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CAPÍTULO V – ANÁLISE DOS DADOS

5.3. Construção das categorias de análise a partir da análise documental e da revisão

5.3.2. Clínica da saúde mental na atenção primária ou clínica da atenção

Durante a realização desta pesquisa, uma questão de fundo que se colocou durante a investigação se refere à existência ou não de uma clínica de saúde mental diferenciada, específica na atenção primária. Uma clínica “sem muros”, sem o conforto do setting terapêutico dos consultórios dos serviços especializados, onde “tudo se apresenta, ao mesmo tempo, agora”, na dinâmica e vivacidade do território, a céu aberto, coloca novas questões às equipes da atenção básica e também (e talvez mais ainda) às equipes de saúde mental.

Nova mirada da atenção primária em relação à saúde mental

A tarefa de desconstrução do modelo da assistência psiquiátrica tradicional, centrada na institucionalização – que definiu historicamente um lugar de tratamento das pessoas com transtornos mentais – ainda se faz bastante necessária em muitos setores da sociedade em

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geral, bem como nas equipes de saúde. É preciso reconstruir a noção de “um lugar de tratamento” para “uma rede continente” para problemas de saúde mental. Este deslocamento exige que se desconstrua, estrategicamente, a saúde mental como especialidade. “Não há saúde sem saúde mental” é o lema global adotado da OMS (45).

O que isto quer dizer? Quer dizer radicalizar a concepção de que para se produzir saúde é preciso produzir saúde mental. Tomar a abordagem psicossocial como prática cotidiana das equipes, na ressignificação do processo saúde-doença. Talvez possamos dizer que é preciso trazer para a atenção primária, a partir do campo da saúde mental, não a especialidade psiquiatria ou mesmo a especialidade saúde mental – já vimos em capítulos anteriores os efeitos da psiquiatria preventivista ou da psiquiatria organicista, por exemplo – mas a complexa contribuição do campo da atenção psicossocial.

Segundo Starfield (2) os problemas de saúde tendem a ficar cada vez mais complexos, com mais síndromes e incapacidades do que os médicos estavam acostumados a ver. Na APS, a doença se apresenta em estágio mais inicial do que na atenção especializada porque os especialistas já recebem pacientes com diversos encaminhamentos e com um histórico da doença e de tratamentos diversos. E conforme dito anteriormente, os especialistas tendem a superestimar a probabilidade de enfermidades sérias em populações não examinadas.

Para a autora, os médicos (foco de seus estudos) e o restante da equipe (aqui incluída) devem “tolerar a ambiguidade”, pois vários diagnósticos nunca serão definidos conforme as classificações tradicionais:

Eles devem sentir-se confortáveis em estabelecer e manter um relacionamento com os pacientes e em lidar com problemas para os quais não há nenhuma aberração biológica demonstrável. Eles também devem ser capazes de manejar vários problemas de uma vez, mesmo que os problemas não estejam relacionados em

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Apesar dessa discussão estar relacionada à clínica da atenção primária como um todo, ela se aplica muito bem ao tema deste estudo. Conforme apontado, o campo da atenção psicossocial poderia trazer importantes aportes teórico-práticos para estas novas complexidades clínicas, a que se refere Starfield.

Nova mirada da saúde mental em direção à atenção primária

Diversos autores apontam que as demandas de saúde mental se apresentam na atenção primária de forma diferenciada e que merecem um olhar distinto das formas clássicas da psicopatologia abordadas pela Psiquiatria e Psicologia (140, 141).

O ponto crítico, para Gask et al. (140) é que os clínicos encontram sintomas indiferenciados, difíceis de reconhecer e sem nenhum filtro para saberem se trata-se ou não de transtornos mentais. Os pacientes na atenção primária apresentam uma “mistura” de problemas psicológicos, físicos e sociais. O contexto de vida e a comorbidade tem um papel importante na forma como os pacientes experimentam seus sintomas e os apresentam na atenção primária. Logo, o diagnóstico, o tratamento e o prognóstico são distintos na atenção primária e nos serviços especializados.

Estas especificidades dos transtornos mentais mais prevalentes na atenção primária e o fato dos sistemas de classificações, usualmente, serem baseados em pesquisas e experiências em settings psiquiátricos, motivou a criação de uma classificação especial, a CID-10-AP, bem como a readequação do DSM-IV (140).

Os quadros de ansiedade aguda e transtornos depressivos, sem a presença de outros sintomas mais graves, associados a eventos estressores são bastante comuns na atenção primária. Goldberg (141) denomina estes quadros de Transtornos Mentais Comuns (TMC). Esta classificação específica surge diante da impossibilidade de correspondência dos sintomas destes quadros clínicos com os critérios diagnósticos das classificações da psiquiatria da CID-10 e DSM-IV.

Estas formas diferenciadas de apresentação dos quadros clínicos e de classificação da atenção primária repercute na epidemiologia dos transtornos mentais neste nível de

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atenção, com prevalências bem maiores, como já foi visto. Mas Gask et al. (140) indicam que há poucos estudos de longo prazo que confirmam os diagnósticos de transtornos mentais na atenção primária. Logo, estamos em um terreno de incertezas diagnósticas, que exigem novas posturas clínicas e psicossociais.

Neste sentido, Goldberg (141) diz que o diagnóstico é só o começo (ou nem mesmo isto?), pois o objetivo é ajudar o paciente a entender a natureza de seu problema e pesar os

benefícios e os custos dos tratamentos disponíveis. Isto demanda do médico (e da equipe) sensibilidade, flexibilidade e imaginação para as nuances de sentido culturais que se

refletem na experiência individual para poder definir intervenções diante das particularidades de cada paciente. Para este autor, neste contexto, dois fatores são importantes: a vulnerabilidade individual e a magnitude do fator estressor.

Outra problemática bastante comum na atenção primária é a dos “sintomas médicos não explicáveis” (142). Estes sintomas frequentemente não se adequam aos critérios diagnósticos do DSM-IV relativos às categorias dos transtornos somatoformes e colocam importantes desafios clínicos às equipes, no que se refere às intervenções possíveis e eficazes. No último congresso da Associação Mundial de Médicos de Família este foi um dos temas discutidos, com necessidade de definição de uma agenda de pesquisa sobre o tema.

Há obviamente uma interface importante da saúde mental na compreensão dos sintomas médicos não explicáveis, inclusive no que diz respeito aos sentidos que trazem para a clínica da atenção psicossocial estas novas classificações. Poderíamos, por hipótese, considerar que estas novas nomenclaturas, classificam o inclassificável do sofrimento humano, em um movimento mais de patologização do que de abertura para os sentidos desta experiência? Ou contribuem para ampliar o diálogo entre especialistas e generalistas?

Starfield (2) defende que há “uma nova clínica” da atenção primária. Que novos aportes podem trazer para atenção psicossocial? Que nova direção clínica pode ser construída na interface dos dois campos?

140 Um terceiro híbrido?

Gostaríamos de deixar indicado que as análises apresentadas sobre a clínica da atenção primária e da saúde mental exigiriam estudos muito mais aprofundados, que não são objeto da presente pesquisa. O que se destaca como importante para a presente discussão é entender, em linhas gerais, a dimensão dos aspectos clínico-políticos envolvidos na aproximação saúde mental-atenção primária. Entender as potencialidades e as resistências apresentadas neste movimento.

Mais que entender exatamente suas origens (político-histórico-culturais), que é também importante, se faz necessário “traçar o mapa de sua constituição, dando conta dos diferentes “interesses” e componentes que participam da formação dos saberes” (143). Isto seria estratégico para superar determinados entraves que se colocam para fazer ampliar os cuidados em saúde mental na rede básica.

A Organização Mundial de Saúde – OMS, juntamente com a Organização Mundial dos Médicos de Família – WONCA, destacam que o cuidado em saúde mental na atenção primária pode ser fator de redução de estigma, pelo lado do usuário, porque estes cuidados não estão associados com nenhuma condição específica de saúde na representação da população, tornando este nível de atenção mais aceitável e talvez mais acessível, para usuários e familiares (54).

Outra aposta que surge nos diversos artigos revisados e que tem relação com características estruturais da atenção primária é a proximidade das equipes com a comunidade e a família, o que possibilita um acompanhamento integral longitudinal, com abordagens complexas do ponto de vista de seus determinantes sociais.

Por outro lado, há uma grande contribuição da atenção psicossocial no que se refere à ampliação da clínica, a uma nova lógica de cuidado das pessoas com transtornos mentais, que não se restringe ao aparato assistencial mas se estende às intervenções políticas que a Reforma Psiquiátrica construiu junto à sociedade.

Logo, concluímos que estas novas miradas dos dois campos devem produzir um terceiro e mais potente campo de atuação, um “saber novo e híbrido”, composto de diversas visões e experiências (9). Esta discussão das particularidades da clínica da atenção

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primária, ao invés de demarcar seus limites, deve construir, no sentido inverso, um “sistema sem muros” (65).

Nesta perspectiva de integração e potencialização saúde mental-atenção primária, concordamos com Passos e Benevides (143) de que é preciso radicalizar a idéia de que a clínica só pode ser concebida como transdisciplinar. Segundo os autores, as disciplinas marcam fronteiras muito rígidas dentro da definição de seus objetos. E a flexibilização destas fronteiras, no máximo, significa um diálogo entre profissionais identificados com suas disciplinas, que se remetem a determinados especialismos.

Esta flexibilização se dá por um

movimento de disciplinas que se somam na tarefa de dar conta de um objeto que, pela sua natureza multifacetada, exigiria diferentes olhares (multidisciplinaridade), ou, de outra forma, o movimento de criação de uma zona de interseção entre elas, para a qual um objeto específico seria designado (interdisciplinaridade). Mas o que vemos, como efeito, seja na multidisciplinaridade, seja na interdisciplinaridade, é a manutenção das fronteiras disciplinares, dos objetos e, especialmente, dos sujeitos desses saberes (143).

Diversas abordagens que trabalham com a dimensão subjetiva da relação médico- paciente têm sido incorporadas às práticas da Medicina de Família e contribuído para a ampliação das abordagens reducionistas e biologicistas da clínica médica tradicional. Citamos, a título de exemplo, a Medicina Centrada na Pessoa (144), a Nova consulta (145), os Grupos Balint e a versão brasileira dos Grupos Balint-Paidéia - estes últimos como um dos dispositivos do Método Paidéia, com uma proposta mais ampliada que as demais, pois envolve outras dimensões que somente a relação médico-paciente (146).

A Medicina Centrada na Pessoa traz uma contribuição importante que é a distinção entre a doença e a experiência da doença. Segundo Ruben et al. (147) é necessário então diferenciar illness de disease. Illness pode ser traduzido como moléstia ou perturbação, que constitui a experiência particular de cada indivíduo ao adoecer ou sentir-se mal. É o modo singular, único, no qual cada pessoa é afetada pela doença. Trata-se da construção que os

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pacientes fazem sobre seu mal estar, ou seja, sua experiência vivida.

Já disease é, no modelo biomédico, explicável a partir da fisiopatologia, de anomalias estruturais, que definem alterações funcionais, e que se expressam (com maior probabilidade) de uma maneira particular, independente do indivíduo. A doença constitui-se assim em uma construção do médico para abordar os problemas. Segundo estes autores (147), a Medicina de Família pretende combinar ambas visões e pretende ofertar elementos para incorporar a moléstia ou perturbação na abordagem centrada na pessoa. A abordagem clínica, nessa visão, é por problemas, “que nada mais é que aquilo que preocupa a pessoa, sua família ou o médico, ou a todos...”.

Já o Método Paidéia (122) e seus dispositivos (clínica ampliada, projeto terapêutico singular, equipe de referência e apoio matricial) trabalham a incorporação de uma concepção expandida dos processos de adoecimento da população, com proposta que supere uma “restrita compreensão biogenética para a existência”. O Método criado por Campos, afirma que os sistemas de saúde podem contribuir para a constituição do Sujeito, com mudança nos padrões dominantes de subjetividade.

Paidéia é uma noção que vem do grego e indica a formação integral do ser humano. O método propõe a reorientação de práticas de saúde de modo a ampliar a capacidade de análise e co-gestão dos Sujeitos, e articula, de modo processual, os desejos, as limitações dos contextos, conjugados com os interesses e desejos dos outros e as imposições institucionais (122).

Estas tradições que resgatam a subjetividade do paciente e suas formas peculiares de adoecimento, tradicionalmente restritas ao campo psi, se encontram bastante expandidas para outros campos da clínica e devem, na atenção primária, servir de forma particularmente importante para ampliar o acesso em saúde mental, pois se aliam à idéia de que produzir saúde é produzir saúde mental e também à idéia de que todo processo de adoecimento tem um componente de sofrimento psíquico (31).

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5.3.3. Acesso aos cuidados em saúde mental na atenção primária (barreiras e