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4. UMA JORNADA PARA A RESISTÊNCIA: PESSACH, A TRAVESSIA

4.2. A resistência como jornada

O narrador de Pessach, a Travessia é autodiegético, se realizando a partir da perspectiva de Paulo que desse modo também detém a focalização. A opção pela fusão narrador-personagem-protagonista anula a distância entre quem narra e quem vê, proporcionado um efeito muito peculiar junto à recepção do romance, pois a ilusão oferecida ao leitor é a de estar acompanhando passo-a-passo as peripécias e atitudes contadas pelo próprio herói, como se lesse seu diário ou fosse uma câmara

acompanhando-lhes os movimentos. Ressalta-se ainda que sendo o narrador uma personagem composta como o escritor que vive a experiência inusitada da guerrilha, tal situação termina também por estimular a reflexão acerca da escritura.

Outra característica formal a ser assinalada é a de que o romance apresenta uma narrativa bastante econômica em relação aos elementos vinculados à descrição física das personagens; com exceção de Paulo e dos guerrilheiros Macedo e Vera, esses elementos são raros e difusos, só despontam quando necessários à coerência da informação desenvolvida. E quando ocorrem, de fato, pode-se afirmar que essa constituição se revela aos poucos, com as personagens tomando corpo a partir da percepção de Paulo. Isso se deve, principalmente, ao tipo de narrador e em função da focalização, que é, a todo tempo, baseada nas impressões dele.

De um modo geral, essas personagens evoluem, no sentido de que determinados elementos de suas conformações mudam, obviamente, sempre de acordo com as transformações da perspectiva do protagonista. Essa configuração fica mais evidente, na medida em que a narrativa se divide em duas partes e, nesse processo, percebe-se a lenta entrega do protagonista à experiência inédita da luta armada, o que faz com que ele reveja valores e passe a avaliar diferentemente certas situações e, do mesmo modo, o comportamento de determinadas personagens. Nesse sentido, as maiores transformações são vivenciadas por Macedo e Vera, além do próprio Paulo.

A primeira parte do romance, intitulada “Pessach: a passagem por cima”, é efetivamente mais concentrada na constituição do protagonista; evidência disso é que além de anunciar em vários momentos os vínculos práticos e subjetivos com familiares que lhe são próximos, a narrativa também ressalta a monotonia vinculada à consciência da jornada existencial, como elemento importante na constituição de Paulo. Exceto Vera, Sílvio e Boneca, fazem parte da primeira parte as personagens que mantêm com o protagonista algum tipo de vínculo familiar ou profissional: os pais, a amante, a filha, a ex-esposa, o editor.

A segunda parte se chama “A travessia”, e seu miolo actancial se constitui, basicamente, daqueles que estão envolvidos com o projeto de guerrilha e nela se articula o percurso de Paulo até o momento em que se engaja na luta. Essa divisão permite que se possa sintetizar, para fins de análise da evolução da narrativa e suas implicações temáticas, a presença das personagens em dois grandes grupos, conforme o grau de participação nos eventos narrados. Desse modo, o núcleo familiar do protagonista ocupa

quase que inteiramente a primeira parte do romance, mas na segunda parte são as personagens do núcleo guerrilheiro ao qual ele adere que se tornam mais presentes.

Como personagem Paulo define-se como alguém que nunca se mostra “sem os disfarces” (CONY, 1997, p.17) e, portanto, sem a cumplicidade das máscaras e dos deslocamentos que as constituem. No primeiro contato com Sílvio o protagonista revela uma característica importante no desenvolvimento da narrativa, o costume de adiar as decisões que em seguidos momentos será aludida através de gestos e atitudes. Essa característica, ainda na primeira parte da narrativa, vincula-se a uma certa relutância em abrir mão de um programa de vida baseado no conforto, no ócio e no descompromisso, traços, por vezes, mascarados pela indiferença. Exemplares a esse respeito são as atitudes de Paulo em relação à identidade judaica, renegada desde a juventude. De certa maneira, para além dos elementos simbólicos que a condição de judeu carrega para o interior da narrativa, a obstinada negação dela é uma maneira de colocar em cena a relutância do escritor em assumir qualquer tipo de compromisso, independentemente de sua natureza. Outra característica renitente em Paulo é o ceticismo, que nele pode se manifestar através da mais abjeta indiferença, da indisponibilidade pessoal ou da falaciosa neutralidade política. Esses traços se tornam consistentes em seus diálogos e divagações a partir da presença do chiste e do sarcasmo corrosivo. No entanto, apesar de, nesses termos, demonstrar forte personalidade, há momentos em que a personagem deixa escapar suas fragilidades através da persistente nostalgia da infância e da família desfeita da qual, numa atitude contraditória, escolheu se separar. No re-encontro com Laura, por exemplo, depois de tantos anos sem vê-la, o riso da ex-esposa o faz sentir-se “enfermo e desamparado” (CONY, 1997, p. 65). Essa nostalgia representa uma certa carência de autoconfiança a custo disfarçada. Contudo, a despeito desses sentimentos ambíguos, Paulo sente um amor sincero pela filha e uma vez atraído por Vera revela-se capaz de seguir por caminhos inteiramente novos à experiência do amor e ao conhecimento.

Além do pai judeu e da mãe cristã do protagonista, outras personagens se destacam na primeira parte, como é o caso de Teresa, Ana Maria e Laura. Quanto à Teresa, a amante, dela pouco se sabe, além das indicações necessárias ao plano de desenvolvimento dos eventos narrativos: a personagem é casada e mantém com o escritor já há algum tempo um relacionamento extraconjugal que ao que tudo indica se encontra em declínio. O papel da amante funcional reforça ainda mais o caráter descompromissado de Paulo, próprio da primeira parte da narrativa, na medida em que o caráter da relação

evidencia o cotidiano acomodado e sem grandes lampejos desafiantes. Aliás, tudo na vida do escritor é funcional: da relação com as mulheres ao trabalho literário.

Ana Maria Simões, a filha adolescente de Paulo, há muito não tem contato com a mãe. A garota quer estudar sociologia em Paris e, para isso candidata-se a uma bolsa de estudos na França, além disso, lê Sartre, Faulkner, Miller e recebe literatura subversiva de uma amiga, cujo pai está exilado no Chile, o que dá a ela uma certa consciência política, ainda que sob uma ótica ingênua e restrita. Contudo, ao contrário do pai, Ana Maria sente que deve ter responsabilidades inerentes à identidade judaica e chega a confrontar-se com Paulo, dizendo que ele é semi-judeu porque nunca teve coragem para nada, nem mesmo para ser um judeu completo, o que provoca uma reflexão por parte do personagem escritor: “Ela não comenta minha deserção, mas poderia me acusar: ‘Uma reação típica de judeu: fugir!’. Felizmente, ela não está amadurecida a ponto de compreender tudo, nem eu me sinto maduro, capaz de entender tanto” (CONY, 1997, p. 53).

O trocadilho presente nesta passagem encerra um jogo de inversões a indicar a preparação para o Bildung do protagonista, confirmado através de duas outras informações: por conta de uma conversa entre uma freira e Paulo sobre uma campanha missionária na Manchúria, fica-se sabendo que a anuidade do colégio de Ana Maria está totalmente paga e, finalmente, o fato de a garota o liberar para que ele faça o que quiser. Por sua vez, Laura, a ex-esposa e mãe de Ana Maria, segunda pessoa a ser visitada por Paulo, aflora como personagem pelo impulso do protagonista em vê-la no dia do aniversário dos quarenta anos. Além disso, está com ela o esboço de um romance sobre o Êxodo, que assim retorna às mãos do escritor.

Depois da ex-esposa é a vez dos pais. Logo ao chegar na casa deles Paulo encontra o médico da família que viera consultar sua mãe. Para explicar ao escritor o problema clínico que acomete a velha senhora o médico faz um desenho, duas linhas paralelas com um círculo ao meio, representando o sistema reprodutor feminino. Após ouvir as explicações de que o problema não era grave e de fazer alguns comentários mordazes, Paulo solicita, em tom de ironia, o croqui ao médico.

Como já referido, a questão da identidade judaica é colocada em vários momentos do percurso de Paulo, no entanto, um dos mais memoráveis dá-se justamente nesse último encontro entre o escritor e seus genitores: durante o derradeiro diálogo com o pai, para surpresa do filho, Joachim Simon confessa ser circuncidado e nunca ter deixado de realizar o ritual do Yom Kippur, evento comemorativo do dia do

arrependimento. Trata-se de uma informação importante, pois além de reforçar os motivos que levam o protagonista a abandonar o projeto do romance baseado no Êxodo, igualmente assinala alguns signos constitutivos relacionados a identidade judaica, como a perseguição, a evasão, emaranhando-os aos signos da repressão ditatorial. Além desses aspectos a matéria implica a resistência, tema universal e nuclear na história do Êxodo. Todos esses elementos ganham vida a partir de uma digressão do escritor, que apesar de ser longa, vale a pena ser transcrita:

O velho fala pausadamente, sem raiva dele mesmo, mas sem pena. Meditara naquelas palavras. Palavras que, por acaso, com algumas variantes, estão escritas dentro da pasta que Laura me devolvera pouco antes. Lembro perfeitamente: havia coisa de dez anos iniciara um romance. Tomara, como exemplo, o próprio pai, o homem que traíra suas origens. A ideia não fora avante, eu esboçara algumas páginas, algumas situações – esquecera tudo. Ficara apenas a ideia central, que um dia pretendia retomar, aproveitando e ampliando a temática central, enquadrando-a dentro da passagem do Êxodo, a noite em que todo um povo resolve abandonar o cativeiro às margens do Nilo e partir para o deserto, para as pedras e as montanhas do deserto. Essa noite, que decidiu a história de um povo – e foi, até certo ponto, a noite mais importante do mundo –, seria diluída em acontecimento menor, individual: um homem escolheria a árdua caminhada pelo deserto, em busca de uma terra que jamais alcançaria. Seria essa a sua passagem, a sua travessia: conquistar a liberdade – ou a paz – e o mais importante não era a conquista em si, mas a travessia, a busca – os pães fermentados –,e repudiar o cativeiro, a passividade escrava, o grilhão (CONY, 1997, p. 88).

Os diálogos entre Paulo e Joachim estão carregados de metáforas que projetam, especialmente, uma terrível inexorabilidade, como nessa fala do pai: “Como judeu, membro de uma raça antiga, conheço muitas espécies de Treblinkas. São dois mil anos de Treblinkas” (CONY, 1997, p.90). Essas frases compactas – e significativas para as ações da narrativa ainda por vir – reúnem os elementos da paranóia de Joachim: seu medo de que o país se torne uma nova Treblinka, ao mesmo tempo em que representa um forte apelo profético em relação ao destino do filho, como sujeito resistente ao status quo político, além de reforçar uma espécie de economia da guerra concentrada na figura do oponente oculto e do assassinato político, afinal, na teoria do velho judeu em todo regime autoritário não bastam apenas existirem inimigos declarados, é necessária a presença de um “inimigo interno”, que possa sustentá-lo como estado necessário:

O velho despeja no copo o resto de cerveja e me olha com decisão:

– Não entendo de política, mas veja a situação: estamos novamente sob ameaça.

– Por pior que seja o governo ninguém está pensando em exterminar os judeus.

– Mas pode pensar. No momento pensa em exterminar os comunistas. Um dia, os comunistas estarão exterminados e como é que uma ditadura se mantém sem a existência de um inimigo interno para exterminar? Esse inimigo interno, que sempre serve de pretexto para justificar os regimes de força, é o judeu (CONY, 1997, p. 90).

O argumento de Joachim repercute as condições históricas apreendidas pelo romance: no processo de construção da resistência política ao regime civil-militar de 1964, todo individuo percebido como voz contrária ao regime assume papel semelhante a do judeu no contexto da Shoha, a do inimigo interno a ser eliminado, em nome da segurança e estabilidade da nação. Temendo a perseguição inerente a seu povo Joachim guarda pílulas de cianureto “para o caso de necessidade” (CONY, 1997, p. 93), uma para ele outra para a esposa. Entrega uma cápsula do veneno também a Paulo.

Ao decidir voltar para casa Paulo fecha uma espécie de ritual de afastamento, na medida em que é visitado por Teresa e, além dos pais, também visita a filha e a ex- esposa. De cada uma das personagens ele vai recolhendo dádivas simbólicas: o pai oferta uma pílula de cianureto; a amante o presenteia com um cachimbo; Ana Maria proporciona o ato libertador; Laura devolve o esboço do romance sobre o Êxodo há muito abandonado; a mãe oferta-lhe o croqui de seu sistema reprodutor. Essas dádivas são também resíduos de um dia inteiro de peregrinações e ao mesmo tempo funcionam como representações das aspirações do ofício, do nascimento e da morte, sintetizando os quarenta anos do protagonista: o passado e o presente reduzidos a poucas certezas e alguns objetos.

Após essa espécie de peregrinatio Paulo ergue-se “como página em branco” em um “tempo novo”, em que a luta será sua nova “habitação” – como o revolucionário que protagoniza o poema em epígrafe neste capítulo, dessa forma, reescrevendo-se como militante guerrilheiro. Dessa forma, o rito da visitação também cumpre a função de expressar a autonomia do protagonista com relação a compromissos domésticos que, porventura, poderiam impedi-lo de se entregar à luta. Desse modo, uma vez que a amante não passa de um caso, Ana Maria vai para França, a literatura virou apenas profissão, o

pais encontram porto seguro nas pílulas de cianureto, não há nada que prenda Paulo aos alicerces do cotidiano que poderiam justificar o imobilismo do protagonista.

Como já referido, a segunda parte da narrativa fixa-se no território da luta, em que o sentido da jornada ganha outra dimensão. Dela faz parte todo o contingente de guerrilheiros, mas é nessa fração da narrativa que algumas personagens ganham em complexidade, como é o caso de Vera, Silvio e Macedo. Ainda na primeira parte do romance, Vera revela uma opacidade que de acordo com Paulo só pode ser “fruto de um orgulho controlado, ou de uma frágil sensação de fortaleza”. Sempre através do olhar de Paulo, sabe-se possuidora de rosto magro, olhos escuros e de nariz e lábios que terminam, quando de perfil, numa mesma linha projetada para fora do rosto. Apesar da impressão de ausência de carne para compor os lábios, esses são grossos e estão sempre entreabertos. Essa forma corpórea reduzida à exploração de um ou outro detalhe está ainda submetida a uma imagem marcada pelo hibridismo das correspondências esboçadas por Paulo: Vera é vista ora como um misto de animal e mulher (CONY, 1997, p.34-35), ora meio moça, quase adolescente (CONY, 1997, p. 40), ora alguém que manifesta, ao mesmo tempo, certa dureza como marca da rebeldia guerrilheira, além de traços de sofisticação peculiares, indicadores de certos privilégios de classe. Os indícios que assinalam essa última condição, segundo a própria Vera, dizem respeito ao fato dela conhecer bons vinhos, ser filha de pai diplomata e ter sido acusada pelo Partido de desvio pequeno- burguês.

Já Sílvio, embora padeça de refinamento, é considerado “burguês” na compreensão do narrador-protagonista que o vê, especialmente, através da indumentária: paletó, gravata, lenço no bolso de cima, calças largas, “compradas em lojas baratas”. A apresentação de Sílvio também é narrativamente funcional, apenas um ou outro elemento psicológico ou gesto social é revelado, como o fato de Sílvio repudiar toda forma de meditação intelectual a respeito da experiência humana, por exemplo, a literatura e a filosofia.

A argumentação de Sílvio ao tentar cooptar Paulo implica a saída prática para a situação política: ele acredita que a intervenção, de fato, na vida material é a única maneira realmente substancial de mudar determinadas situações. É assim um homem de ação ou que, pelo menos, prega a transformação política pela ação. Não obstante, Sílvio dá importância à aparência, apesar de se dizer contra uma sociedade que entre outras coisas valoriza a imagem. Ao narrador arguto não escapa esse índice de ambiguidade: “O visual burguês não chega a ser disfarce: é uma opção, um estilo de vida” (CONY, 1997,

p. 24). Quando Paulo já está na fazenda convivendo com os guerrilheiros a ambiguidade de Sílvio é mais uma vez exposta durante uma conversa sobre as mulheres.

O guerrilheiro Macedo é o chefe do grupo que está na fazenda onde Paulo vai parar ao tentar ajudar Vera a recolher o militante que havia sido torturado pela polícia. Enérgico, autoritário, alcoólatra, politicamente idealista, literalmente marcado pela tortura física, que o deixou cheio de cicatrizes e sexualmente impotente, Macedo se apresenta como uma das personagens mais complexas do romance, capaz de um gesto absurdamente violento: bêbado, cede aos caprichos do copeiro, não só permitindo, mas também participando indiretamente da brutalização sexual de Vera.

A despeito desses elementos Macedo não só amplifica certas características de Paulo como, de certa maneira, também ocupa o posto de um modelo do herói militante ao mesmo tempo corajoso, porém violento e por isso mesmo marcado pela dubiedade. Em relação ao protagonista, Macedo vê Paulo como alguém alienado, confuso e fraco, da mesma maneira que vê a todos os intelectuais (CONY, 1997, p. 173). Além desses indícios é, principalmente através deles, e também da fala de Vera, que a narrativa expressa o Partido como um organismo atrelado a uma burocracia estéril, capaz de se valer de negociatas e traições para se manter vivo e supostamente atuante como agente de transformação política e social.

Todos esses componentes, é preciso salientar, são organizados com base nas heranças da narrativa do romance de 30 – mais propriamente o romance de 30 dos indícios documentais associados a uma “visão crítica das relações sociais” (BOSI, 1978, p. 436) assentado sobre uma narrativa mimética e convencional – cujos contornos ainda podem ser reconhecidos nos romances pós-ditatoriais da década 60, porém já articulados às estratégias de auto-reflexibilidade, potencializadas em narrativas da década de 70, cujo paradigma é marcado pela difusão e fragmentação da forma, além do agudo investimento em componentes metalinguísticos.

Sendo um romance localizado no limiar desses paradigmas é possível pensar a auto-reflexibilidade em Pessach, a Travessia conectada a várias constantes temáticas, a exemplo da questão da identidade judaica, na primeira parte do romance, vinculada ao mal-estar do protagonista e, na segunda parte, apropriada como conteúdo alegórico que sustenta a passagem de Paulo para uma nova experiência ética em relação ao comprometimento com uma coletividade. Outra constante auto-reflexiva corresponde à problematização do ofício de escritor e a presença de uma estrutura mise en abyme, a do livro dentro do livro, ainda que pouco desenvolvida e nada original. Mas outros elementos

temáticos, frutos do desdobramento dessas constantes, são igualmente reiterativos e acompanham o processo de desenvolvimento do Bildung do protagonista, como a reflexão sobre o ajustamento do indivíduo, a crítica ao Partido em chave dialógica com a história e a glamourização do heroísmo do militante.

Além desses registros as estratégias de auto-reflexibilidade ganham espaço em

Pessach, a Travessia, fundamentalmente a partir de dois mecanismos de composição

atuantes em algumas narrativas pós-ditatoriais, tematicamente atreladas ao regime de 64: o primeiro deles é a presença de uma personagem que representa, no universo ficcional, a conversão do intelectual, artista ou escritor, em militante revolucionário25. Nesse

sentido, a figura do intelectual revolucionário coloca-se como agente da transformação política. Em geral, esse caráter funciona, estruturalmente, como uma voz de autoridade que intervém de dentro para fora da obra, do universo ficcional para a recepção. No caso de Pessach, a Travessia, trata-se do protagonista, o escritor Paulo Simões. Em outras narrativas, a existência de um escritor como personagem está mais condicionada à reflexão acerca de seu papel social e seus dilemas subjetivos e políticos perante o ofício26.

Em Pessach, a Travessia, o discurso pedagógico que sobressai do processo de conversão é mais ou menos evidente, porém não chega ao limite do maniqueísmo devido ao esforço dialógico que permite o confronto e, ao mesmo tempo a plenivalência entre as vozes, abalando o monopólio de determinadas posições, pois os discursos se contradizem a todo o momento: o gesto apostólico por trás da frase “a pátria exige sacrifícios”, por