• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PRIMÁRIA – FUNDAMENTOS

1.7. Hipóteses sobre os obstáculos ao avanço das ações de saúde mental na atenção

Primeiramente, pode-se levantar como hipótese que as dificuldades de inclusão da saúde mental na atenção básica esbarram em questões relacionadas ao estigma. Os profissionais consideram estes pacientes de difícil manejo, têm medo de lidar com estas questões e muitas vezes declaram, explicitamente, não querer atender esta população. O estigma pode estar presente na gestão, na clínica, nas redes sociais. É uma questão estruturante na abordagem dos transtornos mentais.

Por outro lado, de forma paradoxal, a OMS aponta que o cuidado em saúde mental no nível da atenção primária pode ser fator de redução de estigma, pelo lado do usuário, porque estes cuidados não estão associados a nenhuma condição específica de saúde na representação da população, tornando este nível de atenção mais aceitável e talvez mais acessível, para usuários e familiares (54).

Conforme já mostrado, dados do Programa “Avaliação para Melhoria da Qualidade da Estratégia Saúde da Família - AMQ” (60) indicam que 25% das equipes que responderam a esta auto-avaliação não desenvolve ações para integração das pessoas com transtornos mentais em atividades coletivas regulares. Isto poderia corroborar a hipótese de que o estigma é importante barreira no acesso aos cuidados de saúde e de saúde mental, pois as pessoas com transtornos mentais sequer são incluídas nas atividades rotineiras das equipes da atenção básica.

Uma interpretação preliminar poderia ser a de que as equipes de Saúde da Família não consideram relevantes os problemas clínicos dos pacientes com transtornos mentais e que portanto não poderiam se beneficiar das atividades desenvolvidas pelas equipes de Saúde da Família, para toda a população. A noção de que esta população precisaria de atendimento “específico” pode impedir que tenham acesso a qualquer atendimento de saúde.

Esta análise tem íntima relação com outra hipótese sobre as dificuldades de inclusão de ações de saúde mental na atenção básica, a saber, a cultura dos especialismos.

Starfield (2) diz que o imperativo tecnológico do século XX tem levado a uma tendência à especialização, com consequente inferioridade do generalista.

50

A visão de que só os especialistas podem tratar as pessoas com transtornos mentais pode se juntar a uma cultura de baixa responsabilização pelo cuidado com o outro: na esfera familiar, na esfera conjugal, na esfera social. Isto tem profundas implicações no cuidado em saúde, e sobretudo no cuidado em saúde mental (61).

Como outro fator de dificuldade, temos que as formas de adoecimento se apresentam em cenários complexos. Segundo Campos et al. (3) o complexo se define no número de variáveis envolvidas no processo, sendo necessário intervir no biológico, no subjetivo e no social. Poderíamos então dizer que as questões de saúde mental tanto definem a complexidade de muitas intervenções de saúde, como podem ser a peça-chave para seu sucesso.

Neste contexto, podemos considerar que um dos desafios seria considerar as novas formas de adoecimento da população, com forte componentes de saúde mental. Os quadros clínicos que aparecem na atenção básica muitas vezes são difusos e pouco relacionados às classificações da psiquiatria da CID 10 e DSM IV (12).

E as demandas de saúde mental muitas vezes são ouvidas queixas clínicas descoladas da produção subjetiva do paciente. A oferta de cuidado então tende a ser de pronta-entrega: consultas rápidas, pedidos de exames e medicações prescritas quase que instantaneamente. Nesta perspectiva, as demandas ficam cada vez maiores e a resolução das necessidades de saúde cada vez menores.

Do outro lado, pacientes - impacientes por cuidados demandam aos serviços um cuidado em ritmo descompassado com o dos profissionais de saúde. Escuta, acolhimento, vínculo são elementos do cuidado em saúde, e especialmente em saúde mental, que se tornam estranhos neste contexto sem pausas, que marca o processo de trabalho das equipes de saúde.

O circuito (ou a espiral) se reforça: pacientes que demandam consultas longas e respostas rápidas, equipes sobrecarregadas com demandas infinitas, que acreditam que os especialistas é que terão as soluções definitivas para os problemas de saúde da população.

Seguindo esta lógica, para resolver as questões de saúde mental que se apresentam à atenção primária, pode haver uma forte tendência à psiquiatrização dos problemas sociais e difusão de mecanismos de controle social. Um dos efeitos mais nocivos seria o efeito da seleção, da falta de respostas ao sofrimento das pessoas, de abandono (42). O que era para

51

ser cuidado em saúde, vira encaminhamento, onde o paciente está cercado de referenciamentos, mas desprovido de qualquer vínculo e sozinho em seu adoecimento.

Rotelli (42) nos alerta que se os serviços territoriais ou de comunidade não problematizam a internação ou convivem com a internação, mas não a substitui por outras formas de cuidado, este modelo seguiria reproduzindo a lógica do tradicional do sistema centrado no cuidado hospitalar.

Um dos principais desafios então, na implantação das redes de serviços de saúde e de saúde mental, seria o rompimento da lógica das hiper-especializações e do atendimento fragmentado.

Neste diagnóstico preliminar, é preciso lembrar também a baixa (ou mesmo ausente) qualificação das equipes de saúde que estão na atenção básica, para o atendimento dos casos de saúde mental. Isto tudo somado – estigma, supervalorização dos especialismos, complexidade das situações de saúde mental e baixa qualificação das equipes - pode nos dar um retrato das barreiras de acesso ao tratamento que as pessoas com transtornos mentais têm enfrentado quando buscam (ou deveriam ser buscadas) cuidados em saúde mental na atenção básica. Além é claro, dos inúmeros casos de sofrimento difuso e intenso, sem caracterização específica, mas que se apresentam, sobretudo, sob a forma de queixas somáticas, em que é exigida respostas das equipes da atenção primária.

Os fatores mencionados acima podem ter contribuído para corroborar as avaliações que indicam que houve avanços menos exitosos na ampliação dos cuidados na atenção primária, do que na expansão significativa da rede de atenção psicossocial, especialmente dos CAPS (29, 53).

53