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Da problemática conceitual em face do ordenamento pátrio

Capítulo III – A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SEU SENTIDO

2. A cláusula do Devido Processo Legal

2.3 Devido processo legal substancial

2.3.3 Da problemática conceitual em face do ordenamento pátrio

De fato, no desenrolar dos tempos, o princípio do devido processo legal foi imprescindível para o desenvolvimento de diversas regras e princípios de Direito, principalmente no âmbito dos direitos e garantias individuais, capazes de se opor e controlar ao uso arbitrário do poder.

E isso só foi possível em virtude da significativa abstração do princípio do devido processo legal substancial, do qual surgiram o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade, foi aplicado como regra de justiça, entre tantos outros.

O grau de denotação do referido instituto foi imprescindível para a criação do Direito Inglês, no qual vigora o sistema da common law, em que a Constituição é material, cujas normas são extraídas de textos normativos esparsos, tratados, jurisprudência e do costume.129

O mesmo ocorreu no sistema norte americano, no qual o sistema Constitucionalista conferiu ao Poder Judiciário o controle e a interpretação das normas constitucionais - de um país notadamente conhecido por sua forma reduzida, com normas de alto grau de denotação, conferindo ainda maior margem de atuação ao Poder Judiciário.

A experiência destes dois países permitiu a construção da cláusula do devido processo legal substancial com extenso e riquíssimo conteúdo axiológico, conferindo ampla margem de deliberalidade ao Poder Judiciário.

129 MARTINS, Ricardo Marcondes. Regulação administrativa à luz da constituição federal. São Paulo: Malheiro – Temas de direito Administrativo 29, 2011, p. 30.

Para ilustrar, pode-se até fazer uma comparação com a experiência observada no Conselho de Estado Francês, que diante da escassa (para não dizer inexistente) regulamentação legislativa, o Conselho viu-se obrigado (e permitido) a construir jurisprudencialmente o regime jurídico-administrativo.

Ocorre que, no caso brasileiro, a realidade é totalmente distinta. Com o advento da Constituição Federal de 1988, muitos daqueles valores que inicialmente derivaram da cláusula do devido processo legal substancial na experiência estadunidense e inglesa, foram expressa e individualmente previstos na constituinte brasileira.

Em outras palavras, esses tipos de cláusulas embrionárias surgiram como uma espécie de válvula de escape do sistema vigente à época (sistema este ainda pouco evoluído). Como tinham pouco conteúdo semântico, admitiam o emprego de conceitos até então inéditos. Porém, com o passar dos tempos, estes conceitos inovadores passaram a ter significação própria e estas cláusulas retornaram a ter pouca densidade semântica.

Márcio Cammarosano identificou movimento semelhante, ao caso vertente, com relação ao princípio da Moralidade Administrativa.130 Conforme leciona o renomado jurista, o Direito torna jurídico os valores de acordo com determinada conduta que se pretende regular. Por outro lado, não faz qualquer incorporação daquelas condutas que entende irrelevante para o ordenamento jurídico. É o exemplo da mentira. Mentira e verdade representam um valor ligado a uma virtude. Em determinados campos, o direito jurisdicizou esta virtude, em outros não. O réu não está obrigado a falar a verdade, a testemunha sim.

Ao tratar do princípio da Moralidade, Márcio Cammarosano destaca que, com base neste valor, a Constituição jurisdicizou o princípio da moralidade administrativa (que não se confunde com a moral comum).

Juntamente ao princípio da moralidade administrativa, o legislador constituinte tratou de incorporar tantos outros conceitos indeterminados próximos ao princípio da moralidade, como por exemplo, dignidade da pessoa humana, integridade moral, decoro parlamentar, idoneidade moral, reputação ilibada, existência digna, justiça social, paternidade responsável. Ao que o autor conclui:

130 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função

Essa permeabilidade de certos conceitos [...], faz-nos lembrar de lições de Agustin Gordillo, a respeito da existência, especialmente no Direito Público, de muitas palavras „que constituem uma verdadeira estrutura oca’, cuja função histórica tem sido tanto „a de servir contra a liberdade‟, como „servir de enlace às valorações metajurídicas‟, permitindo „introduzir variáveis axiológicas que significassem uma adequação permanente das normas às cambiantes realidades‟. Algumas dessas palavras, como proporcionalidade, razoabilidade, e boa-fé, cumprem, diz o autor, e com eles concordamos, „uma função valorativa positiva‟.131(sem destaque no original)

Se se admite que o referido princípio equipara-se conceitualmente ao postulado da proporcionalidade, ao postulado da razoabilidade; ao postulado da justiça, e aos deveres de fundamentação e motivação das decisões administrativas, confirmar-se-á o caráter “oco” da norma.

Isto se comprova pela seguinte situação hipotética. Imagine que o poder constituinte derivado resolva aprovar emenda constitucional modificando o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal,132 que passaria a vigorar com a seguinte redação: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal formal. No estado brasileiro não mais se aplica o princípio do devido processo legal em sua vertente substancial”.

Ainda que o exemplo seja absurdo, ele é explicativo. Com efeito, o novo regime em nada modificaria o ordenamento jurídico, pois não há conteúdo semântico ao referido princípio. Os postulados da proporcionalidade, razoabilidade, da justiça, os deveres de fundamentação e motivação das decisões continuariam vigentes.

O risco é que um princípio com significativa carga axiológica e originariamente constituído tenha sua eficácia suprimida. E, como bem relata Lenio Luiz Streck, hoje há um panprincipiologismo significativamente prejudicial à compreensão, a aplicação do ordenamento jurídico e a força da própria Constituição133:

131 CAMMAROSANO, Márcio. O princípio constitucional da moralidade e o exercício da função

administrativa. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 82.

132 Evidentemente, por se tratar de cláusula pétrea, o artigo 5º, inciso LIV, CF, jamais poderia ser objeto de modificação. Mas, é pertinente a preposição, apenas como questão hipotética.

133

STRECK, Leino Luiz. Verdade e consenso : constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 2011, p. 538.

Percebe-se, assim, uma proliferação de princípios, circunstâncias que pode acarretar o enfraquecimento da autonomia do direito (e da força normativa da Constituição), na medida em que parcela considerável (desses „princípios‟) é transformada em discurso com pretensões de correção e, no limite, como no exemplo da „efetividade‟, um álibi para decisões que ultrapassam os próprios limites semânticos do texto constitucional. Assim, está-se diante de um fenômeno que pode ser chamado de panpriciologismo‟, caminho perigoso para um retorno à „completude‟ que caracterizou o velho positivismo novecentivista, mas que adentrou o século XX.