• Nenhum resultado encontrado

A COVA DA MOURA E O CONTINUUM DE BAIRROS INFORMAIS DA AMADORA

DE SOCIABILIDADES E TROCAS ENTRE DIFERENTES GERAÇÕES 1 AS GENTES DAS ILHAS E AS SUAS MUSICALIDADES

3. A COVA DA MOURA E O CONTINUUM DE BAIRROS INFORMAIS DA AMADORA

Um dos maiores e mais conhecidos bairros informais de forte presença africana em Portugal é a Cova da Moura. Construído nas margens de Lisboa, já no concelho da Amadora, esti- ma-se que a população deste bairro esteja entre os 6 e 10 mil habitantes (Horta, 2008). A construção de moradias na Cova da Moura iniciou-se na década de 1960, mas o seu cresci- mento exponencial aconteceu após o 25 de abril de 1974, uma característica comum a outras áreas do subúrbio de Lisboa. Nesse período, deu-se uma grande explosão demográfica na

cintura metropolitana da capital do país motivada, principalmente, pela chegada dos chama-

dos retornados30, mas também pela vinda de imigrantes africanos e continuação da migração

rural-urbana. Vários terrenos públicos e privados da Amadora foram ocupados por indivíduos que não tinham condições económicas para arcar com os custos de aquisição de moradia, incluindo os cabo-verdianos, na esperança de erguer um lar para suas famílias e escapar de rendas sufocantes (Salgueiro, 1977:47). Como refere Guilherme Pereira, os bairros de cariz informal foram tolerados por quem não soube dar outros destinos à habitação na área metro- politana de Lisboa (1994:104), como as câmaras municipais e o poder central.

Foi com a chegada dos “retornados” que se intensificou a construção de casas na Cova da Moura, nos anos de 1976 e 1977, transformando completamente um espaço até então li- gado à agricultura. Esta população ocupou a parte baixa da Cova da Moura, dando início ao processo de urbanização do bairro (Pereira, 1994:105; Raposo, 2005:155). A parte alta do bairro foi ocupada numa fase posterior por famílias maioritariamente vindas de Cabo Verde, o que é visível na toponímia de muitas das suas ruas.

O bairro da Cova da Moura não é único nas suas características, ele pertence com outros que se encontram em seu redor a um continuum de bairros de construção informal, como o Seis de Maio e a Reboleira, ou os já demolidos Estrela D’África e Fontainhas, todos com origem na mesma época. Várias particularidades unem estes bairros, entre as quais serem habitados por uma população maioritariamente negra e africana, com destaque para a presença dos imigrantes cabo-verdianos, e o fato de o crioulo cabo-verdiano ser a língua utilizada no conví- vio diário. A segregação territorial e discriminação racial afetam intensamente as populações destes bairros, responsabilizados pela insegurança que o

“cidadão comum” enfrenta no seu dia-a-dia. O “processo de rotulagem” e a estigmatização (Goffman, 1988) desta população tem a ativa participação dos media (Batalha e Carling, 2008) e das instituições políticas, corresponsá- veis por legitimar uma atuação desproporcional e, muitas

30 Em Portugal, o termo “retornado” refe- re-se a milhares de pessoas, fundamental- mente brancas, que vieram para Portugal saídas das ex-colónias durante os processos de independência de 1975 e 1976. Apesar das dificuldades de contabilização, um es- tudo sobre o tema apontava para 505 078 mil retornados a viver em Portugal em 1981, aproximadamente 5% da população a viver no país (Pires et al., 1984:38).

vezes, violenta da polícia, como relatam recentes reportagens da BBC, do Público e da Rede Angola31.

Entre os moradores dos bairros informais da Amadora foram criados fortes laços sociais in- tramigrantes, uma forma de enfrentar os diferenciais de poder, repor a segurança ontológica e evitar episódios de discriminação racial. Tais laços são também alimentados por relações de amizade e redes familiares comuns, amplificadoras de uma solidariedade e uma identidade étnica “baseada no sentido de pertença a uma coletividade com uma ascendência comum” (Pi- res, 2003:100). O carácter relacional entre esses moradores é visível pelos trajetos constantes que fazem entre os bairros citados, promotores de um intenso intercâmbio de serviços e bens simbólicos, em que a Cova da Moura ocupa um lugar central. Afinal, este bairro distingue-se dos demais pela sua maior dimensão, comércio mais diversificado, melhores infraestruturas e equipamentos sociais (ruas largas e asfaltadas, escola primária, infantário, etc.), além de um forte associativismo (Raposo, 2005; Horta, 2008). Este panorama fortalece as redes lúdicas e de sociabilidade desenvolvidas, cujo teor varia da celebração às memórias culturais do país de origem à resistência aos estereótipos infringidos pela sociedade autóctone.

Diferente da Cova da Moura, todos os outros bairros refe- ridos têm sofrido processos de demolição, integrados num Plano Especial de Realojamento (PER), um programa com- plexo e, por vezes, injusto para a vida dos seus habitantes, como é descrito por Rita Cachado (2013) num trabalho so- bre o bairro da Quinta da Vitória, em Loures32. Quem passar

hoje pelo bairro Estrela D’África, a 500 metros da Cova da Moura, verá entulho e ruínas, num cenário quase dantesco. Lá, já não vive mais ninguém, a maioria foi realojada em bairros sociais distantes (nomeadamente o Casal da Boba e o Casal da Mira), e algumas pessoas ficaram sem casa para onde ir, como demonstra a notícia “Amadora avança com demolições na Damaia” do semanário “Sol”33. 31 Conferir Fletcher (2015), “They hate black

people” (http://www.bbc.com/news/maga- zine-32419952); Henriques (2015), “Os po- lícias disseram que nós, africanos, temos de morrer” (http://www.publico.pt/sociedade/ noticia/os-policias-disseram-que-nos-africa- nos-temos-de-morrer-1685599) e Raposo (2015), “Violência e racismo na Cova da Mou- ra” (http://www.redeangola.info/especiais/ violencia-e-covardia-na-cova-da-moura/).

32 Refere a autora sobre o processo da Quinta da Vitória: “A expetativa e esperança iniciais, potenciadas pelos discursos da própria lei do PER e pela presença inicial de trabalhadores sociais no bairro, foram sendo substituídas pela quase ausência de informação clara so- bre o processo de realojamento e, ao mesmo tempo, por um acréscimo das exigências buro- cráticas face à população que aguardava por uma habitação social.” (Cachado, 2013: 495).

33 Lusa/SOL (2015), “Amadora avança com demolições na Damaia” (http://sol.sapo.pt/no- ticia/129615/amadora%20-avan%C3%A7a- -com-demoli%C3%A7%C3%B5es-na-damaia).

Fonte: Google Earth

Figura 4. Mapa da Cova da Moura, Reboleira, Estrela D’África e Seis de Maio