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Cláusula do Devido Processo Legal substancial enquanto controle de conteúdo

Capítulo III – A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SEU SENTIDO

2. A cláusula do Devido Processo Legal

2.3 Devido processo legal substancial

2.3.5 Cláusula do Devido Processo Legal substancial enquanto controle de conteúdo

Até o presente tópico demonstrou-se que a cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial está adequadamente incorporada ao ordenamento jurídico pátrio. Todavia, a delimitação de seu conteúdo é medida significativamente desafiadora em virtude da significativa redução do conceito do princípio em face do extenso rol de princípios incorporados expressamente pelo regime jurídico da Constituição Federal de 1988. Se por um lado princípio é “oco”, por outro encontra uma gama de “concorrentes” conceituais.

Foi exaustivamente dito neste trabalho que o conteúdo axiológico da cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial só merece acolhida na exata medida em que não confrontar diretamente com outras normas constitucionais.

Neste sentido, existe uma característica em comum, tanto do conteúdo axiológico da cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial quanto os demais institutos análogos possuem uma característica em comum não colidente: todos dizem respeito ao controle do mérito da decisão estatal. Esta é uma característica comum a todos os elementos até agora comparados, porém, não possuem qualquer conflito conceitual.

Identificar a cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial enquanto norma atinte ao controle do mérito estatal é o ponto de partida para a identificação de seu conteúdo.

2.3.6 Cláusula do Devido Processo Legal em sentido substancial e a busca pela melhor decisão.

Quando instituída a law of land, ela nada mais representava do que um simples procedimento que deveria ser observado para a tomada de decisão do Monarca. Porém, a figura do Estado naquela oportunidade não possuía qualquer desenvolvimento no âmbito das instituições jurídicas, vale lembrar: o Monarca era juridicamente irresponsável.

Trata-se, indiscutivelmente, do tratamento e do cuidado com a questão de limite de poderes para proferir decisões estatais, principalmente da decisão judicial. Este enfoque, para não dizer esta preocupação, é pertinente e tem sua razão de o ser.

Porém, na forma do Estado Contemporâneo, - passados 800 anos – muito se desenvolveu de lá para cá. O Estado foi submetido à Lei e, mais do que isso, passou a exercer função, está uma construção meramente instrumental para com a persecução com o interesse público e o interesse coletivo.

Ao contrário do que se observa na sociedade moderna, anas primeiras formas de Estado de Direito, principalmente no Estado de Direito Liberal, as constituições possuíam pouca efetividade, dada a ideologia liberal, “segundo a qual a não intervenção do Estado tinha como contrapartida a auto-regulação da esfera social”135.

Nesta versão do Estado Liberal, o Poder Legislativo constituía órgão prioritariamente voltado à representação da vontade popular, de modo que “subordinava ao Executivo e ao Judiciário, favorecendo ao Legislativo que expressava a chamada vontade geral na exposição de Rousseau”136.

Já no Estado contemporâneo, a realidade é totalmente diversa. O Poder Legislativo tem se mostrado significativamente deficitário no trato e na regulação da vida social, dada a pluralidade de funções estatais e a heterogeneidade social. O moroso processo político/legislativo não socorre, em tempo, os frenéticos anseios da sociedade contemporânea.

Pietro Alarcón, citando Prieto Sanchís, destaca que o constitucionalismo moderno é marcado pelo “forte conteúdo normativo e garantia jurisdicional”137. Neste sentido, o Poder Judiciário passou a exercer papel central na democracia moderna, é o guardião da constituição, responde com mais eficiência e rapidez na garantia e efetividade dos direitos fundamentais e na resolução dos conflitos sociais.

E, para compreensão da importância do princípio do Devido Processo Legal substancial face ao ordenamento jurídico moderno, é imprescindível a figura da função. Enquanto exercício de função todo o aparelho estatal age em nome no ordenamento jurídico. Não há campo para vontade ou caprichos do administrador, só o comando legal e o interesse público importam.

135 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126.

136 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126.

137 LORA ALARCÓN, Pietro de Jesús. Ciência política, Estado e direito público: uma introdução ao direito público da contemporaneidade. São Paulo: Verbatim, 2011, p . 126.

O Estado, só se manifesta por meio de decisão em qualquer uma de suas funções: a função administrativa enseja a prolação de um ato administrativo, a função judicial prolata-se uma sentença (ou um acórdão) e a função legislativa promulga-se uma Lei. Qualquer um dos atos proferidos devem, inexoravelmente promover da melhor maneira possível os comandos do ordenamento jurídico.

Enquanto princípio, a cláusula do Devido Processo Legal substancial é um mandado de otimização. Mandados de otimização determinam que algo seja proferido da melhor maneira possível. A cláusula do Devido Processo Legal determina que as decisões estatais sejam proferidas da melhor forma possível.

Dogmaticamente não existe qualquer problema em se admitir que as decisões judiciais devam ser a melhor decisão possível. Se, o caráter funcional determina que a submissão a um determinado regime, deve o agente responsável apresentar a solução (decisão) que melhor satisfaça os princípios incidentes no caso concreto observada suas peculiaridades.

Ora, a cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial nada mais é que o que dever do Estado decidir para melhor forma possível. Não é em outro sentido a lição do memorável processualista Cássio Scarpinella Bueno138:

O “devido processo legal substancial” busca, bem diferentemente, outras realidades, relativas à interpretação possível no caso concreto. [...] não há como negar aqui mesmo aqui mesmo que a importância do tema “devido processo legal substancial‟ cresce na exata medida em que se constata a (irreversível) “abertura” que tipifica o “paradigma” do direito dos dias atuais [...]. Como a melhor interpretação do direito pode depender, muitas vezes, de uma maior, quiçá necessária, interação entre o órgão competente para aplicar a norma jurídica e os valores reinantes na sociedade civil e no próprio Estado – até mesmo pela complexidade, técnica inclusive, que, cada vez mais, tem caracterizado o objeto do regramento jurídico -, não há como negar que a melhor pauta de interpretação do direito pode depender, crescentemente, de uma mais ampla e generosa concepção do próprio processo (devido processo legal “formal”, neste sentido) para permitir que o magistrado possa ter acesso a estes valores que, dispersos pela sociedade e pelo próprio Estado, mostram-se decisivos para interpretação e aplicação da norma jurídica.

138 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil : teoria geral do direito

Como dito, não há dificuldade em se reconhecer dogmaticamente a cláusula do Devido Processo Legal substancial como princípio ordenador da busca da melhor decisão – observadas todas as características instrumentais do exercício da função estatal - resta alguns esclarecimentos sobre o que se entende por “Melhor decisão”.

2.4 A “melhor” decisão

A discussão a respeito do tema da “melhor” decisão por vezes é tormentosa. Em verdade, o que parece é verdadeiramente uma supervalorização daquilo que poderia ser imaginado como melhor solução a um determinado caso concreto. Com efeito, a primeira impressão sobre o enfrentamento do tema, quer parecer que “a fonte” da melhor decisão é quase um instituto divino, um intangível conhecimento transcendental. Há um certo exagero no tema.

Nunca é demais lembrar que o Direito e o Estado são concepções fictícias criadas pelo próprio homem, e pelo homem é conduzido. Quando se espera que um ser humano seja responsável pela “melhor” decisão, se exige que produza a “melhor” decisão levada em consideração as fragilidades e imperfeições existentes em TODO ser humano.

As lições de Lenio Streck bem esclarecem a questão a afirmar que “a resposta não é nem a única e nem a melhor: simplesmente trata-se da „resposta adequada a Constituição‟, isto é, uma resposta que dever confirmada na própria Constituição, na constituição mesma”139.

Se, por um lado, não se exige dos homens que decidam como verdadeiras divindades, por outro lado, não é admissível que autoridades, enquanto agentes públicos no exercício de função, possam “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”140.

Já foi dito: decidir é produzir uma norma jurídica. E, enquanto norma jurídica, o ato decisório deve obediência ao ordenamento jurídico, deve obediência ao

139 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do

Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2014, p. 433.

140 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do

Direito. 11. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2014, p. 433. A expressão é do prório Lenio Streck.

interesse público. Neste sentido, antes de mais nada a decisão adequada deve ser alheias as interjeições subjetivas do julgador. O exemplo de Dworkin é paradigmático141:

Assim, um juiz que segue a concepção centrada nos direitos não deve decidir um caso controverso recorrendo a qualquer princípio que seja incompatível com o repertório legal de sua jurisdição.

O direito, antes de tudo, é linguagem142, é comunicação. O âmbito da decisão não é diferente. “O ato de decidir juridicamente é um ato racional, pois ele exige fundamentação”143 “Para ser racional, o discurso decisório tem que estar aberto à possibilidade de questionamento”.144145.

A racionalidade146 empregada por Robert Alexy é destinada a correção dos argumentos (enquanto calçados em argumentos de verdade147148) . Com efeito, a adoção de

141 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, p. 16.

142 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 7.

143 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2011, p. 299

144 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2011, p. 299

145Com efeito, Robert Alexy se dedicou a criação de uma Teoria da Argumentação específica para o campo do direito, trata-se da Teoria da Argumentação Jurídica. Em síntese, calçado em uma Teoria do Discurso Prático Geral, pretende o autor estabelecer normas mínimas e universais capazes de controlar a racionalidade do discurso jurídico, tanto na prática quanto na ciência do direito Com efeito as principais normas lançadas pelo Autor consistiram: “1) qualquer um pode tomar parte no discurso, introduzir e problematizar qualquer asserção (uma das regras de razão de Alexy – chamada por Habermas de princípio D, princípio da concreção); 2) Se o falante aplicar um predicado a determinado objeto, deve aplica-lo também a qualquer outro objeto semelhante nos aspectos essenciais (uma das regras fundamentais de Alexy – chamada por Habermas de princípio U,

princípio da universalidade, expressa no Direito tanto pelo princípio da isonomia quanto pela analogia como método de integração do ordenamento jurídico); 3 )O falante não pode se contradizer (princípio da não

contradição tanto da lógica formal – envolvendo então o princípio da identidade e do terceiro excluído – quanto a lógica do discurso, determinando a não contradição performativa); 4) O falante só pode afirmar aquilo em que ele mesmo acredita (pretensão de veracidade habermasiana); 5) O falante não pode usar a mesma expressão que outros falantes com significados diferentes (pretensão de inteligibilidade formulada por Habermas); 6) O falante deve fundamentar o que afirma se lhe for pedido (regra geral da fundamentação)”.

Vale destacar também que Alexy estipulou tantas outras regras significativas. A primeira delas é o princípio

da inércia, segundo o qual o falante não precisa justificar os argumentos já aceitos. Em caso de contra- argumentos mais justificativas devem ser dadas. A teoria consensual da verdade submete as argumentos valorativos a apreciação condição de validade, exceção feita aos casos em que discurso é fundamentado pelo próprio argumento que se pretende validade (trilema de Munchhaysen – circularidade). ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 8 a 11).

146 A racionalidade de um discurso jurídico pode ser aferida sob dois aspectos formal ou material. O formal é destinado a avaliação lógica do discurso e o material dedica-se ao conteúdo do discurso. (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011. p.4)

147 Por estar vinculado a esta corrente, “pós-reviravolta linguístico-pragmática”, Alexy não vislumbra valores como justiça e razão prática como aquele refrida por Kant. Justiça, para Alexy é justiça formal, nos termos de

regras procedimentais argumentativas torna a valoração e inibem a adoção indiscriminadamente subjetiva de valores, isto é, “a objetivação de consensos se dá argumentativamente, segundo regras do discurso, tornando-os corretos ou verdadeiros porque racionalmente fundados. Sendo discursivamente racionais, são tornados universais.” 149

Portanto, não basta que o agente competente apenas aliene-se de condições subjetivas quando do momento da decisão. Não basta que os valores almejados no processo decisório tenho sido objetivos em consonância com o ordenamento. É necessário mais. É necessário que o agente exteriorize não apenas sua decisão, mas deve, isto sim150:

explicar os motivos de sua compreensão, oferecendo uma justificação (fundamentação) de sua interpretação, na perspectiva de demonstrar como a interpretação oferecida por ele é a melhor para a aquele caso (mais adequada à Constituição ou, em termos dworkinianos, correta), num contexto de unidade, integridade e coerência com relação ao Direito da Comunidade Política.

Veja, o que torna uma decisão correta (ou a melhor decisão) não é apenas a excelência do resultado prático de seu comando, mas também a forma e procedimento de sua prolação. Não basta que o agente público simplemente aponte qual a medida mais adequada a uma determinada questão, é preciso que ele demonstre os motivos de sua escolha, mais do que isto, deve mostrar a pertinência e adequação de seus motivos.

Sendo assim, a melhor decisão não representa em absoluto uma providência divina à questão de determinado caso concreto. Com efeito a melhor decisão, compreendida nos termos aqui exposto, deve:

princípio da igualdade formal (derivado do princípio da universalidade). E razão prática é sinônimo de razão comunicativa. Se, para Alexy – calçado da Filosofia da Linguagem - a verdade não é algo absoluto, a Teoria do Discurso Geral não vislumbra controle do conteúdo dos enunciados, ela é puramente procedimental e pautadas em critérios de correção que visam afastar os argumentos irracionais e se aproximar “ao ideal que

funciona como parâmetro para a facticidade” (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do

Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 10). 148 Há aqui um rompimento com o conceito de verdade aristotélica. Para Alexy, reconhecer que a “verdade” é

produto do conhecimento humano, é reconhecer que a verdade é um produto cultural, sempre passível de refutabilidade. (ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p.7).

149 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Fundamentação Jurídica. 3.ed. Rio de Janeiro : Forense, 2011, p. 5.

150 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma explosão hermenêutica da construção do

i) Ser promulgada por razões objetivas e coerentes com os preceitos do próprio ordenamento jurídico;

ii) Externar as razões da escolha de determinada medida, a fim de justificar satisfatoriamente os argumentos racionais de sua opção;

iii) Observar o procedimento decisório que efetivamente permita a verificação os dois primeiros tópicos

Se o agente público competente efetivamente cumprir todos o níveis necessário sua decisão é a prioristicamente a melhor decisão. Ainda que novas especulações possam surgir, permanece a decisão enquanto não se comprovar que outra medida seja mais eficaz.

Vale dizer, a cláusula do Devido Processo Legal em seu sentido substancial determina que se busque a melhor decisão, porém, por se tratar de um princípio não trata da forma de se buscar a melhor decisão.

Atualmente, é forçoso reconhecer que a corrente discursiva tem conquistados grandes avanços no que se refere a preocupação em criar instrumentos de controle do mérito das decisões estatais. Hoje, as soluções que os discursistas apresentam são mais avançadas nestes sentido, enquanto perdurarem aplica-se, até que soluções mais satisfatórias surjam.

Encerrada estas considerações, passa-se a demonstrar como a função administrativa se interaciona com a cláusula do Devido Processo Legal em sua forma substancial.

Capítulo IV – O DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL E A FUNÇÃO