A ideologia engendrada pelo capitalismo quando da sua implantação tinha que ser adequada às suas necessidades de expansão nos países centrais e na periferia. Esse era um momentocrucialemqueurgiaremediar,aomesmotempo,o excessodeproduçãoeoexcessodecapitais,bemcomosopitar as crises sociais e econômicas que sacudiram os países interessados.Eranecessário,portanto,criarascondiçõespara aexpansãodocomércio.Asnecessidadesemmatériasprimas dagrandeindústriagarantiamalémmaraaberturademinase a conquista de terras que eram também utilizadas para a produção de alimentos necessários aos países então industrializados numa fase onde a divisão internacional do trabalhoganhavanovadimensão.Eraentãoimperativoadaptar asestruturasespacialeeconômicadospaísespobresàsnovas tarefas que deviam assegurar sem descontinuidade. A geografia foi chamada a representar um papel importante nessatransformação(SANTOS,2002:30).
Nascida tardiamente como ciência oficial, a geografia teve dificuldades para se desligar, desde o berço, dos grandes interesses. Estes acabaram carregandoa consigo. Uma das grandesmetasconceituaisdageografiafoijustamente,deum lado, esconder o papel do Estado bem como das classes, na organização da sociedade e do espaço. A justificativa da obra colonial foi um outro aspecto do mesmo programa (SANTOS, 2002:31).
Institucionalizada no século XIX, a Geografia recorreu à doutrina positivista, cujas bases estavam fincadas na medicina e na biologia, para ganhar status
definitivo de ciência. Até os estudos de Friedrich Ratzel (18441904) sobre a “Antropogeografia”(doisvolumes,1882/1891),oenfoquenosaspectosfísicose naturais era predominante. Ratzel foi responsável pela sistematização, organização e principalmente, reflexão a respeito da Geografia Humana. Este “ramo”dosabergeográficonãofoimenosinfluenciadopelopositivismoe,por que não, pelo acúmulo de conhecimentos dos séculos anteriores acerca das ciências da natureza, como a física e a matemática. Nesse contexto de construção da Geografia Humana foi forjado o termo Verkehrsgeographie por AlfredHettner(18591941)em1897,traduzidonaFrançacomo“Geografiada Circulação”. Estudos geográficos sobre transportes e comunicações, em suas relaçõescomaproduçãoedistribuiçãojáexistiameeramnumerosos,inclusive dopróprioHettner,todavianãosobesse“rótulo”.
Com base em tal fato, pretendemos apresentar algumas considerações a respeitodaformação,constituiçãoeconsolidaçãoda“GeografiadaCirculação”. Processo que ocorreu à esteira do desenvolvimento técnico do século XIX, período em que a circulação teve o desenvolvimento mais revolucionário da história, através da invenção da ferrovia, do automóvel, do telégrafo, do telefoneentreoutrastécnicasdecirculação.
O uso da noção de circulação tem uma história relacionada às descobertas da fisiologia sobre a circulação sanguínea e tornouse polissêmica a partir de um projeto de civilização racionalista, mecanicista, organicista e positivista. A grandeeficáciadesseprojetocivilizatórioéarelaçãocomaeficiênciadocorpo humano.Diantedesseprojeto,anoçãodecirculaçãofoitranspostaparavárias ciências,inclusivesociais,comofitodeobtençãodelegitimidadedoscientistas frente à sociedade. A circulação também tinha o cunho “didático” de explicar fenômenossociaisporanalogiaefunção.Atualmente,anoçãodecirculaçãojá vemsendodesenvolvidanasdiversasciênciashumanasesociaisaplicadas,com
crítica e sem analogia com a fisiologia, mas o entendimento de seu passado serve para explicar as ideologias subjacentes ao movimento e mobilidade espacial.
AnoçãodecirculaçãotranspostaparaaGeografiafoiinspiradanasdescobertas deWilliamHarvey(15781657),médicolondrinoquedescreveupelaprimeira vez,demodocorreto,osdetalhesdacirculaçãodosangue.Harvey,atravésde muitos experimentos que constam na obra “Exercitatio Anatomica de Motu
Cordis et Sanguinis in Animalibus” publicada em 1628, provou que o sangue
circulava a partir do coração para o restante corpo e não a partir do fígado, como afirmava Cláudio Galeno (129 200), médico grego que cuidou de gladiadores em Roma. Harvey ampliou os estudos do sírio Ibn alNafis (1213 1288), o primeiro médico a descrever a circulação pulmonar, os capilares e a circulaçãocoronariana,queformamabasedosistemacirculatório.Comesses estudos, Ibn AlNafisé considerado por muitos, o pai da fisiologia circulatória. Apesar da reconhecida importância de Nafis, os estudos de Harvey tiveram maior impacto, não somente na medicina, mas também no discurso científico renascentista, haja vista que suas descobertas inspiraram grande parte das ideiasdeRenéDescartes(15961650),umdospensadoresmaisinfluentesde todosostempos.
René Descartes (2005), a partir da noção de “circulação perpétua” do sangue, propôsumaanálisemecanicistacombasenocoraçãocomoórgãoativonesse processo, num comparativo com as máquinas, especialmente o relógio. Segundoopensador,acirculaçãodosangueserealiza(...)
[...] conforme as regras da mecânica – que são as mesmas da natureza –, quando várias coisas tendem a moverse conjuntamente para um mesmo lado, onde não há lugar bastante para todas, do mesmo modo como as partes do
sanguequesaemdaconcavidadeesquerdadocoraçãotendem para o cérebro, as mais fracas e menos agitadas devem ser desviadas pelas mais fortes, que, assim, são as únicas que atingemocérebro(DESCARTES,2005:55)1.
Contemporâneo de Descartes, Francis Bacon (1561 1626) também colocou a circulação na ordem da ciência moderna, em sua proposta (não menos mecanicista da feita por Descartes) de observar a natureza tendo como pressuposto a “necessidade” de uma nova interpretação, que fosse mais eficiente e que “contribuísse” para a construção de uma “verdadeira ciência”, análogaàobservaçãodanaturezaeseusmecanismos,paraoestabelecimento desuadominaçãopeloreinodohomem. Noscorposnaturaisenoscorposartificiais,especialmentenos sólidos,nãofluidos,encontrasecertacolocaçãoharmônicade suaspartes,e(porassimdizer)certospêlosefibrasqueestãoa exigirumestudomaisprofundo,poissemoseuconhecimento não é possível de maneira eficaz manejar e controlar esses corpos.Masacirculaçãodoslíquidosque,comprimidos,antes deselibertarem,elevamseporigualparamelhorsuportarem o peso da compressão, relacionamola ao movimento de liberdade(BACON,2009:209)2.
Para a explicação de processos relacionados à dinâmica socioeconômica, François Quesnay (1694 1774), principal figura da fisiocracia, defendia a agriculturacomoaprincipalfontederiquezasdeumanação,seopondoatese mercantilistadequeariquezaeraprovenientedocomércioexterior.ComoDr. Quesnay(médicoenaturalista),acirculação(oufluxocircular)setransformou em objeto econômico. John Locke (1632 1704), David Hume (1711 1776) e outrosfilósofos,tambémtrataramdofluxocirculardavidaeconômica,alémde
1Aobrautilizadaaquifoitraduzidacomo“Discursodométodo”,mas,aoquepareceocorreto
é“Discursosobreométodo”ou“Discursosobreométodoparabemconduzirarazãonabusca
daverdadedentrodaciência”.Estaobrafoipublicadapelaprimeiravezem1637,naFrança.
2 A obra “Novum Organum”, a qual extraímos este trecho, foi publicada originalmente em
Smith (1723 1790), o responsável pela sistematização da ciência econômica. Contudo,aparticularidadedeQuesnayfoiaênfasedadaaofluxocircularvisto como objeto econômico e o prosseguimento da proposta cartesiana. Os fisiocratas desenvolveram um sistema geral da relação direta entre gastos, trabalho, ganho e consumo, na qual compradores e vendedores, credores e devedoresserelacionamnaformadefluxo.Tudoissobaseadonas,atéentão, recémdescobertasarespeitodacirculaçãosanguínea,daítambémonomede
fisiocracia.SegundoSchwartz:
Ofluxocirculareraapresentadocomoatrocadeprodutospor produtos. A circulação de uma dada quantidade de dinheiro seriasóoresultadodessacirculaçãodeobjetos.Ocomércio,os transportes ou a manufatura em nada acrescentariam, em termos de valor, àquilo que já tivesse surgido da natureza atravésdaproduçãoagrícola(SCHWARTZ,1991:94).
Não entraremos, neste momento, no debate acerca da teoria econômica do valor,darendaoudaoposiçãoentrepensamentoestáticooudinâmico.Oque vale aqui é registrar a trajetória da noção de circulação até chegarmos à Geografia.Tambéméimportantedizer,queateoriaeconômicadosfisiocratas não espacializou o fluxo circular, ficando este como uma mera abstração. Depoisdosfisiocratas,acirculação(omovimento)ganhounotoriedadeentreas ciências sociais. O pensamento dos fisiocratas influenciou diretamente as formulações saintsimonianas sobre as redes, cujo elemento essencial era a circulação do “sanguedinheiro”, que manteria erguido o corpo social. A circulaçãonaredeeraacondiçãonecessáriaparaaboaadministraçãoeparaa mudançasocial.Asredesdecomunicaçãoseriamabaseparaomelhorcontrole estatal(MUSSO,2004:2526).AoriginalidadedeSaintSimon(ClaudeHenride Rouvroy, Conde de SaintSimon, 1760 1825), apesar das várias críticas já proferidas a respeito do pensamento do filósofo, foi a consideração da circulação enquanto um elemento responsável pela relação entre os diversos
agenteseconômicosesociaisesparsosnoespaço,apartirdaaçãoestatalpara construção de infraestruturas de “comunicações” (incluise neste caso as infraestruturas de transportes), para fins de controle por parte do próprio Estadoeparacirculaçãoeacumulaçãodecapital.
O positivista Herbert Spencer (18201903), considerado o “pai do darwinismo social” e maior difusor da ideologia do progresso, propôs uma sociologia evolucionista através do estudo do desenvolvimento dos organismos sociais, taiscomo:aparelhos,sistemasefunções,sobinspiraçãobiológica.Essefilósofo distinguiutrêsgrandes“aparelhosdeórgãos”:oprodutor(oudemanutenção), odistribuidoreoregulador,sendoacomunicação,elementobásicoconstituinte dosdoisúltimosequegaranteadistribuiçãodasubstâncianutritiva,enquanto a produção serve para a subsistência do corpo social. A análise de Spencer é dirigida ao entendimento das relações entre sociedade e Estado, tendo a circulaçãoumpapelestratégicoedecontroleporpartedoEstado(OCentrodo corposocial)queimplantatécnicasdecirculaçãovoltadasaousodainformação e à propagação de sua influência (postos, telégrafo óptico, telégrafo elétrico, agênciasdenotíciasetc.)(MATTELART,1994:1012).
Ospensamentosnarradosatéaquiacercadaconstruçãodanoçãodecirculação influenciou a Geografia Humana, cuja preocupação inicial era a sua sistematização e não a especialização em diversos ramos como vemos atualmente. Nesse sentido, a circulação seria não apenas uma parte da GeografiaHumana,mas,sobretudo,umaaçãofundamentaldohomememsua relaçãocomomeio,eumprincípiobásicodaGeografiaHumanaqueiniciavaa suaconstrução.Essarelaçãoapresentavamudançasjustamentepelaampliação dascomunicaçõeseoconseqüenteaumentodoscontatosentreos“povos”,o que era bem visível em fins do século XIX, a partir das bruscas mudanças nas formasdetransporteseaampliaçãodastelecomunicaçõesparadistânciascada
vez maiores. Observando esse mundo em forte processo de conexão, Alfred Hettner escreve, em 1897, o artigo intitulado “Der gegenwärtige stand der
Verkehrsgeographie” (“O atual estado da Geografia dos Transportes”). Nesse
artigo,segundoHückel(1906:402),acirculaçãoéapresentadacomosendo“a soma das relações recíprocas dos homens” ou “um movimento de um lugar a outrodepessoaseobjetosdevalorcomparávelàcirculaçãodosanguenocorpo humano”.
AabordagemdeHettnerseriasistematizadaposteriormenteporoutroalemão, Friedrich Ratzel. Este publicou em 1903, a segunda edição do clássico “GeographiePolitische”,cujotítulopassouporumaampliação,demodoquea obra passasse a se chamar “Politische Geographie oder die Geographe der
Staaten, des verkehrs und des krieges” (“Geografia Política ou a Geografia dos
Estados,dosTransportesedasGuerras”)(HÜCKEL,1906).
O período compreendido entre os séculos XVIII e XIX abrigou a maior transformaçãocientíficadetodosostempos,capazderealizarafusãodefinitiva daciênciacomatécnicae“potencializar”omodocapitalistadeprodução.Esse evento foi decisivo para a transformação e a concepção de novas formas e técnicas de circulação. A revolução industrial inglesa, ocorrida no referido período, trouxe também uma revolução dos transportes e conseqüentemente umarevoluçãodacirculação,especialmenteterrestre,emqueavelocidadenos deslocamentos, por meio de um sistema de movimento inteiramente novo, promovia as grandes transformações3. No âmbito da circulação aquaviária, transformações importantes ocorreram no período das grandes navegações renascentistas, quando empresas comerciais mercantilistas lançaram mão de
3 Embora “melhorias muito substanciais e dispendiosas em transportes – por rios, canais e
mesmo estradas de rodagem – foram realizadas desde o começo do século XVIII, a fim de diminuirocustoproibitivodemovimentarcargasterrestres”.Oquesetransportavaemvários diasjápassavaaserrealizadoemhoras(HOBSBAWM,2003:43).
novastécnicascartográficasenovastecnologiasdenavegaçãoparasuperaras dificuldadeseobtermaiorvelocidadenotransporte.Noentanto,avelocidade intrínseca obtida em terra com o trem foi a responsável pelas transformações maiscontundentesnaorganizaçãodoespaço,alterandoavidaurbanaerural, impondoumnovoritmo.
No século XIX, mais especificamente, surgiram o barco a vapor, as estradas elaboradas a partir de novas técnicas de engenharia rodoviária e de pavimentação (o pavimento de Telford, o pavimento macadame e, posteriormente, em 1895, o pavimento asfáltico), o automóvel, a telegrafia, a telefoniaeamaisrevolucionáriamáquinadecirculação,aferrovia.Dopontode vista científico, teorias econômicas e políticas buscavam tanto a raiz das transformaçõescomoadefiniçãodosseusrumos.Avisãoiluministadeixavaa herançafilosóficaaosnovosracionalistaspositivistaseaosautoresdadialética materialista (como Marx e Engels) e idealista (Hegel). Através do positivismo aspiravase sistematizar as ciências humanas à luz das ciências naturais, principalmenteaBiologia.Comadialética,pretendiaseestabelecerumacrítica aodesenvolvimentodasrelaçõessociais.Nessecontextofilosóficoecientífico,a Geografia, um dos saberes mais antigos da humanidade, se institucionalizou e passou a ser sistematizada conforme os pressupostos da doutrina positivista. Entre os princípios do positivismo estão a pseudo neutralidade científica e o empirismo, cujos resultados das pesquisas deveriam ser “demonstráveis”, lançandose mão da dedução e da observação como fundamentos metodológicos.
O desenvolvimento de redes técnicas no século XIX, em consonância com o advento de novas formas de circulação (conseqüência da constituição de sistemas de engenharia e de sistemas de movimento), evidencia a modernidade.SegundoBerman(1986).
Se nos adiantarmos cerca de um século, para tentar identificarostimbreseritmospeculiaresdamodernidadedo século XIX, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na qual tem lugar a experiência moderna. Tratase de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano; jornais diários, telégrafos, telefones e outros instrumentos de
media,quesecomunicamemescalacadavezmaior;Estados
nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionaisdecapital;movimentossociaisdemassa,que lutam contra essas modernizações de cima para baixo, contando só com seus próprios meios de modernização de baixoparacima;ummercadomundialqueatudoabarca,em crescenteexpansão,capazdeumestarrecedordesperdícioe devastação, capaz de tudo exceto solidez e estabilidade. Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente, com paixão, e se esforçam por fazêlo ruir ou explorálo a partir do seu interior; apesar disso, todos se sentemsurpreendentementeàvontadeemmeioaissotudo, sensíveis às novas possibilidades, positivos ainda em suas negações radicais, jocosos e irônicos ainda em seus momentos de mais grave seriedade e profundidade (BERMAN,1986:18).
Aquele “mundo moderno” passou a constituir o universo das análises geográficas, sendo a circulação lentamente incorporada. Fato que se deve aos propósitosdaGeografiaquandodasuainstitucionalização,queeraelaborarum conhecimento sistematizado sobre o mundo em que se “desvendava” e se “neocolonizava”. Nesse sentido, a “responsabilidade” da Geografia enquanto ciência era a de elaborar a imagem do mundo, através das descrições e narrativas de viagens4. Era mais importante para os agentes hegemônicos
4AGeografiaaindaéresponsávelpela“formulação”de“imagens”domundo(GOMES,2005),
no entanto, esta prática a partir de narrativas de viagens, já não é comum. Vivemos o momentoda“consciênciaplanetária”apartirdaunicidadedastécnicas,aunicidadedotempo e a convergência dos momentos, no qual em relação aos satélites, todos os pontos se equivalem em termos de distância. Isto não é ideológico, pois passamos outra etapa de
apresentar as imagens das populações e recursos, do que propriamente das relações contraditórias inerentes ao capitalismo monopolista industrial do séculoXIX.
A seguir, veremos como alguns autores clássicos analisaram a circulação peranteamodernidadeeasdiversasmudançasnasformasdecirculação.
formulação e reflexão acerca do mundo em que vivemos. Para maiores detalhes ler Santos (2001);Santos(2004)eSantos(2008).