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CAPÍTULO I – SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PRIMÁRIA – FUNDAMENTOS

1.6. Saúde mental na atenção básica: vínculo e diálogo ainda necessários

Em contextos onde há cobertura assistencial de equipes de Saúde da Família/atenção básica, este nível de atenção tende a ser o primeiro contato da população com a rede de saúde e de saúde mental. Em função de sua acessibilidade mais direta com a população, as equipes que trabalham na atenção básica estão mais propensas a ter mais contato com os pacientes que sofrem de transtornos mentais (2).

Rogers e Pilgrim (24) na revisão de estudos ingleses encontraram que 90% dos pacientes considerados como tendo problemas mentais tiveram contato com seu clínico geral na atenção primária. E ainda, estimativas sugerem que de 10,5 a 13,5% destes pacientes, considerados como tendo transtornos severos e persistentes foram cuidados na atenção primária.

Se consideramos que a integralidade deve tratar da indissociação mente-corpo, e que, “Todo problema de saúde é também - e sempre – mental e toda saúde mental é também produção de saúde” (31) concluímos que existe um componente de sofrimento associado a toda e qualquer doença e que tratar este componente subjetivo do adoecimento pode ser um importante vetor na produção de saúde.

É claro que isto não significa que as equipes de Saúde da Família devem atender a todos os casos de saúde mental, e nem mesmo que devem ter formação específica para abordagens do campo “psi”, mas que podem se qualificar de forma diferenciada, quando incluem em suas intervenções de saúde, a escuta e a vinculação com o paciente, que pode

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ser uma importante ferramenta para o cuidado em saúde. Seguindo o lema global, apoiado pela OMS, “não há saúde sem saúde mental” (45).

Artigo de revisão sobre a integração da saúde mental na atenção primária do sistema de saúde inglês (46) mostra que 20 a 25% das consultas na Inglaterra tem como única razão problemas de saúde mental. Além disto, aponta que as pessoas com doenças crônicas ou recorrentes, tradicionalmente vistas como o trabalho principal na Atenção Primária, com frequência tem taxas mais altas de problemas mentais do que a população em geral. Neste mesmo estudo, evidências sugerem também que pessoas com doenças mentais graves têm maiores taxas de morbidade e mortalidade do que a população em geral (esquizofrênicos têm taxas de mortalidade duas vezes maiores que a população geral, além de estarem mais propensos a fumar e ter uma dieta pobre).

Estudos realizados em alguns municípios brasileiros (47, 48) apontam que as queixas psíquicas estão entre as causas mais freqüentes de procura por atendimento na atenção básica. Há ainda um número significativo de pacientes com sintomas médicos inexplicáveis que consultam frequentemente a atenção primária e que muitas vezes tem problemas significativos de saúde mental (46). Isto enfatiza o papel fundamental da Atenção Primária no diagnóstico e tratamento das pessoas com transtornos mentais.

Não há estudos de prevalência de transtornos mentais de alcance nacional no Brasil mas somente estudos em alguns municípios brasileiros (49, 50). E ainda é muito pequeno o número de investigações epidemiológicas de base populacional, especialmente na área de saúde mental. Porém este cenário vem se modificando nas últimas décadas. Estudos realizados em municípios brasileiros apontam a dimensão do problema (49, 50) .

Maragno et al. (49) encontraram no conjunto da população analisada (dois bairros na periferia de São Paulo), a estimativa de prevalência de transtornos mentais comuns de 24,95% (maior prevalência entre mulheres, separados/viúvos, com menor escolaridade e menor renda). Fortes et al. (50) realizou estudo sobre a prevalência de transtornos mentais comuns no Programa Saúde da Família em Petrópolis-RJ e encontrou a prevalência de 37% para pacientes com transtornos mentais de intensidade severa (de acordo com o critério aplicado pelo PPGHC/WHO). Segundo este estudo o percentual encontrado é bastante próximo dos 38% de prevalência de transtornos mentais encontrados pelo estudo de Fortes et al. (50).

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A OMS realizou um estudo transcultural em 14 locais onde foram encontradas prevalências de transtornos mentais na atenção básica (segundo a Composite International Diagnostic Interview – CIDI – 1995) de 7,3% (China) a 52,5% (Chile). No Brasil foram encontrados 35,5% de prevalência para os transtornos mentais (51).

As altas prevalências e o fato de que a maioria dos sistemas de saúde oferta cuidados apenas na atenção primária, sem acesso (e sem necessidade) a serviços especializados, reforçam a importância de fortalecimento e expansão das ações de saúde mental na atenção básica. Além disto, estudos mostram que os fatores mais determinantes para a evolução dos transtornos mentais seriam as condições ambientais (contexto), o funcionamento social do indivíduo, o contexto familiar e a densidade e homogeneidade da rede social (51, 52). Todos estes componentes têm forte relação com a intervenção da atenção básica.

O Ministério da Saúde reconhece, desde 2004, que “os serviços de saúde mental existentes na maioria das cidades brasileiras têm se dedicado com afinco à desinstitucionalização de pacientes cronicamente asilados, ao tratamento de casos graves, às crises, etc. Uma grande parte do sofrimento psíquico menos grave continua sendo objeto do trabalho de ambulatórios e da atenção básica em qualquer uma de suas formas” (31).

Onocko Campos e Gama (53) apontam que há certo consenso de que a política nacional voltada para os CAPS tem conseguido uma maior efetividade na atenção às pessoas com transtornos mentais graves. O desafio mais premente colocado à agenda da Reforma Psiquiátrica seria ampliar o acesso das pessoas com transtornos mentais leves ao cuidado em saúde mental, bem como realizar uma busca ativa dos casos mais graves no território, pelas equipes de Saúde da Família (pessoas com transtornos relativos ao abuso de substâncias, pessoas que sofreram algum tipo de violência, além das tentativas de suicídio, psicoses graves entre tantas outras).

Destaca-se que a OMS (54) define seis vantagens para integrar a saúde mental na atenção primária: redução do estigma, melhora no acesso ao cuidado, redução da cronificação e melhora na integração social; proteção dos direitos humanos dos pacientes; melhores resultados para pessoas com transtornos mentais tratadas na atenção primária e promoção da capacitação dos profissionais para atender saúde mental.

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Porém, a despeito de todos os argumentos em favor da inclusão de ações de saúde mental na atenção básica, e contrariamente aos princípios de integralidade e universalidade contidos desde os direitos constitucionais até as políticas de saúde mais recentes do SUS, observa-se que a atenção primária foi originalmente “seletiva”, com concentração de esforços em algumas intervenções de alto impacto para combater causas mais prevalentes (1).

E esta “seleção” atingiu de forma significativa a área da saúde mental, apesar das altas prevalências dos transtornos mentais.

Pode-se verificar que o Ministério da Saúde propõe diretrizes gerais para a inclusão das ações de saúde mental na atenção básica, como forma de ampliar o acesso aos cuidados de saúde mental. Desde 2004, adotou-se a proposta de organização do apoio matricial em saúde mental às equipes de Saúde da Família (31).

A metodologia de trabalho de apoio matricial foi proposta por Campos (55) a partir de pesquisas sobre a reforma das organizações e do processo de trabalho em saúde. O apoio matricial é entendido como: “um arranjo técnico-assistencial” que objetiva assegurar retaguarda especializada a equipes e profissionais, bem como suporte técnico-pedagógico às equipes de referência, com a construção compartilhada de diretrizes clínicas e sanitárias (56).

A proposta de construção da co-responsabilidade do cuidado em saúde mental em uma rede de atenção – primeiramente do hospital para os CAPS e dos CAPS para a atenção básica - não se dá sem dificuldades. Ao mesmo tempo em que estudos indicam que há uma percepção por parte das equipes da atenção básica de que é preciso ofertar alguma forma de atenção às pessoas com transtornos mentais, há pouca clareza das diretrizes preconizadas pelo Ministério da Saúde com relação à proposta do apoio matricial em saúde mental (8, 10, 57, 58).

Mesmo os profissionais dos CAPS - que têm como atribuição, definida pela Portaria GM n° 336/02 (30), fazer a articulação com a atenção básica - parecem não ter ainda uma maior apropriação da proposta do apoio matricial. Alguns dados demonstram que há articulação entre os CAPS e as equipes da atenção básica, porém, de forma ainda incipiente.

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O Avaliar-CAPS, programa de avaliação dos CAPS implementado desde 2006 pelo Ministério da Saúde, aponta em sua última aplicação em 2009 (59), que nos 1046 CAPS avaliados cerca de 50% realizam ações conjuntas com a atenção básica e que 41,24% realizam apoio matricial. Porém, quando analisamos a freqüência da parceria dos CAPS com a atenção básica, temos que 28% dos CAPS não realizam reuniões com a atenção básica, 11% realizam trimestralmente, 13% semestralmente e somente 21% mensalmente. Considerando que as diretrizes do Ministério da Saúde preconizam que estas reuniões sejam semanais ou quinzenais (31), estamos diante de um cenário de baixa articulação entre estes dois níveis de atenção.

Pode-se constatar então que cerca de 20% dos CAPS fazem atividades mais regulares (mensais) com a atenção básica, na linha do apoio matricial (reuniões, atendimentos conjuntos, e discussões de casos), o que ainda é muito pouco diante do potencial que há na articulação Saúde Mental e Atenção Primária.

É possível afirmar que o contexto para ampliar as ações de saúde mental junto à atenção primária se mostra bastante propício em função de haver diretrizes do Ministério da Saúde para esta área, aliado a um processo gradual e contínuo de ampliação do acesso às pessoas com transtornos mentais aos serviços substitutivos.

Além disto, há uma política nacional com diretrizes e financiamento para o apoio matricial, com maior institucionalidade. Entretanto é necessário avançar significativamente na mudança do processo de trabalho e nas práticas clínicas no território tanto das equipes da atenção básica, quanto dos profissionais de saúde mental, para garantir a atenção integral às pessoas com problemas de saúde mental.

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1.7. Hipóteses sobre os obstáculos ao avanço das ações de saúde mental na atenção