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Capítulo III – A CLÁUSULA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL EM SEU SENTIDO

1. Evolução histórica da cláusula do Devido Processo Legal

1.1 De Law of The Land ao Due Process of Law

A construção da cláusula do Devido Processo Legal, na forma moderna, tem como marco paradigmático a promulgação da Carta Magna – em 15 de junho do ano de 1215 - imposta pelos Barões Feudais ao Rei da Inglaterra, conhecido como JOÃO “SEM TERRA” (John lackland).

Segundo a doutrina sobre o tema,93 a problemática tem sua origem em 1066, período em que os normandos invadiram a Inglaterra por empreitada de Duque William da Normandia, “O Conquistador”.

Tanto Willian quanto seus sucessores (Henry e Henry II) governaram o Reino da Inglaterra de maneira severa, o que lhe imputaram em determinadas situações conceder cartas de franquias aos seus súditos para manter o controle de seus reinados e evitar rebeliões de seus vassalos.94

92 MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido processo legal e a constituição brasileira de 1988. Revista de Processo – Revista dos Tribunais – Ano 22 – Jan/Mar 1997 – n. 85 – pág. 175/180. Palestra proferida, em 19.11.1996, na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de Minas Gerais, a convite das Faculdades Integradas Newton Paiva, da Seccional da OAB-MG e da Escola da Advocacia da OAB-MG.

93 Sobre o contexto que precedeu a instituição da Carta Magna, cite-se: DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto.

Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo: RT, 1964. e, SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996.

94 SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996, p. 21.

Ricardo Coração de Leão (filho de Henry II), ao retornar da terceira cruzada, é detido na Áustria e é solicitado resgate ao seu irmão, João “Sem Terra”. Nesta oportunidade, João “Sem Terra” aproveita para tomar o trono de Ricardo Coração de Leão, que era significativamente respeitado pela corte. Este golpe dá ensejo a inúmeras rebeliões. Ricardo “Coração-de-Leão” retorna ao reino, porém permanece pouco tempo no trono antes de sua morte, o que faz com que seu irmão assuma a Coroa.95

Ocorre que, a tirania do governo de João “Sem Terra” foi de tal severidade que levou os Barões a se insurgirem contra seu posto. A transcrição abaixo bem relata as atrocidades cometidas pelo Monarca:96

Os desastres, cincas e arbitrariedades do novo governo foram tão assoberbantes, que a nação, sentindo-lhe os efeitos envilecedores, se indispôs, e por seus representantes tradicionais reagiu. Foram inúteis as obsercrações. A reação era instintiva, generalizada; e isso, por motivo de si explícito: tão anárquico fora o reinado de João, que se lhe atribuía outrora, como ainda nos nossos dias se repete, a decadência, então, de toda a Inglaterra. Atuou em todas as camadas sociais; postergou regras jurídicas são de governo; descurou dos interesses do reino; e, autuar sobre tudo, desservindo a nobres e a humildes, ameaçava desnevar a energia nacional, que se revoltou.

Maciçamente pressionado, não restou alternativa ao João “Sem Terra” senão assinar a Carta Magna, a qual assegurou ao baronato que não haveria qualquer violação aos direitos “relativos à liberdade e propriedade, cuja supressão só se daria através da „lei da terra‟ (per legem terrae ou law of land)”97, da qual reproduz-se o famoso, § 39:

No free man shall be arrested or imprisioned, or disseized, or outlawed, or exiled, or in any manner destroyed, nor will we proceed against him, or put burden upon him, except by the legal judgement of his peers, or by the law of the land”. (“nenhum homem livre será detido ou sujeito a prisão, ou privado dos seus direitos ou seus bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou reduzido em seu status de qualquer outra forma, nem procederemos nem

95 Ibid. p. 22.

96 Ibid, p. 22. ao citar PONTES DE MIRANDA. História e prática do hábeas corpus. 7. ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 11.

97 DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo : RT, 1964, p. 24.

mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelo costume da terra”)98

É bem verdade que a submissão do Rei à lei da terra pouco revolucionou as relações sociais à época. Na verdade, os institutos ali tratados ficaram restritos apenas à alta nobreza não resultando em qualquer garantia ou prerrogativa aos demais personagens do corpo social99 - vide o fato de a carta era redigida em latim, justamente para afastar-lhe o conteúdo do alcance da plebe100, mas o desenvolvimento do instituto tratou de estender tais benefícios a todos. Fato é que a Carta Magna de 1215 é o marco inicial da concepção de que os atos de império deveriam se submeter a um processo, a formalidade pré-estabelecida.

Em 1354, já sob reinado de Eduardo III, a expressão per legem terrae é substituída por due process of law (não se sabe ao certo o motivo da substituição).

Tal expressão, hoje denominada como “princípio”, subsiste desde então, com inúmeras passagens de seu aperfeiçoamento com relação ao desenvolvimento da proteção dos direitos e garantias individuais, valendo citar o período de 1628, quando foi promulgada a Petition of Rights (idealizada Edward Coke) em resposta à determinação de Carlos I para o aprisionamento de cinco membros da nobreza sem o devido processo legal, após instituir-lhes empréstimo compulsório ilegal; o Habeas Corpus Act, em 1679 e o Bill of Rigths, em 1689.101

Sampaio Dória102 bem destaca que, inicialmente, a cláusula do devido processo legal possuía caráter tipicamente processual. Segundo o referido autor, em sua forma embrionária, o devido processo legal nada mais representava do que a exigência de um processo judicial ordenado (orderly proceedings).

98 Tradução de SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2. ed., ver. e atual - Belo horizonte: Del Rey, 1996, p. 22.

99 Ibid, p. 23. Até porque, como ressalta o Autor, a concepção moderna de povo era totalmente desconhecida. 100 Arturo Hoyos , bem destaca esta este caráter elitista da norma: “ Carta Magna, a la cual ya hemos hecho

alusión, y en la cual se consagran ciertos derechos en virtude de un pacto entre el Rey Juan y la nobreza, al que posteriormente se ha considerado como el fundamento de las libertades de los británicos. Sin embargo, cabe señalar que los derechos fundamentales previstos em la Carta, reconocidos em forma contractual y particular, se otorgan, como titulares de ellos, sólo a aquellas personas pertenecientes a cierto estamento (la nobreza). (HOYOS, Arturo. La garantia constitucional del debido proceso legal: (Art. 32 de La Constitución Política). Revista de Processo. São Paulo, v. 47, p. 43-69, jul.-set., 1987.

101 DÓRIA, Sampaio Antônio Roberto. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo: RT, 1964, p. 24.

Vale lembrar que o Parlamento não se submetia à cláusula do due process of law, tendo em vista que a legalidade representava exatamente a vontade do Parlamento Inglês, motivo pelo qual seus atos eram inquestionáveis103 - supremacia do Parlamento sobre o Poder do Soberano.

Ainda que inicialmente a law of land tenha submetido as tomadas de decisões do Monarca Inglês tão somente a um simples procedimento, em verdade, esta pequena mudança representou significativa ruptura com o sistema Monárquico.

Esta pequena “labareda” foi o estopim para uma grande evolução de prerrogativas e garantias individuais dos cidadãos frente aos poderes arbitrários do Estado.

Nestes termos, cláusula do devido processo legal representou (e ainda representa) fator de tratamento igualitário na relação Estado x Particular – fato que se deu a partir dos desdobramentos de princípios especiais104 advindo com conceito geral do due process of law, tais quais, contraditório, ampla defesa, dever de motivação das decisões estatais, duplo grau de jurisdição, entre outros.

Outrossim, a cláusula do devido processo legal tomou proporções ainda mais relevantes no sistema judiciário estadunidense. Como se demonstrará a seguir, a possibilidade de pronunciamento judicial sobre questões constitucionais permitiu não só o controle da forma do processo decisório, mas também o controle do mérito dos atos estatais (devido processo legal substancial), é o que se passa a demonstrar.