEL, 1996: 103) Para Hegel a arte romântica consegue ultrapassar a unidade tanto imediata como a

transcendente ao realizá-la através de uma "uma unidade consciente" (HEGEL, 1996: 104),

uma liberdade total do espírito absoluto, realizado pelo domínio da razão.

Não só na arte, mas também na ciência e nas artes aplicadas, como o Urbanismo, estas noções da verdade absoluta e do ideal constituirão o modus operandi de sua razão. Um exemplo interessante deste procedimento é o "Plano de Avenidas" para São Paulo, realizado por Prestes Maia e já mencionado acima (ver figuras abaixo). Da aparência caótica da cidade

de São Paulo, Maia realiza uma racionalização reducionista que retira a essência funcional das vias, suas direções (no plano horizontal), suas articulações (esquinas), sua hierarquia (largura), e produz um esquema idealizado de suas propriedades ("O dentro festeja o triunfo sobre o fora, e afirma esse triunfo pela negação de qualquer valor às manifestações sensíveis". HEGEL, 1996: 105). A partir da abstração de todas as singularidades, sua proposta é uma reformulação que visa o "ideal", ao dominar e manipular a verdade profunda (tão profunda quanto as águas da Lagoa de Eco) do espaço urbano: uma proposta, teoricamente, técnica, absoluta e perfeita, que reduz o "espírito absoluto" da verdade ao seu procedimento pessoal, ao seu espírito pessoal.

Figuras 42 e 43: Planta das Avenidas de São Paulo e Esquema Ideal, Prestes Maia. Fonte: BRUAND, 1997.

Porém, o absoluto de Hegel, e do Iluminismo, ou aquilo que legitimava o seu sistema, precisava de uma "origem", de uma "essência" para dar fundamentação às suas afirmações: onde aparece o conflito entre a "abertura dialética" e o "fechamento do sistema" (cf. LEFEBVRE, 1971: 43 e 50), de que já falamos anteriormente. Na arquitetura e urbanismo do Iluminismo, se a referência do repertório, das regras e das leis absolutas eram a razão, os seus referentes foram buscados na arquitetura Antiga (Romana e Grega) que eram consideradas uma espécie de linguagem mãe (natural, original), ligadas à verdade pela essência racional da sociedade antiga. Também, boa parte do movimento modernista foi buscar, aí, as raízes legítimas do homem universal e a legitimação de suas respostas artísticas e técnicas, assim, ancoráveis na verdade absoluta.

Porém, na França "Uma consciência precoce da relatividade cultural em fins do século XVII induziu Claude Perrault" e, logo após, o abade de Codemoy a questionarem a métrica

vitruviana, levantando debates se a verdade "suprema" viria mesmo de Roma (o que era mais natural para os Italianos). O abade Laugier (em seu "Essai sur l'architecture") buscou a verdade construtiva na cabana primitiva, a verdade estaria na essência "racional" de uma estrutura primitiva presente no gótico e no clássico. Se Palladio (autor da mais popular métrica do classicismo) queria ser romano, Sufflot (inspirado por Laugier) buscou a verdade por trás de Roma, na filosofia, acreditando na superioridade do mundo das idéias. Só no fim do século XVIII a arquitetura Grega foi reconhecida como anterior à romana (pelo trabalho de arqueologia desenvolvido por expedições inglesas). Já o Barroco, em sua busca pela sistematização do poder, e com a verdade para além do homem (em Deus), quer ser retórico e persuasivo, não verdadeiro. O Neoclassicismo de Schinkel (com influência em Mies van der Rohe, que trabalhou em seu escritório) busca a pureza das leis geométricas e da arqueologia primitivista (primeira) para expressar a verdade na arquitetura. Já Viollet le Duc, com seu racionalismo estrutural, usando o ferro e o vidro, fez uma arquitetura econômica e racional como a gótica; Peter Behrens e Auguste Perret (de quem Le Corbusier foi estagiário) também usam as leis compositivas clássicas em seus edifícios de concreto, um traço de razão "primitiva" (primeira) na razão do novo material (SUMMERSON, 1982: 69; 93; 95; 98; 111; FRAMPTON, 2000: 3-11).

Antes de analisarmos alguns exemplos importantes, cabe uma ponderação. A nossa análise dos planos buscará demonstrar como a cidade ideal que cada cientista urbano propõe não só depende de critérios relativos de verdade, mas funda novas verdades poiéticas, novas potencialidade e virtualidades, que, como vimos, são também parte constitutivas do "realizável", do "realizado" e do "real".

O atual Panthéon de Paris, iniciado em 1755, é projeto de Jacques-German Soufflot que, influenciado pelas idéias do abade de Codemoy, buscou construir uma arquitetura "verdadeira", onde todos os elementos resultavam de uma funcionalidade estrutural e lógica, com o mínimo de paredes, usando principalmente colunas livres110. Soufflot (através da escola de J. F. Blondel) se tornou a referência da chamada "geração visionária" do neoclassicismo, da qual fizeram parte Étienne-Luis Boullée e Claude-Nicolas Ledoux. (cf. FRAMPTON, 2000: 6; KAUFMANN, 1980; SUMMERSON, 1982)

110

Figura 44: Panthéon de Paris, 1755, Jacques-German Soufflot. Fonte: Foto do Autor.

Boullé dedicou-se a projetos tão grandiosos que tiveram sua realização impossibilitada. Buscava as formas puras e ideais da geometria e evitava os ornamentos. Seus princípios eram solidamente republicanos e se baseava em uma utopia centralizadora do estado. (ver mais sobre Boullée no item 1.1.1.)

Ledoux foi o arquiteto da "cidade ideal de Chaux", de 1804. Sua cidade foi concebida a partir de uma fábrica de sal, pensada com grandes pórticos clássicos e volumetrias sólidas. A cidade partia de um esquema central circular, com grandes eixos que confluíam nele. A partir de sua imaginação idealista criou diversas instituições, algumas com referências em instituições tradicionais, como o Fórum, e novas como o Oikema, "projetada na forma de um pênis. Esta última estrutura era dedicada à libertinagem, cuja curiosa finalidade social era induzir à virtude por meio da saciedade sexual" (FRAMPTON, 2000: 8). Era um projeto que pensava uma nova sociedade fundada na razão absoluta, que precisava de um espaço formal também absoluto, constituindo o novo ideal. Nesse projeto, nessa idéia que queria se concretizar, dava-se atenção às novas exigências sociais, lidava-se com elas racionalmente, mas sempre arraigando sua verdade em fontes clássicas.

Figura 45: "Cidade Ideal", 1804, Claude-Nicolas Ledoux. Fonte: FRAMPTON, 2000: 8.

A excentricidade destes pensamentos é fruto de uma crença iluminista profunda na capacidade da imaginação de recriar as instituições tradicionais e construir, pelo pensamento e pelas ciências, uma sociedade onde o homem pudesse exercer seu desejo de liberdade, ou melhor, pudesse "realizar" a liberdade. Pensamentos deste tipo não são exclusividades de arquitetos excêntricos, e muitos pensadores (como Voltaire e Rousseau na época da Revolução Francesa, e Comte 50 anos depois) participaram da construção de novos "rituais" emancipatórios em relação à antiga religião: "Voltaire condensa o espírito de um deísmo crítico, que foi institucionalizado durante a Revolução com a promulgação de um novo calendário não cristão, em 1793, e o estabelecimento dos cultos criados para substituírem o Cristianismo" (BAUMER, 1997: 222). Criava-se, assim, através da razão, novos costumes, uma nova religião e uma nova forma onde eles ocorreriam.

Essa forma de pensar a construção de uma sociedade "ideal" a partir de formas que teriam a capacidade imanente da verdade, ou a resposta perfeita e eterna dos problemas humanos, é um traço em comum ao pensamento da ciência instaurada na modernidade progressista, uma das bases do Urbanismo do Modernismo.

Segundo James Holston, o planejamento urbano (o de Brasília, mas também entendido de uma forma mais geral), ainda está arraigado nos paradigmas de um estato republicano total (herança iluminista que se preserva nos CIAMs), onde caberia ao Estado todo o papel de controlar e reger a criação da nova sociedade. Esta nova sociedade seria construída pela negação das formas antigas (degeneradas) e a substituição por outras formas "imaginadas" (pela soma do gênio criativo ao gênio científico), capazes de formular um futuro melhor (mais "verdadeiro", porque mais "racional"). Desconsidera-se, assim, o caráter parcial destas propostas, que imaginam uma razão ainda não presente, pela negação do antigo como não verdadeiro: "sua noção de futuros alternativos está baseada em causas ausentes [a razão ainda