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O vencido como vencedor: a dimensão neo-utópica de Pessach, a Travessia

4. UMA JORNADA PARA A RESISTÊNCIA: PESSACH, A TRAVESSIA

4.3 O vencido como vencedor: a dimensão neo-utópica de Pessach, a Travessia

Como já referido as neo-utopias ou metautopias, na concepção de Laura Zuntini de Izarra (2001), são processos de releitura das utopias que compõem um conjunto de elementos hegemônicos. Apesar da proposta de Izarra contemplar apenas uma hermenêutica baseada numa perspectiva que privilegia aspectos culturais, tendo em vista as literaturas oriundas de comunidades étnicas, pode-se perfeitamente pensar em sua aplicação direcionada a outras experiências, igualmente marcadas pelo autoritarimo e pela violência, considerando que, em ambos os casos, tratam-se efetivamente de situações que problematizam, de alguma maneira, os estatutos da resistência.

Todavia, antes de adentrar mais especificamente nessa questão, devo lembrar que se trata de matéria comum entre os críticos dedicados ao estudo das narrativas utópicas e distópicas, referidos em outro momento, a ideia de que os sistemas utópicos têm por fundamento um aparato moral e ético, e que os choques entre diferentes sistemas de pensamentos, entre os quais, os utópicos, sempre que possível, implicam um enfretamento em termos políticos que, às vezes, pode extrapolar para o território da prática. Dito isso, devo chamar a atenção para alguns detalhes que, em termos de conteúdo, apresentam-se em Pessach, a Travessia.

O primeiro deles é que os traços utópicos se inserem de maneira progressiva, contudo, não tão claros quanto à natureza de seus valores ideológicos, a não ser pelo fato de alguns dos indivíduos que os defendem, também estarem comprometidos com os valores do comunismo, em função da referência ao Partido Comunista Brasileiro, a partir da representação, um tanto obscura, do Partido. No mais, esses traços ancoram os fundamentos de um projeto de oposição a uma situação política ou, em outras palavras, a premissa de que diante do regime militar e de suas consequências, independente de partidarismos, é preciso fazer alguma coisa: lutar, por exemplo, tendo em vista um futuro imediato, em que a possibilidade de uma negociação oriunda da atuação da guerrilha,

proporcione uma alternativa ao regime militar. Assim sendo, a utopia, aqui, coloca-se a partir de seu fundamento mais básico: o de que a necessidade de uma utopia sempre se faz acompanhar da necessidade de uma escolha (SZACHY, 1972, p. 13): o que move a narrativa de Pessach, a travessia é a jornada que culmina com a escolha de Paulo pela luta armada.

Considerando isso, quando se pensa naquela tipologia de Szachy (1972), pode- se imaginar que Pessach, a Travessia está fundamentalmente assentada sobre os traços de uma ucronia, pois o que move o projeto de luta dos guerrilheiros é a ideia de um lugar que se caracteriza efetivamente pela diferença em relação à História que se faz presente: lutar contra o regime ditatorial significa proporcionar ao coletivo da nação um novo governo, uma nova história. Associados a esses traço se tem, igualmente, elementos claramente vinculados às utopias políticas, aquelas que prenunciam a mudança através de um ato humano. Essa inclinação assinala-se de maneira incontestável no decurso da narrativa a partir dos argumentos de Sílvio e de Vera, na medida em que defendem a ineficácia da luta contra o regime, através de atitudes pacíficas e estratégias educativas, como quer o Partido. Nesse sentido, as implicâncias de Sílvio, Vera e Macedo em relação a Paulo justificam-se pelo fato de o escritor, uma vez visto como o intelectual limitado à assinatura de manifestos, representar o tipo de indivíduo pouco afeito à prática da resistência de maneira mais incisiva, aquela que requer o calor do campo de batalha.

Mais uma vez é preciso pensar nos aspectos históricos infiltrados: o dêitico temporal relacionado ao aniversário de Paulo cede à remissão de uma conjuntura política em que se deflagra os anos mais coercivos da ditadura, com o fechamento do Congresso, a clandestinidade da UNE, os atritos de rua, a mobilização dos grupos de guerrilha que, em dois anos, desencadeariam o AI-5 e a divisão dos movimentos de resistência em dois segmentos: o dos revolucionários, que acreditavam na guerrilha como saída imediata e concreta para a situação política, e o dos pacifistas-reformistas que continuaram defendendo a via política para o fim do regime. Obviamente, no romance, os caudatários da segunda opção são representados pelo protagonista e pelos membros do Partido. A diferença crucial é que Paulo termina por se converter à luta.

Outro elemento que não passa desapercebido é que mesmo sendo superficialmente mostrados os traços do projeto guerrilheiro revelam-se romantizados quanto a sua execução. Daí, o longo trajeto de avivamento do heroísmo que se percebe no romance, na medida em que as ações vinculadas à luta tornam-se mais efetivas e a conversão do herói aproxima-se da culminância: é que as utopias políticas prognosticam

não só a necessidade do ato humano para a transformação radical de uma situação, como também a elevação desse ato ao nível do sublime. O argumento de fundo nesse caso reside na ideia de que o desejo pode se materializar enquanto potência. De fato, nesse processo é possível identificar os elementos que fazem parte da trajetória da heroicização descrita por Miguel Abensour (1992): a presença de uma trajetória, a individualidade cedendo espaço a interesses coletivos e, principalmente, a coabitação de formas excepcionais de disposição humana para a mudança (hibris) que, no romance de Cony, traduzem-se pelo comportamento e atitudes de personagens como Macedo, Vera e o próprio protagonista. Além disso, o curso da distopia insere-se no interior do processo de conversão de Paulo, funcionando ora como exacerbação do mal-estar subjetivo que o acomete, ora como modo de mostrar a capacidade de resistência das personagens envolvidas na luta, além de revelar os horrores consequentes da atuação do regime relativamente aos seus opositores. Nesse sentido, o exacerbamento dos elementos distópicos nos momentos finais da narrativa também cumprem a função de ilustrar, com maior veemência, as dificuldades pelas quais o herói passa na etapa final de seu ritual de conversão política. Lembrando que perseguições, torturas, tolhimentos da liberdade, degradações, insulamentos, combates, mortes violentas, manipulações políticas, sentimentos de ansiedade, temor e solidão – elementos presentes em Pessach, a Travessia – são traços que costumam estar muito evidentes em narrativas distópicas.

No entanto, apesar disso, e apesar do embate de posições, o romance não se configura como uma distopia pura porque, como discurso, a narrativa deixa transparecer uma postura primaz, que se deflagra a partir das atitudes do narrador-protagonista e, ao contrário, nas distopias, uma posição política – a do regime de exceção – é sempre suprema em relação às outras e o cerne da reflexão recaí sobre o imobilismo das personagens, que acabam aprisonados e mortos na luta contra um regime fundado no primado da soberania. Essa reflexão por sua vez se dá pela linguagem, pois até mesmo a língua das vítimas é “invadida” pelo poder que as assola e comprime. A potência do poder soberano se encontra decalcada mesmo e principalmente nas formas como os personagens se comunicam.

Cabe ainda dizer que características, como a faculdade de apresentar os elementos utópicos de maneira superficial, mas suficientemente capazes de evocar a empatia do leitor; a ufania e a presença de traços distópicos, como modo de atribuir positividade à composição de uma determinada utopia, são artifícios previstos em discursos literários inclinadamente utópicos (MECZIEMS, 1987, p. 94-95). Todos esses

aspectos sugerem que Pessach, a Travessia, constitui-se com uma narrativa que se apresenta mais sensível ao utopismo. Resta verificar em que termos.

Tendo feito essas considerações, cumpre relembrar que o pressuposto da neo- utopia ou metautopia, defendido por Izarra, baseia-se em releituras das utopias hegemônicas circulantes em uma determinada sociedade e, consequentemente, o enfrentamento dos traços que as compõem. Como afirma Izarra, trata-se de um processo de desterritorialização de utopias anteriores que se encontram em marcha dominante e/ou paralela ao conjunto de elementos utópicos pontuados como alternativos.

A marca da neo-utopia é o auto-questionamento que “no processo de imaginar e reinventar possíveis sociedades alternativas” concorrem para a transformação do presente “ao invés de apenas desestabilizar epifanicamente as utopias cristalizadas e transformadas em distopias ou contra-utopias” (IZARRA, 2001, p. 238). Elas revelam, assim uma “comunidade em ação” em que agentes do processo não só contestam os elementos utópicos que sustentam a situação hegemônica como também se colocam igualmente como “auto-representação” (IZARRA, 2001, p. 239) permitindo, assim, a reflexão crítica a partir das tensões provenientes dos diferentes elementos utópicos envolvidas. Em outras palavras, para Izarra, enquanto as utopias se colocam efetivamente como projetos de transformação radical e as distopias são marcadas pela oscilação dos valores utópicos, tendo em vista a reflexão acerca dos elementos políticos, culturais e sociais que os sustentam, inerentes a uma sociedade como um todo, as neo-utopias, apresentam-se como projetos alternativos, possíveis de a partir da auto-crítica promulgada por alguns agentes, erradicar ou rasurar esses mesmos valores utópicos.

Uma vez que os guerrilheiros em Pessach, a Travessia também se colocam como militantes da esquerda e, particularmente, de uma matriz esquerdista oriunda de um partido comunista (ainda que alguns se declarem como ex-militantes partidários), as características da neo-utopia se estabelecem no romance a partir do dialogismo no âmbito do discurso, que permite a pluralidade das posições, e também pelo processo de heroicização que caracteriza certas personagens e do qual a matéria distópica participa, como estratégia de evidenciamento das condições inóspitas impostas pelo regime aos opositores, mas também como recurso ao enobrecimento dos heróis. Associados, esses elementos desencadeiam um esforço auto-representativo relacionado à perspectiva do grupo guerrilheiro, que configuram os principais personagens do romance, dentre os quais o protagonista, enquanto parte da resistência opositora ao regime. Nesse sentido, considerando os pressupostos defendidos por Alfredo Bosi, Pessach, a Travessia é uma

narrativa muito mais inclinada à resistência como tema, especialmente por concentrar o gesto de oposição em seus personagens.

Contudo, ao final os guerrilheiros são vencidos por uma companhia do Exército e, de fato, todos sucumbem. No entanto, o amplo esforço de potencializar até o nível do sublime – com a perseguição e a morte de Macedo e Vera e com o destino de Paulo – o heroísmo do guerrilheiro, o romance se mantém firme em resguardar a memória da luta e em garantir que se faça manifestada a face terrível do estado de exceção: o poder de incapacitar radicalmente as vozes dissonantes ao limite do massacre. Desse modo, o conjunto de elementos neo-utópicos em Pessach, a Travessia corresponde, efetivamente, aos abraçados por aqueles que estão dispostos a conquistar uma sociedade mais justa e menos coerciva, através da luta baseada no sentido de hombridade e heroísmo de seus representantes – o que reforça ainda mais a base do argumento na resistência enquanto tema. Isso os coloca em choque direto em relação às utopias encarnadas na instituição do regime civil-militar de 1964, tanto quanto às ideias defendidas por muitos dos membros do Partido Comunista.

Em relação às referências ao regime, obviamente, repudiam seus fundamentos e as consequências de toda governabilidade autoritária que é própria do estado de exceção, mas admite, porém, o projeto de modernização que a acompanha. Quanto à crítica ao Partido, rejeitam seu academicismo, sua predisposição à retaguarda e às estratégias burocratizadas, que pouca eficácia apresentam em termos de erradicação da situação política. Nesse sentido, o horizonte de esperança presente em Pessach, a

Travessia direciona-se ao futuro, como utopia de uma ética que deve, especialmente,

ultrapassar a aposta em estruturas burocráticas limitadoras da resposta resistente. Portanto, a narrativa de Cony é pós-utópica ao propor uma crítica do utopismo que se coloca como alternativa, no presente.

Para finalizar, considerando a evolução dos eventos narrativos, especialmente os relacionados ao desfecho do romance, ainda que tenham sido eliminadas as condições que favoreciam a luta armada – e quanto a essa particularidade, História e ficção se colocam em marcha paralela – a assunção de elementos neo-utópicos, em Pessach, a

Travessia, cumpre bem o papel de possibilitar a especulação acerca dos elementos que,