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PARTE 1: CIÊNCIA E URBANISMO

1.1.1. O Percebido: Visões Correntes do Real

Como vimos, século XIX terminou com diferentes versões sobre a verdade que deveria ser produzida pela ciência. Na transição para o século XX os debates epistemológicos se dividiram entre a continuidade da confiança na ciência e a sensação de crise. Assim, permaneceram no espaço percebido pela ciência diferentes correntes (em fluxo através deste espaço) de objetividades e práticas científicas.

No lado da continuidade, três desenvolvimentos foram importantes segundo Foucault (2005: 309-312): a psicanálise, a fenomenologia e a lingüística16, pois estas continuam uma tradição científica baseada na análise sistêmica, no sistema universal, na normatividade da ciência moderna (categórica) e nas grandes leis17.

(1) O caso da psicanálise18 seja, talvez, o mais distante de nosso estudo, por isso só nos interessa no que implica sua influência sobre a "Poética do Espaço" de Gaston Bachelard. O próprio Freud se remete a uma tríplice humilhação do narcisismo do homem, que teria sido empreendido por Copérnico ("a humilhação cosmológica", não estamos mais no centro do universo), por Darwin (a "humilhação biológica", somos descentes dos macacos), e por Freud ("humilhação psicológica", um inconsciente primitivo atua por trás de nossa razão) (FOUCAULT, 2005: 43).

Entretanto minha argumentação a respeito do narcisismo da ciência é bastante diferente, já que em todas estas "humilhações" anteriores, o antigo status, atribuído pela

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Estas correntes se articularam diferentemente com o marxismo, por exemplo, da soma de psicanálise e Marx, surge Marcuse; da soma de Fenomenologia e Marx, surgem Sartre e Lefebvre (que se soma também a Nietzsche); da mistura de lingüística estrutural e Marx surgem Levi-Strauss e Althusser. Outros autores como Bachelard não se misturam a Marx (somando psicanálise e fenomenologia). Foucault não assumiria outra influência além de Nietzsche. Aprofundaremos nosso estudo no estruturalismo, por sua maior influência no urbanismo e arquitetura, passando rapidamente por Freud e a Fenomenologia, mas dando ênfase em Bachelard, devido sua Poética do Espaço aproximar-se de nosso tema.

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Esta divisão é bastante polêmica no âmbito da arquitetura, já que coloca o movimento pós-modernista em arquitetura e urbanismo como uma continuidade das mesmas questões do movimento modernista, e não como uma crítica radical de seus pressupostos, como veremos ao decorrer da argumentação. Outras importantes influências como a Escola de Chicago (ecologia urbana de "like individuals making like choices"), a escola francesa (Perroux, Cristaller, Lebret) e Geografia Alemã, serão tratadas na "Parte 2" diretamente vinculados com as questões do "urbanismo" e do "moderno", à medida que se articulem com o nosso objeto de estudo. O presente item 1.1.1. (que significaria a percepção da percepção da percepção) tem um evidente caráter meta- científico.

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Falar como um todo da psicanálise, ou mesmo apenas de Freud, ou ainda apenas de um aspecto em Freud é sem dúvida um empreendimento que o autor não se considera capaz (nem mesmo pela capacidade de síntese requerida). Entretanto, as questões de uma "Mesa Redonda", realizada por Foucault, com o tema "Nietzsche, Freud, Marx" fornecem um interessante pano de fundo sobre o procedimento narcisistico da ciência e a formulação da emancipação na consciência moderna, questões centrais neste trabalho, e que serão tratadas novamente adiante.

tradição, é simplesmente substituído pela construção lógica de cada um destes empreendedores e, em última análise, o narcisismo do homem antigo (tradicional) era substituído pelo narcisismo de homens da ciência (no caso Copérnico, Darwin e Freud). Assim, Freud toma o narcisismo no sentido de orgulho estabelecido, e não no duplo sentido aqui proposto: Narciso como métrica projetada sobre a realidade e Narciso como a única imagem bela (verdadeira) percebida, excluindo as Outras belezas do mundo (como a sequer notada ninfa Eco). Só assim pode-se compreender o que Foucault relata com desdém: "Sartre ou Merleau-Ponty (...) não pararam de tentar reduzir o que era, para eles, o positivismo, o mecanicismo ou o coisismo de Freud" (FOUCAULT, 2005: 311).

Para nós, este positivismo seria a automatização do próprio narcisismo da ciência freudiana, que toma suas idéias (como a de "inconsciente") como uma coisa-em-si. Neste sentido, Marcuse (1967) afirma que a teoria de Freud seria a construção de um novo "grid" teórico, que parte de novos axiomas para construir novas possibilidades de entendimento do homem, onde o "inconsciente" freudiano é tomado como uma verdade mais "essêncial" que a própria razão, uma verdade "primitiva" (primeira). Entretanto, Marcuse argumenta que as questões tratadas por Freud já são discutidas há muito tempo em outros termpos pela teoria social, e devem ser confrontadas diretamente com elas. Sua principal crítica é a respeito do conservadorismo de Freud, que toma a verdade da sociedade de seu tempo como universal (e necessária), reduzindo a saúde da mente a uma conformidade unidimensional com o mundo: "O psiquiatra cuida dos Don Juans, Romeus, Hamlets, Faustos da mesma forma como cuida de Édipo - ele os cura." (MARCUSE, 1967: 81). Isso seria, em última instância, a impossibilidade de mentalidades rebeldes, de mentalidades negativas e de experiências diferentes do mundo, que aproximaram grandes gênios à loucura (FOUCAULT, 2005: 46; ver também a história de Hamlet no item 1.2.3.).

Para Foucault a questão do inconsciente e a questão da linguagem (e do significado) não seriam possíveis no paradigma fenomenológico (FOUCAULT, 2005: 311), e por isso o estruturalismo teria desenvolvido à frente da fenomenologia, por incorporar as questões da psicanálise. Mas, contrariando Foucault, esse é justamente o empreendimento de Gaston Bachelard, cujo livro "A Poética do Espaço" teve importante repercussão nas teorias da arquitetura e do urbanismo, e sua proximidade aparente com nossa Poiesis do Espaço, exige que estabeleçamos nossas diferenças. Vejamos desde suas bases.

(2) A fenomenologia surge, inicialmente, com Edmund Husserl que buscou substituir a ontologia pelos fenômenos tal qual se apresentavam aos homens. Assim, o estudo da realidade

deveria partir da formulação dos próprios objetos, ou seja, nos fenômenos que são as coisas como elas aparecem na experiência dos sujeitos. Nesse sentido, seus estudos sobre o "mundo da vida" são a busca por entender os fenômenos a partir de parâmetros articulados totalmente pela experiência, sem a mediação de conceitos e abstrações, característicos dos estudos de essências gerais da ontologia. Assim, sua filosofia quer compreender diretamente essa relação, este espaço entre o ideal e a coisa em si, que é o "espaço" onde a vida acontece, o mundo que acontece como fenômeno a partir de sua percepção (SOJA, 1993: 160-168).

O empreendimento de Martin Heidegger foi uma revolução do pensamento de seu antigo mestre (Husserl), mas sem voltar atrás, por partir de uma ontologização da fenomenologia, ou em outras palavras, recolocar a própria ontologia no seio dos fenômenos. Assim, nesse espaço de cisão, espaço intermédio, encontrar-se-ia a essência e a fundação do ser: "Ser-aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada." (HEIDEGGER, 1996: 58). Para Stuart Elden (2005), Heidegger está para Lefebvre, assim como Hegel está para Marx: a filosofia de Lefebvre seria a fenomenologia idealista de Heidegger invertida com os pés no chão, arraigada na práxis concreta e material (o que não deixa de ser uma redução narcisista, já que o foco dos estudos de Elden era anteriormente Heidegger).

Sartre, inicialmente, ao escrever "O ser e o Nada", partiu das idéias de Heidegger, mas mudou radicalmente seu pensamento, no mesmo momento em que Lefebvre escreveu seu livro "O Existencialismo", um ataque ao avanço do existencialismo sobre o marxismo e uma crítica direta a Sartre: a partir de então Sartre passou a falar de um ser localizado e situado no mundo, pois o ser não mais seria suspenso, mas ligado às condições específicas (a história material), fazendo sua conhecida inflexão para o marxismo (cf. SOJA, 1993).

Na arquitetura e urbanismo, a maior influência da fenomenologia ocorrerá através da figura de Gaston Bachelard, que também empreenderá sua transformação da fenomenologia, ao incorporar as questões da psicanálise. Em "A Água e os Sonhos" (1997), um dos quatro ensaios sobre os quatro elementos, ele buscou estudar a água que preside todas as nossas vivências exteriores, buscando-a no interior da mente humana, achando seus traços no inconsciente, sua base nas formas primitivas e essenciais de nossa mente, que seriam comuns a todos os homens. Assim, Bachelard ontologiza a experiência da matéria, não no espaço vazio entre o homem e as coisas (à maneira de Heidegger), mas, nas profundezas do subconsciente.

Por outro lado, Boaventura Souza Santos comenta o ponto de vista da epistemologia de Bachelard, como a visão mais avançada do que seria a "ciência moderna", e por isso a que mais expõe seus limites: Bachelard parte de uma ruptura radical com a visão do senso

comum, centrando-se no especialista como a visão correta do mundo, entendendo esta sobrevisão da ciência a partir de uma ótica construtivista, que é constituída numa organização sistemática do entendimento sobre o real (SANTOS, 1989: 30, 31). Assim, em Bachelard "a teoria do objetivo é construída contra o objeto ou, mais em geral, conhece-se contra um conhecimento anterior" (SANTOS, 1989: 33).

Boaventura argumenta que, a partir desta primeira ruptura, que permite à ciência recriar os saberes tradicionais sobre uma nova base, é preciso construir uma segunda ruptura, como uma estratégia de transição para um outro tipo de ciência, uma ciência que signifique a melhoria de vida concreta dos homens e que permita uma sociedade menos hierárquica. A segunda ruptura seria, portanto, o feedback, a volta do conhecimento, transformando o senso comum num senso esclarecido19 (BOAVENTURA, 1989: 26 ss). No decorrer de sua carreira, Boaventura apresentará uma outra visão, que busca superar a divisão entre saberes comuns e científicos, formulando a teoria de uma "ecologia dos saberes" (ver final deste item).

No que nos concerne, em "A Poética do Espaço", Bachelard considera a poesia como uma "criação absoluta", como uma "ocasião de libertação", que faz de nossa era uma "era poética":

"Poderemos hesitar na determinação exata do plano de ruptura, poderemos deter-nos por muito tempo no âmbito das paixões confusionistas que perturbam a poesia. Ademais, a altura a partir da qual atingimos a sublimação pura indiscutivelmente não está no mesmo nível para todas as almas." (BACHELARD, 1988: 15)

Assim, também no espaço Bachelard se coloca (e coloca também seus companheiros poetas) como almas superiores, à semelhança do que era feito nas bulas papais, que teriam o privilégio e a capacidade de encontrar verdadeiramente as formas absolutas do ser, num processo em que a invenção poética coincide com a busca profunda de nossas primitividades (definidas pelo cientista/poeta contra o próprio objeto).

Por estas razões, ele pôde ver que a "casa natal está fisicamente inserida em nós", onde o "nosso corpo que não esquece e a casa inolvidável" tornariam o sótão uma categoria sempre presente, onde a casa é imaginada vertical (se eleva), e concentrada (centralidade), formando pólos: o porão (irracionalidade) e o sótão (as vigas no teto como a própria racionalidade):

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Boaventura problematiza a questão do senso comum, conceito que surge no século XVIII como o senso burguês (médio mas universal) na luta contra o Ancien Régime. Depois na Ciência Social do século XIX é desvalorizado, onde para Durkheim era a "opinião pública", para Marx uma "ideologia espontânea", e em Comte, como vimos, surge a vontade de revigorá-lo. Para Boaventura o senso comum pode ser visto como tendo uma "vocação solidarista e transclassista", mas tem um "viés conservador" que "reconcilia a consciência com a injustiça" e "naturaliza as desigualdades" ao "conciliar os indivíduos com o que existe". Como também a ciência, tem um caráter conservador, mas é importante notar que existem diferentes sensos comuns, alguns formados em subculturas e culturas de resistência, além de ser um conheimento prático e pragmático, e na sua superficialidade tem a potencialidade de captar uma "profundidade horizontal" (SANTOS, 1989: 36-40).

"valores de sonho que se comunicam poeticamente de alma para alma. A leitura dos poetas é essencialmente devaneios." (BACHELARD, 1988: 33-36) De fato Bachelard constrói uma importante visão da relação entre as formas arquitetônicas e as formas de nosso pensamento, mas é necessário refutar o "eurocentrismo" de suas imagens e o determinismo de sua poiesis.

Percebe-se este seu determinismo narcisístico mais claramente em seu debate contra o "Estar-aí" de Sartre, onde pergunta se este não deveria ser tratado como um "ser aqui", mais centrado no eu. Bachelard também questiona uma suposta fixação geométrica pobre de Sartre: é que Sartre argumentara que o ser não é algo estático, fixo e para sempre, a história e as diferentes culturas têm demonstrado que o nosso ser muda, não só com o tempo linear, mas também de acordo com a situação (formais no trabalho, carinhosos em casa, e festeiros na rua, diria Damatta, 1987a, tomando "Dona Flor e seus dois Maridos" como uma referência ao ser brasileiro). Concluía, assim, Sartre, que o ser não é centralizado em um ponto, fixo e rígido, mas é uma espiral, que nunca chega a um centro estável, rodopiando em torno de um centro vazio: o ser em constante reinvenção pela sua situação. A refutação de Bachelard, apesar de ser bela, demonstra seu equívoco:

"Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saído do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é rosário de permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim.

E que espiral é o ser do homem! Nessa espiral quantos dinamismos que se invertem! Já não sabemos imediatamente se corremos para o centro ou se nos evadimos. Os poetas conhecem bem esse ser da hesitação de ser." (BACHELARD, 1988: 217)

Da frase de Jaspers "Todo o ser parece ser redondo", Bachelard retira o "parece" e conclui: "Das Dasein ist rund [o ser é redondo]" (BACHELARD, 1988: 235, 237). Quem está certo? Haveria uma única essência verdadeira? Qual é o primitivo do primitivo? Para além do correto ou do errado, além do mundo reflexo de um único e belo Narciso, veremos adiante como a poiética de que falamos é bem diferente, pois postula uma poética onde há invenção (transformação) do ser, e não apenas "descobrir" (desvelar) o ser primitivo (original) (ver item 1.1.3.). Cabe uma ponderação de Lefebvre:

"Pensemos nas idéias e nos sonhos sôbre a casa, sôbre os elementos, sôbre o sagrado em Heidegger, em Bachelard. Para êsses grandes meditativos, e é talvez um traço de filosofismo, a preocupação de compreensão sobrepõe-se à exploração da praxis; a compreensão descobre- se em simbolismos profundos mas arcaicos. Essa observação permite distanciar-se de Heidegger e também de Bachelard, não sem ter evidenciado seu prestígio como pensadores da transição, na transição." (LEFEBVRE, 1967: 381, erros ortográficos foram mantidos)

(3) A lingüística, correndo em paralelo, é a base do estruturalismo, formando uma corrente de pensamento bastante diversa das anteriores, e muitos dos seus autores não tinham plena consciência do que "estruturalismo" significava (cf. Foucault, 2005: 308). Entretanto,

consideramos que faça parte de uma corrente mais ampla, de uma razão que transpassa todo século XX, e que pode ser chamada de "formalismo", referenciada no uso da lógica formal20.

Ferdinand Saussure, com seu Curso de Lingüística Geral (de 1915), é a influência marcante, e construiu um vasto sistema lógico formal que passou a servir de base estruturante da maioria das abordagens sociais subseqüentes (importante, mesmo que por antítese, para o pós-estruturalismo), influenciando figuras como Levi-Strauss, Althusser, Castells, Lyotard, Derrida e Foucault. (MONTANER, 2000; HARVEY, 1992; ECO, 1991; STROETER, 1986; FOUCAULT, 2005: 311)

Também Roque Laraia classificará quatro principais abordagens dos estudos culturais, concluindo que o estruturalismo e a hermenêutica teriam tido maiores importância e desdobramentos.21

O esquema abaixo é utilizado por Umberto Eco (1991) para explicar o processo de análise teórico envolvido na elaboração de uma estrutura. A partir de uma síntese do homem e de uma árvore é possível retirar um terceiro esquema que está por trás dos anteriores (compreende suas lógicas) evidenciando a estrutura em comum: constrói-se assim um modelo (e um conjunto de regras) que serve para realizar confrontos sobre um determinado ângulo (ECO, 1992: 36-37).

Figura 5: A estrutura. Fonte: ECO, 1991.

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Sobre a relação forma conteúdo veja próximo item.

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As abordagens são: (1) uma abordagem mais cientificista entende a Cultura como um sistema adaptativo, buscando os padrões de comportamente e como resultado de um sistema de seleção e adaptação natural; (2) numa abordagem da cultura como sistema cognitivo entendendo-as como um construto para a organização das relações sociais, passíveis de identificação e classificação; (3) o entendimento da organização da sociedade como

sistemas estruturais onde os "paralelismos cultuais" podem ser "explicados pelo fato de que o pensamento

humano está submetido a regras inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios - tais como a lógica de contrastes binários, de relações e transformações - que controlam as manifestações empíricas de um dado grupo"; (4) Cultura como sistemas simbólicos, que busca a definição do homem baseada na cultura, entendida como os "softwares" em relação aos computadores, formados por códigos simbólicos públicos compartilhados, levando a análise a ser sempre uma interpretação: difere do 2o que quer captar código cultural como gramática, e do 3o que quer descodificá-lo (tem como principal expoente Clifford Geertz) (LARAIA, 2000: 62-64)

Na antropologia, Claude Levi-Strauss será a influência marcante, sistematizando a forma do pensamento estrutural. Assumindo a influência inicial de Saussure, da psicanálise e de Marx (LEVI-STRAUSS, 2000: 53 e 55), ele explica como se faz um etnógrafo estruturalista:

"Primeiramente, para além do racional existe uma categoria mais importante e mais fértil, a do significante (...) sobre o Curso de lingüística geral, de F. Saussure (...) seres e coisas podem conservar seus valores próprios sem perder a nitidez dos contornos que os delimitam uns em relação aos outros, e dão a cada um uma estrutura inteligível. O conhecimento não se baseia numa renúncia ou numa permuta, mas consiste em uma seleção de aspectos verdadeiros, isto é, aqueles que coincidem com as propriedades de meu pensamento. Não, conforme pretendiam os neokantianos, porque este exerce sobre as coisas uma inevitável coerção, porém bem mais porque meu pensamento é ele próprio um objeto. Sendo 'deste mundo', participa da mesma natureza que ele. (...) Quando conheci as teorias de Freud, pareceram-me (...) uma iniciativa que consiste em interpretar cada gesto como o desenrolar no tempo de certas verdades intemporais cujo aspecto concreto os provérbios tentam restituir no plano moral mas que, em outras áreas, chamam-se leis. (...) Marx ensinou que a ciência social constrói-se tão pouco no plano dos acontecimentos quanto a física a partir dos dados da sensibilidade: a meta é construir um modelo, estudar suas propriedade e suas diferentes formas (...) Os três demonstram que compreender consiste em reduzir um tipo de realidade a outro; que a realidade verdadeira nunca é a mais patente; (...) Entre o marxismo e a psicanálise, que são ciências humanas, uma com perspectiva social, outra, individual, e a geologia, ciência física - mas também mãe e nutriz da história, tanto por seu método quanto por seu objeto -, a etnografia se instala espontaneamente em seu próprio reino (...)" (LEVI-STRAUSS, 2000: 53- 56)

O estruturalismo caracterizava-se, portanto, em buscar compreender a diversidade das formas sociais existentes, buscando as regras gerais que as coordenavam. Na lingüística, por exemplo, isso significava a elaboração de uma gramática formada com regras sintáticas, semânticas, paradigma de palavras, fonemas, elementos de primeira e segunda articulação, etc. Na análise de sociedades tradicionais, buscava-se as regras sociais gerais, a estrutura de poder, as relações de parentesco, as divisões em metades e clãs, a divisão social do trabalho, etc.22

É importante caracterizar como este empreendimento se diferencia drasticamente do de Auguste Comte, que vimos acima. Como demonstra Roberto Damatta, o empreendimento do estruturalismo foi argumentar que o primitivo não está contido na sociedade "civilizada"

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Cabe adiantar uma crítica marxista ao estruturalismo de uma forma geral: as "maneiras" estruturalistas de análise da sociedade levam à construção de modelos estáticos, baseados principalmente em suas relações sincrônicas e internas, omitindo a mudança (as relações diacrônicas como elementos previstos e estáveis): "Essas maneiras, suponho, ou devem trazê-lo para mais perto do marxismo, ou levar a uma negação da mudança evolutiva. A abordagem de Lévi-Strauss (e a de Althusser) parece-me estar no segundo caso. A mudança histórica se torna simplesmente a permutação e combinação de certos 'elementos' (para citar Lévi-Strauss, análogos aos genes na genética) que, no prazo suficientemente longo, devem supostamente se combinar em padrões distintos e, se suficientemente limitados, esgotar as combinações possíveis. A história [seria], por assim dizer, o processo de repassar todas as alternativas de xeque no jogo de xadrez." (HOBSBAWN, 1998: 165)

como uma etapa anterior ou menos desenvolvida, mas necessária (como no evolucionismo do século XIX). (DAMATTA, 1987: 98)

No esquema abaixo, Damatta demonstra como o pensamento social anterior "rebatia" as diferentes formas sociais à uma hierarquia vertical, colocando-se no topo. Desta forma, reduziam as "outras" formas sociais, "reduzindo o estranho ao familiar". De uma pluralidade horizontal de possibilidades, o observador através dessa ótica não vê as outras sociedades como próximas ou distantes, mas como superiores ou inferiores. Trata-se de um etnocentrismo que reduz o caminho evolutivo da verdade a única direção.

Figura 6: Etnocentrismo e Relativismo. Fonte: DAMATTA, 1987.

Para que as sociedades "primitivas" não fossem consideradas menos evoluídas, suas idéias e valores deveriam ser compreendidos em relação à estrutura de origem (daí o nome

relatividade) e não como formas primitivas e anteriores na escala de evolução social (como

em Comte), um avanço inegável para o pensamento moderno.23 Entretanto, por trás deste empreendimento, encontrava-se a tentativa de construir a estrutura geral e necessária para todas as formas humanas, encontrando as leis e elementos comuns a todas as sociedades (a estrutura), formulada como uma teoria geral.24