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Cocina ecléctica e uma proposta de integração hispano-americana

3. JUANA MANUELA GORRITI: AS VIAGENS E OS ESPAÇOS SIMBÓLICOS

4.2 Cocina ecléctica e uma proposta de integração hispano-americana

Na mesma linha de argumentação poética sobre os espaços de “fora” da casa, arbitrariamente considerados como espaços de domínio masculino, Juana Manuela Gorriti publica, em 1890, Cocina ecléctica, que estabelece uma espécie de um jogo de sedução, convocando as mulheres a conquistarem os homens pelo estômago.

Cocina ecléctica, como o próprio título deixa transparecer, é um livro que traz uma série de receitas culinárias de todas as partes da América Latina, criando “el lenguaje de los

alimentos compartidos”, como afirma María Rosa Lojo (1999, p. 14) no prólogo. Trata-se de uma obra que conta com diversas colaborações de amigas e conhecidas de Juana Manuela.

Ainda segundo as ponderações de María Rosa Lojo (1999, p. 15), o livro caracteriza- se por ser uma

asamblea de voces femeninas invitadas a estas páginas por su común amiga Juana Manuela, que provienen, mayormente, de sus ‘tres patrias’: Argentina, Bolivia y Peru. Se trata, en general, de hijas o madres de familia que centraron sus aspiraciones en el recinto hogareño con alguna excepción: escritoras como Mercedes Cabello de Carbonera o Clorinda Matto de Turner y, del outro lado, mujeres del pueblo llano como ‘la negrita Encarnación’ (cocinera salteña), o señoras de la clausura: la peruana Sor Carmen de la Portilla [...].

A referência às três pátrias recorda-nos o fato de que Juana Manuela Gorriti viveu na Argentina, Bolívia e Peru em diferentes fases de sua vida e que as mulheres que lhe fornecem as receitas vão desde mulheres simples do povo, mães de família, religiosas, até escritoras como Mercedes Cabello e Clorinda Matto de Turner, o que deixa evidente o ecletismo da obra face à enorme, variada e diferenciada participação feminina.

A título de ilustração, vale mencionar que uma das receitas, “Conejo a la bella monjita”, enviada por uma religiosa, María Serrano, que fora amante do general Carlos Alvear (1789-1852), só foi obtida porque Juana Manuela fez uma espécie de chantagem emocional com sua autora, recordando-lhe seu antigo amor clandestino e implorando-lhe que ela lhe enviasse tal receita.

A escritura dos textos das receitas enviadas pelas colaboradoras apresenta quase sempre um caráter criativo e pessoal. Assim, cada receita tem uma história e leva, geralmente, um nome, o da sua própria informante. Podemos citar alguns exemplos, colhidos ao acaso na obra, que referendam a atribuição informal e efetiva da autoria: “El hallazgo de Elenita”, “Jigote a la Panchita”, “Embozo a la Elvirita”, “Sandwichs’ a la Pitina”, “Alcachofras a la Sarita”, “Ensalada a la Rosa Córdoba”, “Acelgas a la Noemi” etc. Desse modo, “en no pocas

oportunidades el nombre tiene su anécdota, y la receta se transfigura en relato” (LOJO, 1999, p. 17), constituindo-se como forma peculiar de discussão da condição feminina.

A gastronomia põe-se a serviço da caracterização dos costumes e cada receita converte-se num relato pessoal e instransferível que constrói a linguagem por meio de uma infinidade de vozes narrativas, com suas particularidades, com seus segredos. Alguns títulos de receitas fazem referência a personalidades da área militar, como por exemplo “Dorado a la San Martin”, “Balas del general”. Outras vezes, tais títulos vêm carregados de comicidade ou ironia por estarem relacionados a profissões masculinas, como é o caso da “Sopa teóloga”, enviada a Juana Manuela pela escritora Clorinda Matto de Turner.

A obra, reveladora de um espaço predominantemente feminino, põe em contato uma gama variada de mulheres, de histórias de vida que se tecem ao calor do fogão numa época em que as mulheres estavam praticamente condenadas ao espaço interno da casa, já que o espaço externo, como já dissemos, pertencia ao sexo masculino.

Nas considerações finais que María Rosa Lojo (1999, p. 19-20) tece a respeito do livro de gastronomia de Gorriti, a estudiosa declara que

‘Cocina ecléctica’ podría considerarse también como el último capítulo de una saga paralela a la épica que Juana Manuela fue escribiendo con su vida y en sus libros: la saga del oculto poder de las mujeres. Frágiles vírgenes o abnegadas matronas, siempre pueden más de lo que parece: conspiran, complotan, traicionan, coquetean, se vengan, matan, curan, aman al adversario político contra el mandato familiar, regeneran al marido díscolo, mueven el cielo y la tierra para buscar un hijo perdido. [...]

Tras la cuchara de cada ‘sacerdotisa doméstica’ Juana Manuela ha imaginado una de esas soberanas absolutas, esperando su oportunidad a la orilla sempre mágica del fuego. Sus cocineras no son inofensivas. Solo están disfrazadas, y al acecho.

As receitas compõem um texto que desvela o poder oculto das mulheres que, aprisionadas a um espaço restrito, controlam a vida dos filhos, maridos, enfim, de todos aqueles que vivem na casa. De suas mãos sai o alimento que pode ser transformado em

energia para as lutas e os trabalhos diários ou, no extremo oposto, causar a morte de um marido infiel, violento, obtuso etc. Vida e morte se tecem nas mãos das “sacerdotisas domésticas” que, pela preparação dos alimentos, podem curar ou até matar, dependendo da situação.

Há três motivos pelos quais consideramos Cocina ecléctica como uma obra que referenda os espaços exteriores nos escritos de Juana Manuela Gorriti. O primeiro deles é o fato de que, apesar de o livro tratar de tópicos tão domésticos como o são as receitas de cozinha, reputadas como assuntos de mulheres e para mulheres, sua autora pretende atingir o público masculino, segundo informações que fornece no prólogo da primeira edição do livro. Aliás, esse fato é reforçado em outra obra sua, Lo íntimo, na qual a autora estabelece os seguintes parâmetros em relação à preocupação das mulheres com a fidelidade dos maridos:

Así he pensado siempre, y ahora con más convicción, pues los viejos gustamos de lo exquisito en el comer.

Pero, ¿qué mucho los viejos, si los jóvenes tanto anhelan ese agente poderoso en la vida? Dígalo la respuesta de Branthome a aquella dama de la corte que le preguntó si conocía algun filtro que tuviera la virtud de retener en casa al marido.

− Si, respondió él.

− Hablad por vida vuestra.

− Buena mesa y buena cama − concluyó aquel renomado pícaro, que tanto sabía en el arte de vivir. (LI, 1998, p. 184).

Embora colocado em boca de terceiros o que não convinha a uma mulher da época escrever ou dizer diretamente, o fato é que, para a escritora, sexo e boa comida eram essenciais para a manutenção de um casamento feliz, sendo essa uma das razões pela qual a leitura do livro seria recomendada às mulheres.

O segundo motivo que nos leva a considerar o livro gastronômico de Gorriti como uma forma representativa dos espaços exteriores diz respeito ao próprio projeto da sua autora, que é a reunião de receitas de comidas preparadas e conhecidas na América. Só esse fato já superaria qualquer programa feminino e doméstico ao qual se pretendesse filiar a obra. A

escritora objetiva e consegue reunir as receitas de vários países americanos e, com esta idéia, convoca suas amigas para o grande banquete da unidade hispano-americana. Nessa mesa virtual se sentarão, para se deliciar com as comidas da América indígena e espanhola, na mais democrática e integradora atividade humana que se possa imaginar, todos os povos do Novo Mundo. Desse modo, aparecem no livro sopas com receitas vindas de Salta, Lima, Buenos Aires e até de Paris, além de molhos de Arequipa ou Sucre e outras iguarias como patos, galinhas, doces, sorvetes, sobremesas, enfim, receitas dos pratos de cada região que descrevem os modos de se preparar as melhores iguarias do continente.

A receita do “Huevo colosal”, enviada de Lima por Emilia C. de Gayangos à escritora de Salta, serve como exemplo do que foi afirmado. Observe-se como são transmitidas as informações e o modo de preparo desse prato:

Tómese dos vejigas ya preparadas, es decir, infladas y secas, una más chica que otra. Quiébrese los huevos, separando las claras de las yemas, hasta que haya bastante de éstas para llenar la vejiga pequeña.

Llénese de yemas, y bien cerrada en su forma redonda, hágasele cocer en agua hirviente. Cuando la yema está dura, sáquesele el agua y rompiendo la vejiga, extráigase la yema en la forma que ha tomado, y se la hechará en la vejiga grande, que previamente se habrá llenado de claras.

La yema se mantiene en médio de la clara. Entonces, cerrándola, también en su forma redonda, se la hecha al agua hirviendo.

Cuando la clara haya adquirido en su cocción la dureza necesaria, se rompe la vejiga, de donde sale un huevo colosal, que en la mesa tiene hermosa vista, asentado sobre una salsa picante y con relieves de perejil y cogollos de lechuga bañados en vinagre y aceite y condimentados con especias. (CE, 1999, p. 120).

O prato em questão assume proporções de uma peça de artesanato, uma vez que se constrói como uma estrutura que imita a forma de um ovo gigante, reforçada pela cor amarela e decorada com folhas de cheiro-verde, miolos de alface e temperada com especiarias. Além da preocupação com os ingredientes da receita, há também a preocupação com a aparência do prato que deve agradar o paladar e enfeitar a mesa. Como se observa, a culinária é uma forma de arte, segundo as receitas coletadas por Gorriti.

Um dos melhores cozinheiros franceses do século XVII, Anthelme Brillat-Savarin (1755-1869), em seu livro Physiologie du goût, recopilou uma série de receitas que exaltavam somente a cozinha de sua terra. Na certa, esse autor nunca poderia ter imaginado a importância que uma simples receita de cozinha pode ter no entendimento dos povos e das próprias pessoas. A escritora Juana Manuela deve ter refletido bastante a respeito desse assunto e, mesmo que não o declare, seu livro permite “enxergar” costumes e hábitos de muitos povos por meio dos eventos e histórias que acompanham cada prato ali apresentado. A esse respeito, veja-se a receita “Helado de espuma”, de Corina Aparicio de Pacheco que a enviou de Paris para Juana Manuela Gorriti:

En los países fríos, así como en los que el invierno es riguroso −como en Bolivia y el Sur del Perú− se confecciona este delicioso helado, fácil también de obtenerse durante la estación fría en toda la provincia de Buenos Aires. Los habitantes de las estancias pueden darse el placer de saborear en su armuerzo el más exquisito de los helados.

He aquí la manera de hacerlo:

A las 5 de la mañana, llenar de leche hasta la mitad dos tarros de lata o zinc, iguales a los que usan los lecheros. Se les envuelve en cueros de carnero muy empapados en agua fuertemente sazonada con salitre, o a falta de este, sal; y colocados sobre el lomo de un caballo, se le hace trotar una legua y con el mismo trote se le trae de regreso. La leche, que se habrá tenido cuidado de tapar muy bien ajustando la cubierta del tarro, holgada en su recipiente, se sacude como el mar en borrasca, tornándose como él, espuma que sube, llenando completamente el vacío del tarro, al mismo tiempo que el hielo apoderándose de ella, acaba por paralizarla. Así, cuando después del trote continuado de dos leguas, llega donde se le espera con fuentes hondas preparadas a recibirle, quitados los tapones, dos cascadas de espuma congelada llenan los recipientes y sazonadas con azúcar y canela van a la mesa a deleitar el paladar de los gourmets, únicos catadores dignos de estos deleitosos manjares. (CE, 1999, p. 155).

Para se pôr em prática a receita transcrita, as cozinheiras, como verdadeiras artesãs, sem fornos elétricos ou a gás, freezer ou qualquer tipo de eletromésticos, precisam valer-se de expedientes extremamente singulares, já que não podiam contar com as facilidades mencionadas. Para fabricar o sorvete, Corina Aparicio Pacheco aconselha o emprego de

cavalos que deveriam carregar o leite em vasilhas bem tapadas, trotar por uma boa distância para que se produzisse a espuma, principal componente da receita, a qual se acrescentaria os demais ingredientes. Para qualquer leitor contemporâneo, a exigência de cavalos para fazer o sorvete de espuma pode parecer até cômica, entretanto, vale lembrar que as cozinheiras do século XIX não dispunham do arsenal de aparelhos elétricos e de todas as facilidades que podem ser encontradas, na atualidade, na maioria das residências, em todas as partes do mundo.

A autora da receita revela a sua procedência ─ países frios (Bolívia, sul do Peru, Buenos Aires) ─ acrescenta também que o produto deve ser servido como sobremesa, após o almoço e que se trata do “mais saboroso dos sorvetes”.

Por meio desta receita, é possível conhecer uma sobremesa típica da Bolívia, Peru e Buenos Aires, que, além de tudo, é extremamente saborosa, segundo sua autora, mas cuja confecção é bastante trabalhosa como se nota nas sugestões fornecidas por Corina Pacheco.

Deve-se salientar que as receitas desvelam o ecletismo anunciado no título da obra. Todas as etnias, todas as classes sociais, mulheres da sociedade, escravas, intelectuais, religiosas estão reunidas em torno das receitas de cozinha, que funcionam como um elemento catalisador da união dos povos que habitam as terras americanas, como deixa expresso a própria Juana Manuela, quando revela que o livro Cocina ecléctica é um dos seus preferidos, pois “[...] de todo cuánto he escrito, nada estimo como el libro que ofrezco al público dado al delicado comer” (LI, 1998, p. 183).

O terceiro motivo para se considerar o livro de receitas como difusor dos espaços exteriores tem a ver com o espírito moderno, a praticidade e a aptidão comercial que Juana Manuela exibe no prólogo da obra, embora expresse algumas idéias extremamente preconceituosas em relação à mulher, como se nota nos fragmentos seguintes:

El hogar es el santuario doméstico; su ara es el fogón; su sacerdotisa y guardián natural, la mujer.

[...] tuvieron todos [Homero, Plutarco, Virgilio, Corneille, Chateaubriand, Hugo, Lamartine] a su lado, mujeres hacendosas y abnegadas que los mimaron, y fortificaron su mente con suculentos bocados, fruto de la ciencia más conveniente a la mujer. (CE, 1999, p. 25).

O emprego de imagens que Juana Manuela não poderia julgar como sinceras ─ a da mulher como “sacerdotisa” e “guardiã” do fogão e a tarefa da cozinha como “a ciência mais conveniente à mulher” ─ reforça a sujeição da mulher a sua casa, ao seu lar. A própria história de vida de Juana Manuela contradiz essas imagens, que só são adotadas para agradar às leitoras e, possivelmente, aumentar o comércio do livro. Ainda que a escritora saltenha sempre tenha se preocupado com questões que envolvem o universo feminino, seja a precursora da escritura feminina em seu país, a sua aptidão comercial também sempre se fez presente em todos os seus assuntos, principalmente naqueles relacionados ao seu trabalho de escritora.

No referido prólogo, a escritora veste uma máscara de ingenuidade, demonstrando estar convicta do ditado de Brantôme2 que aconselha a mulher a segurar o marido pelo estômago, omitindo pudicamente a outra parte do ditado que aconselha também segurá-lo “pela cama”. O ditado completo aparece em sua última obra Lo íntimo, como já comentamos. Além desses fatores, a escritora faz uma série de afirmações que exaltam a importância da mulher na cozinha, nas quais possivelmente não acreditasse, como podemos observar no fragmento que transcrevemos a seguir:

Ávida de otras regiones, arrojéme a los libros, y vivi en Homero, en Plutarco, en Virgilio, y en toda esa pléyade de la antigüedad, y después en Corneille, Racine; y más tarde, aun en Chateaubriand, Hugo, Lamartine; sin pensar que esos ínclitos genios fueron tales, porque − excepción hecha al primero − tuvieron todos, a su lado, mujeres hacendosas y abnegadas que los

2 Brantôme, cujo nome é Pierre de Bourdeville (1535-1614), foi um escritor francês responsável por descrever a

vida de uma série de personalidades históricas da França. Dentre sua vasta produção literária, destaca-se Vies des dames galantes, Vies des dames ilustres, Vies des homes ilustres et des grands capitaines. Suas obras constituem a mais vasta galeria de retratos de homens e mulheres ilustres que fizeram parte da história da França.

mimaron, y fortificaron su mente com suculentos bocados, fruto de la ciencia más conveniente a la mujer. (CE, 1999, p. 25).

Há um flagrante paradoxo entre a mulher escritora que dá mostras de toda uma cultura literária embasada nos autores mais importantes da literatura universal e o público a que se destina o livro − as donas de casa − que por meio da atividade culinária estariam garantindo a fidelidade dos maridos, além de ser essa atividade a “ciência mais conveniente à mulher”. Nada é mais contraditório do que esta última afirmação, já que nega tudo o que Juana Manuela acreditava e deixou relatado em seus inúmeros escritos.

Primeiramente, o que deve ter motivado a escritora saltenha a escrever Cocina ecléctica foi a escolha de um assunto de interesse do público feminino. Gorriti procurou superar as expectativas de um livro de receitas culinárias através da enorme quantidade de pratos incluídos no volume e também pelas variadas formas de preparo, anedotas e histórias que acompanhavam cada receita. Paralelamente a esses fatos, a escritora faz o prólogo do livro e, por meio de uma bem articulada argumentação, que consideramos como uma jogada de marketing para promover a venda da obra, busca induzir o público feminino a acreditar que “a ciência culinária é a que mais convém à mulher”. Todos os motivos expostos são excelentes fundamentos que Juana Manuela direciona para um único fim, o de vender mais exemplares de seu livro. Ao adotar uma postura cordata e submissa aos homens, ela aproxima-se do universo de seu público-alvo, na sua maioria donas de casa que realmente acreditam que sua importância se restringe a cozinhar e cuidar da casa da melhor forma possível.

Juana Manuela procede como uma profissional das letras e do mercado, para quem não existem assuntos menores ou pouco interessantes. Seu livro reivindica também o valor das artes culinárias e das mulheres que cozinham, que são também aquelas que escrevem e que publicam. Ao fazê-lo, contribuem para conservar os cheiros e os sabores da história de

seus países, os quais sobrevivem no tempo graças a uma mulher que soube reuni-los na saborosa linguagem das receitas compartilhadas.

Embora Cocina ecléctica, por sua temática, possa ser consideradoa como uma obra que abarca somente o espaço interior, a cozinha da casa especificamente, devido à enorme quantidade de receitas enviadas por colaboradoras de várias partes da América Hispânica, revela-se como um exemplo de escritura que abrange o mundo exterior por meio da integração de povos que se produz no seu interior. Ali, a figuração de mulheres diferenciadas, por meio das receitas, constrói um diálogo de inclusão centralizado na pena daquela que recolhe e ordena o universo discursivo: Juana Manuela, a escritora. Seu livro dá direito de expressão e voz a todas as mulheres, abrindo brechas no fechado mundo masculino, para permitir o trânsito feminino e iniciar, diríamos até quase “usurpar”, um espaço que só seria conquistado a duras penas. A expressão das mulheres, que sabiam que suas palavras eram ouvidas apenas nos pátios ou na cozinha da casa, transforma-se numa obra que reúne democraticamente etnias variadas (índias, brancas, européias, “criollas”, negras), classes sociais distintas (senhoras, escravas, freiras), em torno das receitas de comidas que deram certo.

A obra Cocina ecléctica deve ser valorizada, portanto, não só por procurar estabelecer e solidificar a união dos povos da América Hispânica, mas também porque a referida obra prioriza a comunhão e o ato de compartilhar com generosidade uma receita especial, a qual poderá ser conhecida e apreciada por todos aqueles que habitam diferentes partes da América, irmanando-os sem qualquer distinção num todo indissolúvel e ilimitado que é o espaço americano.