• Nenhum resultado encontrado

CIRCUITOS ARTÍSTICOS: ENTRE O URBANO, O ÉTNICO E O GERACIONAL

IMIGRAÇÃO E TRABALHO ARTÍSTICO: UM ESTADO DA ARTE Nenhum estudo é autossuficiente A identificação e discussão de estudos anteriores permite-

5. CIRCUITOS ARTÍSTICOS: ENTRE O URBANO, O ÉTNICO E O GERACIONAL

Um dos objetivos centrais do presente estudo é, portanto, relacionar a atividade artística dos imigrantes com estruturas e dinâmicas sociais existentes na sociedade portuguesa atual, no- meadamente, na região de Lisboa. Como já vimos ao longo deste capítulo, conceitos como “mundos artísticos” (Becker, 1984) ou “campos artísticos” (Bourdieu, 1995) são importantes para conceber o espaço de relações que se estabelece em torno das diferentes expressões ar- tísticas e, no qual, os diversos agentes (artistas ou não, imigrantes ou autóctones), dotados de recursos e posições específicos, interagem, de forma competitiva ou colaborativa, construindo códigos comuns e comunidades de pertença.

Recorremos igualmente ao conceito de “circuito”, no sentido de compreender e mapear os modos como as práticas artísticas e as interações que lhes estão subjacentes se inscrevem em espaços específicos (bairros, ruas, galerias, bares, estúdios, festivais, residências, etc.), com a sua geografia, materialidade, temporalidade e simbolismos. Não se trata apenas de reconhecer a existência destes lugares, mas também as profundas imbricações entre si, com grupos sociais específicos e com a cidade, como um todo, sem as quais se torna impossível compreender o seu significado e importância. Tal como refere Ferro (2015), a existência de

uma multiplicidade de movimentos por parte dos urbanitas, exige uma abordagem etnográfica de “fluxos urbanos” que abranja vários territórios por onde transitam os protagonistas das práticas analisadas.

Inspirando-nos nas etnografias sobre jovens na cidade de São Paulo (Magnani, 2005), a noção de circuito permite acompanhar a espacialização das práticas artísticas e o modo como mode- lam as suas carreiras artísticas. Nas palavras do autor:

[Circuito] Trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de determinado serviço

por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais […] A noção de circuito também designa um uso do espaço e de equipamentos urbanos – possibilitando, por conseguinte, o exercício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de códigos. (Magnani, 2002: 23 - 24)

Para a definição (e delimitação) destes circuitos podem contribuir diferentes fatores. Um deles é a identidade étnica. Por exemplo, vários autores descrevem a língua e a música como os elementos centrais da identidade cabo-verdiana (Sieber, 2005; Batalha e Carling, 2008; Monteiro, 2011). Neste sentido, o crioulo e os vários ritmos criados e adotados pelos cabo-verdianos são os pilares que sustentam uma “comunidade imaginada”, espalhada pelo mundo, unindo as ilhas, a diáspora e os seus “filhos” (Anderson, 2006). É, neste sen- tido, que podemos questionar se existirão, em Lisboa, circuitos artísticos cabo-verdianos, brasileiros, indianos, ucranianos ou de filiações mais sincréticas como circuitos artísticos africanos e latino-americanos, relacionando-os não apenas com as estruturas e culturas de origem, mas também com processos de integração ou segregação nas sociedades de acolhimento.

Um segundo fator é, sem dúvida, a idade e, sobretudo, a filiação geracional. Como têm ob- servado investigações anteriores, as várias gerações de uma mesma comunidade étnica ex- pressam-se de formas complexas e diversas, em termos artísticos, adotando estilos próprios (Sieber, 2005; Monteiro, 2009). Tem-se distinguido uma produção artística mais tradicional, por parte de imigrantes mais velhos e recentes, de estilos mais cosmopolitas, híbridos e/ou

experimentais, por parte de segmentos mais jovens e mais enraizados no país de acolhimento, frequentemente descendentes de imigrantes. No entanto, as investigações têm mostrado que tal dualidade é redutora, face a uma pluralidade de referências e posicionamentos.

Esta questão remete-nos para os estudos sobre gerações e, em particular, sobre as identi- dades juvenis. Embora a idade seja um eixo estruturante na organização social de qualquer sociedade, o critério etário na compreensão do conceito de juventude apresenta um fraco cariz explicativo. A “juventude é apenas uma palavra”, disse Bourdieu (2003) para colocar em evidência a arbitrariedade das divisões de idade e a necessidade de as pensarmos de modo interligado. A juventude é fundamentalmente uma construção sociocultural e não uma condi- ção natural e universal do desenvolvimento humano. Assim, o conceito adquire significados diferentes em cada sociedade, varia ao longo da história e depende das características dos indivíduos em causa: idade, género, classe, etc. Para destacar essa heterogeneidade, vários autores optaram por uma perspetiva pluralista de conceber a juventude (Canclini, 2012; Feixa, 1999; Pais, 1993), incorporando a multiplicidade de identidades, de trajetórias e de projetos de vida (Velho, 1994).

Diferente da idade cronológica, a temática das gerações relaciona-se com a história e a cultura de uma sociedade, enquadrando a socialização dos seus membros num contexto histórico específico. Por isso, as transformações de cada época tendem a produzir marcos interpretativos comuns a uma mesma geração, fruto de uma memória social partilhada. É neste sentido que podemos dizer que “cada geração pode ser considerada, até certo ponto, como pertencente a uma cultura diferente, na medida em que incorpora em sua socialização novos códigos e destrezas, linguagens e formas de perceber, de apreciar, classificar e distinguir” (Margulis e Urresti, 1996: 18).

As sociabilidades e os estilos de vida partilhados entre os grupos de pares ganharam maior re- levo enquanto modelo de referência para os jovens nos dias de hoje, o que “continua a legitimar a admissão da hipótese segundo a qual algumas normas e padrões de comportamento geral- mente aceites pelos adultos não são seguidos pelos mais jovens e vice-versa” (Pais, 1993:43).

Contudo, a “sucessão geracional” não pode ser tomada como o “eixo principal da mudança” (Feixa, 1993:34), já que não se pode estabelecer uma “correspondência [...] entre uma faixa de idade e um universo de interesses culturais comuns” (Pais, 1993:43). Outras variáveis re- levantes devem ser consideradas na análise da juventude, tais como geração, classe, género, território, etnia e estilo, claro está considerando a sua vinculação aos contextos históricos, culturais e sociais (Feixa, 1999).

Na nossa sociedade os jovens percorrem caminhos de vai e vem, onde predomina a incerteza e a reversibilidade dos processos de passagem para a vida adulta. Devido a um maior esbatimen- to dessas fronteiras (Pais, 2009), as definições de jovem e adulto tornaram-se crescentemente voláteis e flexíveis. Assim, Feixa (2011) questiona se ainda hoje podemos falar da juventude como uma fase de transição. A condição natural (a idade) não coincide, necessariamente, com o estilo de vida e um conjunto de signos associados hegemonicamente à juventude. É nesse sentido que podemos dizer que há “jovens não juvenis” e “não jovens juvenis” (Margulis e Urres- ti, 1996:22). Para resolver tal paradoxo e pensar a juventude e a experiência da idade adulta na heterogeneidade e desigualdade de situações que as caracterizam, destacaram-se as noções de moratória social e moratória vital (idem). A primeira está relacionada com o afastamento dos jovens das responsabilidades do mundo laboral e da vida adulta, um adiamento legitimado pela necessidade de amadurecimento e aquisição de competências escolares que os preparem para uma vida autónoma. Esse período de menor exigência e relativa despreocupação, não é vi- vido de igual forma pelos jovens oriundos de setores mais desfavorecidos, forçados a ingressar desde cedo no mercado de trabalho. Destituídos de dinheiro e suporte familiar para concretiza- rem plenamente o estilo de vida e os signos juvenis, eles desfrutam apenas de uma moratória vital, uma espécie de “capital temporal e energético” (ibidem: 20) comum a todas as classes. O maior esbatimento das fronteiras geracionais levará a uma maior interação entre diferentes gerações? Provavelmente. Hoje, as fronteiras galgam-se constantemente, devido a “transições descontínuas” (Feixa, 2011) e a uma certa “promiscuidade geracional” que tornam os atribu- tos juvenis acessíveis independentemente da faixa etária (Vianna, 1997: 9). Se, por um lado,

a diversidade de estilos juvenis é acompanhada por fronteiras mais fluidas no que se refere aos marcos geracionais e ritos de transição para a vida adulta (Pais, 2009), por outro, o maior acesso à Internet e a uma série de dispositivos tecnológicos fortalece os vínculos de apoio entre os artistas de distintas gerações, assumindo os jovens um papel de maior destaque no “mundo digital” (Almeida et al, 2013; Canclini, 2012; Feixa, 2011).

Em suma, não se pode negar que as manifestações artísticas migrantes, bem como os circuitos que as enquadram e potenciam, mantêm alguma relação com a origem geográfica, a faixa etária ou o tempo de permanência no país de chegada. Não obstante, há outras variáveis que com- plexificam o modo como os recursos culturais e estéticos são incorporados pelos indivíduos, entre os quais o estilo de vida, o percurso biográfico, as redes de sociabilidade e a estratégia de adaptação adotada no contexto de vida. Assim, essas produções artísticas devem ser analisa- das sob uma matriz não essencialista que leve em conta as trocas culturais, possibilitadas pela capacidade dos atores de “manejar tipos simbólicos diferentes” e/ou criar produtos culturais híbridos a partir de múltiplas combinações possíveis (Hannerz, 1998:37).

CAPÍTULO 2.

ESTRATÉGIA METODOLÓGICA: MULTIPLICIDADE