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A fala não é uma sequência de sons bem definidos, sendo a transição entre segmentos feita de forma gradual e não abruptamente (Mateus, Falé, & Freitas, 2005). Na realidade, durante a produção de fala os movimentos dos articuladores na produção dos diversos segmentos fonéticos (vogais, consoantes) sobrepõem-se no tempo e no espaço e interagem entre si. Como consequência, a configuração do tracto vocal para cada ponto, ao longo do tempo, é influenciada por mais que um segmento. Este efeito designa-se por coarticulação (Farnetani, 1999). O conceito de coarticulação foi pela primeira vez introduzido em 1933, por Menzerath e de Lacerda, mas só mais recentemente surgiram modelos e teorias que procuram clarificar este conceito. A utilização e acesso mais facilitado a técnicas experimentais (EPG, EMA, análise acústica, etc) em muito têm contribuído para um conhecimento mais completo dos fenómenos de coarticulação.

Na Tabela 2.4, identificam-se os principais articuladores envolvidos na coarticulação, os músculos responsáveis pelos movimentos articulatórios/coarticulatórios, os movimentos que geralmente se sobrepõem nos segmentos contínuos e as consequências acústicas daí resultantes (Farnetani, 1999).

MIOMOTOR ARTICULATÓRIO ACÚSTICO

Lábios

Orbicularis Oris

Risorius Arredondamento dos

lábios

Alterações de F1, F2 e F3

Língua

Genioglossus e outros músculos

intrínsecos da língua Movimento Frente /trás e alto/baixo

Alterações em F2, F1 e F3

Velo Relaxamento do Levator Palatini Abaixamento do velo

Formantes nasais e alteração formantes orais Laringe Cricoaritenoideu posterior/Interaritenoideu, Cricoaritenoideu lateral

Abdução e adução das cordas vocais

Duração acústica e periodicidade do sinal

Tabela 2. 4 - Coarticulação (Adaptado de Farnetani, 1999).

É frequente a coarticulação ser estudada em função dos diferentes articuladores envolvidos, assim fala-se em coarticulação velofaríngea, lingual, labial, mandibular e ainda do efeito conjunto da língua com a mandíbula. A coarticulação tem sido observada em todas as línguas já estudadas, podendo ser considerado um fenómeno universal. No entanto, existem diferenças muito significativas entre as várias línguas, não sendo ainda completamente claro como varia o padrão coarticulatório nas diversas línguas (Farnetani, 1999).

Em geral, durante a produção de fala podem ocorrer dois tipos de coarticulação: (1) coarticulação antecipatória (ou também referida como direita/esquerda (DE)) e (2) coarticulação carryover (esquerda/direita (ED)). A primeira só é possível se o falante conseguir olhar para a frente no tempo (look ahead model) e antecipar sons que se seguem. Este tipo de coarticulação envolve um processamento de alto nível (fonológico - fonético) uma vez que um segmento é “visualizado” antes de ser articulado. A coarticulação do tipo ED reflecte a forma como a língua, mandíbula e lábios se movem do som precedente para o som seguinte e ocorre apenas a um nível fisiológico (Dang & Honda, 2004; Dang, Honda, & Perrier, 2004).

Existem algumas teorias e modelos que têm procurado explicar os fenómenos de coarticulação. A coarticulação pode ser vista como um fenómeno de economia do discurso, como “criadora da gramática da língua” e ainda como um fenómeno de coprodução. Uma explicação aprofundada destas teorias pode ser encontrada em Farnetani (1999) e em Farnetani & Recasens (1999). Dada

a complexidade do tema apenas nos referiremos aqui a alguns tópicos decorrentes desses modelos.

1) Economia do discurso

Coarticulação no contexto da teoria da variabilidade adaptada

Do núcleo desta teoria, desenvolvida por Lindblom, fazem parte os conceitos de que (1) o papel fundamental da fala é permitir uma comunicação bem sucedida e (2) que tal como outras funções biológicas o mecanismo envolvido na produção de fala tende a poupar esforços. Neste contexto, variabilidade adaptada significa que os falantes de uma língua são capazes de adaptar a produção às exigências da situação comunicacional, ou seja, podem, em função da situação hiperarticular ou hipoarticular como forma de economia. O ouvinte saberá, nesta última situação, fazer a descodificação da informação e interpretá-la de forma correcta (top-down information). Perceptualmente, quando se passa de um discurso hiperarticulado para um discurso hipoarticulado há uma diminuição do contraste fonético e do ponto de vista da articulação há um aumento coarticulatório gradual (Lindblom citado por Farnetani (1999) e Farnetani & Recasens (1999)).

2) Coarticulação como “criadora da gramática da língua” (Creature of language grammar)

Com base na teoria da fonologia generativa clássica (Chomsky & Halle (1968) The Sound Pattern of English - SPE) faz-se uma clara distinção dos conceitos de coarticulação e de assimilação. As variações coarticulatórias seriam, à luz desta teoria, originadas a partir das propriedades físicas da fala, sendo governadas por regras universais. Se assim fosse, e de acordo com Hammarberg (1976) citado por Farnetani (1999), não se poderiam explicar as diferenças no padrão de coarticulação encontradas para diferentes línguas. Também, se a coarticulação fosse apenas um processo fisiológico puro, imposto por limitações mecânicas e de inércia do aparelho fonador, estabelecer-se-ia uma marcada dicotomia entre intenção e execução, o que teria como consequência uma incapacidade dos articuladores em executar as ordens de uma forma específica (Daniloff e Hammarberg (1973) e Hammarberg (1976) citados por Farnetani (1999) e Farnetani & Recasens (1999)). A única forma de ultrapassar esta dicotomia seria, de acordo com estes autores, assumir que a coarticulação é, ela própria, parte da componente fonológica. A função da coarticulação seria suavizar/atenuar as diferenças entre segmentos adjacentes. À luz desta explicação, a chamada coarticulação antecipatória (DE) seria sempre um processo fonológico deliberado enquanto que a coarticulação (ED) poderia ser, em parte, explicada pela inércia dos órgãos envolvidos na fala. Uma das limitações deste modelo é a incapacidade de explicar, por exemplo, efeitos extensos de coarticulação (ED) observados em estudos do tipo V-V.

3) Coarticulação como coprodução

Um dos esforços mais significativos no sentido de se estabelecer a ponte entre os aspectos cognitivos e físicos da linguagem resulta de se considerar a coarticulação como um fenómeno de coprodução (Fowler citado por Farnetani (1999) e Farnetani & Recasens (1999)).

A teoria da coprodução está relacionada com os gestos e a sua organização temporal e espacial. A sobreposição entre gestos reflecte a coordenação temporal e é expressa no modelo pela chamada fase intergestual, ou seja, o início de um gesto ocorre numa fase específica do ciclo gestual precedente. Um aumento de sobreposição gestual faz com que a duração segmental diminua e os efeitos coarticulatórios aumentem. Alterações quantitativas na sobreposição intergestual podem contribuir para diferenças a nível coarticulatório em discurso lento e rápido. De acordo com a fonologia dos gestos, as diferenças encontradas entre as diversas línguas podem ser explicadas e resultam do facto de existirem diferenças nos gestos na produção dos sons nas diferentes línguas.

Modelo DAC - Degree of Articulatory Constraints

Enquadrado na teoria da coprodução, surge o modelo DAC, que se baseia no pressuposto de que, gestos articulatórios associados a segmentos consecutivos são coproduzidos e sobrepõem-se em diferentes graus em função das suas propriedades temporo-espaciais, de factores prosódicos e ainda da velocidade do discurso (Recasens, 2002). De acordo com este modelo, a sensibilidade coarticulatória das consoantes à influência das vogais adjacentes em contexto VCV (efeitos V-C) varia inversamente com a força do efeito consonântico (efeitos C-V ) e com o grau de impedimento articulatório (DAC) para a consoante intervocálica. O modelo DAC funciona bastante bem na explicação da coarticulação lingual, em particular a nível do dorso da língua, em sequências VCV e CC.

Existe um valor DAC atribuído às consoantes (relativamente ao dorso da língua) em função do seu grau de impedimento. Assim, pode ser atribuído um DAC máximo com o valor três para consoantes alveolopalatais, palatais, velares e fricativas linguais e um valor mínimo (de um) para as bilabiais (Recasens, Pallarés & Fontdevila, 1997; Recasens, 1999; Recasens, 2002). Este modelo apesar de ter sido inicialmente utilizado na previsão coarticulatória ao nível da língua, poderá ser aplicado também ao estudo da coarticulação mandibular, tal como sugerido em Recasens (2004).

Resistência à coarticulação

Destes modelos, surge um conceito, explicado por vezes de forma diferente à luz das diferentes teorias, que está relacionado com a resistência à coarticulação. Esta noção de resistência de alguns sons a efeitos de coarticulação foi proposta por Bladon e Al-Bamerni em 1976 para explicar diferentes graus de coarticulação espacial num estudo envolvendo os alofones velarizado e não

velarizado do /l/ (clear e dark do /l/ em inglês) (Bladon e Al-Bamerni citados por Farnetani & Recasens, 1999; Recasens, 1999).

A resistência à coarticulação pode ser definida como o grau com que um segmento resiste à influência de um segmento vizinho. Graetzer (2006) refere que a resistência à coarticulação pode ser encontrada em três contextos diferentes; (1) verifica-se quando a resistência possa evitar confusão entre contrastes paradigmáticos by heightening phonetic clarity, (2) quando a força articulatória dos segmentos (strenghtening of segments) é induzida pela prosódia ou pragmática (sendo essa força articulatória definida como: “ an increase in the spacio-temporal magnitude of gestures” (Cho, 2004 citada por Graetzer, 2006) e (3) quando os segmentos são, do ponto de vista articulatório inerentemente fortes.

Este último contexto reflecte a posição de Recasens (1985), segundo o qual a resistência à coarticulação se correlaciona positivamente com (1) elevado grau de contacto entre a porção superior do dorso da língua e o palato na produção dos diferentes sons, (2) a formação de um duplo ponto de articulação como na produção de consoantes palato-alveolares e (3) grau de acoplamento entre ponta e corpo da língua. Desta maneira, a resistência à coarticulação pode variar em função da forma como um ou mais segmentos adjacentes partilham os articuladores.

Como se constatou, a coarticulação é um tema difícil e ainda não completamente explicado, no entanto, no que os autores estão de acordo é que qualquer tentativa para sintetizar fala próxima da fala natural deverá ter em atenção os fenómenos de coarticulação (Dang, Honda, & Perrier, 2004; Jesus, 1997).