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O circuito neo-utopia/distopia no romance pós-ditatorial brasileiro: uma hipótese

3. O PARAÍSO SEQUESTRADO: UTOPIA, DISTOPIA, NEO-UTOPIA

3.3 O circuito neo-utopia/distopia no romance pós-ditatorial brasileiro: uma hipótese

Em Romantismo e Marxismo (1990) Michel Löwy procura estabelecer convergências entre o messianismo judeu e as utopias libertárias na Europa Central do início do século XX, com o objetivo de compreender aspectos messiânicos nos trabalhos de ideólogos judeus como Lucáks e Benjamin.

A título de introdução Löwy diz que Karl Mannheim fala, em seu Ideologia e

utopia, do “anarquismo radical” de procedência quiliástica, como a forma mais moderna

da consciência utópica associada ao milenarismo. Mannheim aponta o escritor anarquista judeu Gustav Landauer, um dos dirigentes da Comuna de Munique em 1919, como aquele que personificou de maneira mais acabada essa atitude espiritual. A propósito, Löwy (1990, p. 132) alerta que muitos dos operários de Munique e de Budapeste, à época, estavam impregnados da ideia de que deveriam desempenhar a tarefa de redentores do mundo, funcionando como um “messias coletivo”. No entanto, elementos como esses não são suficientes para conferir uma ligação mais efetiva entre o messianismo judeu e as utopias libertárias em voga nesse período. Para, de fato, chegar a essa associação, é preciso examinar as implicações políticas do messianismo judeu. Desse modo, Löwy procura analisar o tipo ideal do messianismo judeu, verificando suas características mais evidentes.

A primeira delas é a de que o messianismo contém duas tendências, intimamente ligadas e contraditórias ao mesmo tempo:

uma corrente restauradora, voltada para o restabelecimento de um estado ideal do passado, uma idade de ouro perdida, uma harmonia edênica rompida, e uma

corrente utópica, aspirando a um futuro radicalmente novo, a um estado de coisas

que jamais existiu. A proporção entre as duas tendências pode variar, mas a ideia messiânica só se cristaliza a partir de sua combinação (Löwy, 1990, p. 133, grifos do

autor).

Essas duas correntes coexistem numa relação dialética, que as torna inseparáveis, e estão concentradas no conceito hebraico (bíblico e cabalístico) de tikun (que significa a um só tempo, restauração, reparação e reforma). Uma correspondência dessa natureza se faz igualmente presente no pensamento libertário, só que nesse caso a relação se dá entre conservantismo e revolução podendo também se manifestar na relação ente utopia libertária e nostalgia do passado pré-capitalista. Essa nostalgia, por sua vez, pode se manifestar recuada até etapas arcaicas da experiência humana, como a Idade Média (esse

é, aliás, o caso de Landauer). Löwy (1990, p. 134) ainda observa que essa “dimensão romântico-nostálgica” está presente em todo o pensamento revolucionário anticapitalista.

A segunda característica do messianismo judeu é o princípio da redenção que no judaísmo deve acontecer necessariamente na cena da história e, portanto, no mundo material. Um aspecto importante é que esse princípio de redenção vem acompanhado da ideia de uma “irrupção catastrófica”, uma era de corrupção e de culpabilidade total, que somente será superada com a destruição absoluta da ordem existente (LÖWY, 1990, p. 134-135). O paralelismo entre esse esquema significativo e certos elementos das doutrinas revolucionárias se anuncia a partir da noção de “apocalipse revolucionário”, que substitui a utopia racional do progresso eterno (SCHOLEM apud LÖWY, 1990, p. 135) e que se faz presente em ideólogos como Enrst Bloch, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Herbert Marcuse.

A terceira e última característica é a ideia de que o advento do Messias traz consigo a abolição da Torá atual que será substituída por uma nova Lei chamada “Torá da Redenção”. Essa nova Torá é ausente de proibições e interdições e se faz acompanhar da irrupção de um novo mundo, paradisíaco, onde o Bem e o Mal perdem suas significações e atribuições. Um mundo assim tem correspondente naquele como o pensado pelo ideólogo anarquista Bakunin (apud LÖWY, 1990, p. 137), um mundo em que prevalece apenas a paixão e a vida, sem leis e, portanto, livre. Diz Löwy (1990, p. 137, grifos do autor):

A análise dos três aspectos acima deve ser concebida como um conjunto; ela revela, portanto uma notável homologia estrutural, um inegável isomorfismo espiritual entre esses dois universos culturais situados em esferas (aparentemente) totalmente distintas: a tradição messiânica judia e as utopias revolucionárias modernas, principalmente libertárias. (...) Amálgamas ideológicos desse tipo não são raros na história da cultura: basta pensar na cabala e na alquimia após a Renascença, (...) ou, para tomar o exemplo mais célebre da sociologia moderna, a ética protestante e o espírito do capitalismo.

Todos os elementos examinados por Löwy, operam, basicamente, sobre três pontos cruciais: primeiro, que na dialética entre a corrente restauradora e a corrente utópica, há o envolvimento de um signo espaço-temporal, que remete tanto a um lugar extremo quanto a um passado mítico. Segundo, esse signo depende de um esforço de redenção, que se realiza necessariamente no mundo material e, portanto, histórico;

terceiro, ele arrasta consigo um novo tempo-espaço, também mítico. É interessante notar que esse esquema se fecha, retornando ao ponto inicial, ou seja, a uma natureza que mesmo sendo nova, mantém diálogo próximo como um passado longínquo, pré-racional, pois é nele que está sua inspiração.

Ainda no ensaio Romantismo e Marxismo Löwy 1990, p. 15 -16) analisa ilações entre romantismo e contestação e propõe uma tipologia de ocorrências do romantismo:

O romantismo “passadista” ou “retrógrado”, que visa estabelecer o estado social antecedente [...] 2) O romantismo conservador que, contrariamente ao precedente, deseja simplesmente a manutenção da sociedade e do Estado tal como existem nos países não tocados pela Revolução Francesa [...] 3) O romantismo desencantado, para o qual o retorno ao passado é impossível, quaisquer que tenham sido as qualidades sociais e culturais pré-capitalistas [...] 4) O romantismo

revolucionário (e/ou utópico), que recusa ao mesmo tempo, a ilusão de

retorno às comunidades do passado e a reconciliação com o presente capitalista, procurando uma saída na esperança do futuro.

Em Estrela da manhã (2002), Löwy voltaria a celebrar o estudo sobre a relação entre filosofia política e elementos utópicos. Assim, ele afirma, por exemplo, que o marxismo que impregnou o Surrealismo é um “marxismo romântico”, assim definido por Löwy (2002, p. 32):

Refiro-me com isso a uma forma de pensamento que é fascinada por certas formas culturais do passado pré-capitalista, e que rejeita a racionalidade fria e abstrata da civilização industrial moderna – mas que transforma esta nostalgia em força na luta pela transformação revolucionária do presente.

Porém, o mais importante para os interesses imediatos da presente investigação é a análise que Löwy realiza acerca da possibilidade de um marxismo gótico em Benjamin e Breton. Proposto por Margaret Cohen esse goticismo é um aspecto passível de ser proveniente de “uma genealogia marxista fascinada pelos aspectos irracionais do processo social” (LÖWY, 2002, p. 41). Mas Löwy discorda de Cohen, uma vez que o conceito de irracional nunca esteve presente nos escritos de Benjamin ou de Breton. Löwy também observa que em ambos havia o desejo expresso de superar uma certa visão racionalista das Luzes, mas verifica ser a expressão marxismo gótico, usado por Cohen,

muito apropriado desde que se possa pensar o gótico, a partir de sua herança romântica, ou seja, vinculando-se aos sentidos de encantamento e de maravilhoso:

O marxismo gótico comum aos dois seria, portanto, um materialismo histórico sensível à dimensão mágica das culturas do passado. ‘Gótico’ aqui deve ser tomado – também – no sentido literal de referência positiva a certos momentos-chave da cultura profana medieval (LÖWY, 2002, p.41, grifos do autor)

Ora, é exatamente essa dimensão gótica que parece oferecer os termos para o estágio que reúne os signos de um novo mundo, irracional, e um mundo velho, pré- racional, ainda que para isso seja preciso separá-los. Sem perder as ideias de Löwy de vista, principalmente, a que corresponde ao principado de uma utopia libertária que vai buscar no passado, mesmo já sob o peso da idealização, importantes signos de constitucionalidade e de legitimidade, pode-se pensar que a utopia revolucionária que se deixa transpassar por uma experiência humana antiga, arcaica, pré-histórica e pré- capitalista, tem por horizonte pretérito e futuro, uma sociedade sem classe e sem Estado, lugar de harmonia entre o homem e a natureza, ou mesmo, de um paraíso extraviado.

A proposta de Löwy faz lembrar que muitos dos elementos temáticos presentes em narrativas, como as aqui analisadas, são avaliados por Marcelo Ridenti como um modo de codificar uma modernidade paralela, a partir de uma apropriação de elementos do passado. Ridenti vê esses elementos do passado como expressão de um utopismo romantizado. Lembrando que tais elementos em narrativas, como Pessach, a Travessia – ou Quarup – operam em prol do rompimento da ideia de progresso, e desse modo, estabelecem uma ligação com o futuro, não no sentido de que este se realize como um retorno a esses momentos arquetípicos, mas que, a partir deles, ocorra um esforço em prol do deslizamento do que há no presente, em direção a uma sociedade mais justa, mas que integre conquistas da modernidade (RIDENTI, 2002, p. 45-46).

Ainda que me sinta tentada a ver esses mesmos elementos como signos da idealização de uma utopia gótica, vejo que o termo gótico, dificilmente, pode ser aplicado nos termos de uma cultura, como a brasileira, que por motivos históricos e políticos prescinde de uma Idade de Ouro, tal qual a de culturas mais arcaicas, como são as da maioria das nações que foram colonizadoras e que de certa forma apresentam uma Gênese baseada em mitos da criação e reconhecida como tal. Um termo mais adequado parece ser justamente o de utopismo romantizado, pois outras categorias que poderiam auxiliar

esta análise, como utopia romântica ou utopismo romântico, quando aplicadas à literatura tendem a se referirem mais diretamente aos elementos do romantismo literário, enquanto o termo utopismo romantizado (com o termo romantizado aqui entendido como produto de um processo de romantização) carrega melhor a dinâmica da apropriação de elementos. São signos que, essencialmente, contem uma idealização romântica e por esse motivo aproximo a análise do raciocínio de Ridente. Mas tomo aqui o termo “romantizado” com uma coloração que se aproxima daquela intuída por Michel Löwy, ao tratar do marxismo gótico, ou seja, como portador da dimensão estética que certos elementos arquetípicos da história da cultura brasileira podem emprestar a um conteúdo utópico.

Ademais, é possível compreender que na busca por responder às estruturas que provocam e sustentam a situação de imobilidade revolucionária do sujeito, a forma apresentada pelas narrativas pós-ditatoriais das décadas de 70 e 80 do Século XX, assimila uma autoconsciência congestionada e fragmentada, que muitas vezes se lança a um esforço metarreflexivo radical, irônico e até derrisório em favor de uma perspectiva frustrada relativamente a esses signos do utopismo romantizado, constituídos nas narrativas pós-ditatoriais de 60. Dessa forma, vejo que o predomínio da fragmentação e da auto-consciência narrativa e ficcional, nos romances referidos, não derivam apenas das incursões da censura ou de uma resposta à crise do escritor frente a mercadologização de seu trabalho. Derivam, sobretudo, de determinadas potências utópicas esgarçadas, como aquelas que acreditavam ser possível transformar o estatuto da governabilidade.

Valendo-se da metáfora do arauto, o núncio que proclama a guerra ou a paz, Ignácio de Loyolla Brandão (1994, p. 179), observa que os escritores, durante a permanência do regime civil-militar de 1964, se transformaram em mensageiros da resistência. É bastante indiciária a imagem evocada, uma vez que nela, está implicada a lucidez acerca de um determinado papel que deveria ser assumido pelo escritor a partir de um lugar discursivo específico, que incluía o desafio e a iluminação e, igualmente, a posição como agente potencializador de possíveis referenciais de resistência ao estado autoritário.

No capítulo reservado à apresentação das obras refiro que o tratamento dado à imagem do intelectual, nessas narrativas, provoca, em relação às atitudes da personagem, uma reminiscência do herói problemático de Lukács. Ligando essa intuição a algumas conclusões de Marcelo Ridenti e a outras, oriundas de estudos da fortuna crítica (particularmente no que tange às transformações sofridas por essas narrativas), avalio ser possível ensaiar também um quadro de transformações que atravessa a forma como outras

inspirações e valores utópicos ganharam funcionalidade nas narrativas pós-ditatoriais brasileiras.

Frente a essas considerações observo que narrativas da década de 60 se compõem como neo-utopias, contudo, nelas a neo-utopia constitui-se no entrelugar entre o conceito definido por Izarra e a proposição de Abensour; por sua vez, as de 70 e 80, se aproximam das distopias contemporâneas. As primeiras, inspiradas por esse utopismo romantizado, forjado na recuperação literária de determinados signos – o índio, o camponês, o guerrilheiro revolucionário – enquanto as segundas colocam sob especulação vários dos valores utópicos formulados nas narrativas de 60 supracitadas e, consequentemente, do utopismo que elas sustém, mas esse utopismo é narrativamente proposto como energia utópica direcionado a um horizonte de melancólica esperança, em devir. Todas elas elaboram e re-elaboram esses elementos a partir do olhar de um escritor e/ou intelectual que se posiciona como protagonista, e desse modo como articulador de uma memória que precisa sobreviver ante a derrota da luta.

A questão central é que a sobrevivência também se torna uma utopia, quando pensada enquanto potência de vida frente à adversidade. Ao se pensar esses aspectos transpostos para o domínio da dramatização, ou seja, do papel que adquirem quando transformados em situações dentro de um discurso literário, penso, sobretudo, que podem estabelecer nuances temáticos reveladores da agonia que muitas vezes confronta a disposição heroica e de como esta possibilidade de constituição, por sua vez, relaciona- se a uma intrincada rede de antagonismos, muitas vezes, inconciliáveis. Como já visto em capítulo anterior, alguns aspectos, avaliados pela fortuna crítica, quando confrontados entre si, permitem que se perceba que na virada da década de 60 para a de 70, grande parte dos elementos da mitologia romântica da revolução, como representações artísticas, foram parcial ou totalmente descontruídos. Superados, deslocados ou invertidos, eles chegariam às produções literárias de 80 e 90, envoltos nessa memória melancólica.

É licito perguntar, portanto, até que ponto os antagonismos materiais impuseram- se sobre tais transformações e, em que medida, e de que modo a estrutura narrativa do texto ficcional acomodou esses antagonismos. A suspeita é de que a solução narrativa para tais acomodações repousa sobre as constituintes estruturantes da narrativa distópica. Mas aqui não estou conseiderando tão somente a narrativa distópica conforme o paradigma mais conhecido: 1984, centrada em narrar o maquinário da anomia. Os romances brasileiros aqui analisados parecem estar muito mais próximos da distopia tocada pela forma da narrativa contemporânea ou pós-moderna, a exemplo de

Slaughterhouse-five e The Handmaid’s Tale, que tomo aqui como referências imediatas.

Essas, dispostas a refletir sobre a maquinaria da sobrevivência.

Vê-se dessa maneira que como parte do processo de desarranjo dos mitos e concepções erguidos na década, de 60, a personagem-escritor das narrativas de 70 e 80, deixa de estabelecer-se como o herói da narrativa pós-ditatorial de 60, que se desloca da função primeira de intelectual e escritor ao colocar em averbação outra função, a do guerrilheiro. Sem mais lugar para heroísmos o escritor quando transformado em protagonista das narrativas pós-ditatoriais de 70 e 80, tende a dividir com outras personagens a focalização narrativa destacando-se nesse processo como aquele que organiza, que procura dar uma certa coerência às diferentes experiências, mas ainda que esteja ciente do anacronismo do antigo herói ainda esboça uma certa nostalgia dessa experiência. Desse modo, o que pode parecer simples nonada traduzida, no âmbito da diegese, através de uma atitude de resistência engessada, na verdade, se manifesta como expressão de um sufocamento, cujos elementos mais profundos somente se fazem verificáveis na ordem das antinomias que ao mesmo tempo resgatam e fazem oscilar, subversivamente, as energias utópicas, contribuindo para a expressão de um conjunto de elementos no corpus que proponho analisar nos próximos capítulos.