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3. JUANA MANUELA GORRITI: AS VIAGENS E OS ESPAÇOS SIMBÓLICOS

3.3 O mapa do reconhecimento intelectual

É na capital peruana de Lima que Juana Manuela se faz visível para a cultura, para a vida social e para a vida política, apesar de ser mulher. O traçado deste último mapa, o do território da notoriedade, deve-se única e exclusivamente ao seu talento. A continuidade do mapa mencionado seguirá mesmo depois de sua morte, quando seu filho, Julio Sandoval, e seus amigos publicam o livro Lo íntimo, em 1892.

Quando estava em Lima, sua fama e prestígio literários a levaram a Buenos Aires. Desse local, a escritora realizaria diversas viagens em direção a Lima, Tucumán e Salta, mantendo sempre uma intensa atividade criadora, que se confirma pela farta produção intelectual, jamais interrompida a partir do momento em que começou a escrever.

Desse modo, Juana Manuela Gorriti desenha a cartografia de sua vida literária ligando-a a suas incessantes viagens, as quais estavam estreitamente unidas às suas experiências e sofrimentos pessoais. Essa condição a transformaria em caixa de ressonância dos acontecimentos sociais e políticos de sua época, marcada por dificuldades e transtornos para os hispano-americanos e, com certeza, nada fácil para quem assumiu solitariamente a decisão de lutar no terreno intelectual, que já era difícil para os homens e mais ainda para uma mulher no século XIX.

Quando levantamos os principais aspectos da vida de Juana Manuela Gorriti, percebemos o quanto estes estão presentes na obra da autora, ao ponto que se poderia considerar sua vida parecida com um extenso romance. Ao nos preocuparmos em traçar os

eventos principais que norteiam a vida de Juana Manuela, fomos também traçando os roteiros da sua obra literária. Tal fato deve-se à escritura peculiar produzida por Juana Manuela, pois vida e ficção imbricam-se em seus textos e se transformam em matéria narrativa. A vida real dessa mulher singular foi, sem dúvida, repleta de acontecimentos que se poderia considerar como romanescos.

Ainda que tenhamos tentado não priorizar a vida da escritora em detrimento de sua obra literária, constatamos que a riqueza de sua biografia equilibrou os dois pólos, vida e obra, que se mesclam e se misturam quase indefinidamente e que procuramos apresentar e discutir até este momento no estabelecimento de sua peculiar cartografia literária e geográfica. A metáfora de uma cartografia literária permitiu-nos traçar em cada mapa − do desenraizamento, da reconquista e do reconhecimento − um momento de sua vida e também um momento da produção de sua obra ficcional. Assim, ao longo de seus setenta e cinco anos, Juana Manuela Gorriti pôde transitar pelo período do desenraizamento, ao qual muito cedo a obrigou o exílio de sua terra natal, e continuar viajando pelos caminhos de uma América que se formava na mestiçagem, no sincretismo religioso, na mescla cultural, recolhendo material para sua farta produção literária para assim traçar a segunda carta da sua original cartografia literária.

Ao primeiro mapa, o do desenraizamento, segue-se o da reconquista. Este segundo mapa é o mais difícil e também o mais fecundo, porque representa o momento no qual se destaca uma fase de reconstrução na vida da escritora, permeada pela reconquista de uma identidade que se negava a se diluir e se apagar no anonimato do mundo feminino confinado aos muros domésticos. Sua separação de Manuel Isidoro Belzú recorta as linhas de um lento e doloroso processo. Juana Manuela já havia começado a esboçar, anos antes, o mapa de sua própria reconquista, quando publica em1845, em La Revista de Lima, seu primeiro romance.

A este triunfo agregam-se outros textos formados por contos, lendas e artigos escritos para revistas e jornais especializados de Lima, Buenos Aires, Colômbia, Espanha e França.

Dez anos mais tarde, em 1875, delineia-se a terceira e última etapa da carta geográfica de sua vida literária, marcando o período de sua consagração, de seu reconhecimento intelectual, não só pelo público-leitor de seu país, mas também pelos leitores de vários países da América.

Antes de retornar a Lima, em 1876, Gorriti publica, em dois tomos, a obra Panoramas de la vida. Trata-se de uma reunião de textos dedicados às mulheres, contos e artigos, que já haviam aparecido em semanários como El Álbum, La Alborada, Revista del Plata. Somam-se a esses textos a biografia de Belzú e um romance curto, Peregrinaciones de una alma triste.

Em 1878 é publicado Miscelâneas; colección de leyendas, juicios, pensamientos, discursos, impresiones de viaje y descripciones americanas. É um livro de recopilação de vários textos dispersos, dentre os quais se destacam alguns relatos inéditos, discursos, recordações de viagens e também ensaios.

Uma viagem a Salta, realizada em 1886, oferece à escritora o material para uma nova obra, La tierra natal, que seria publicado em Buenos Aires, dois anos mais tarde. Nessa época, Juana Manuela recebe a medalha de honra ao mérito concedida pelo governo do Peru.

Em Buenos Aires, em 1875, ela já havia recebido outra homenagem. Os intelectuais portenhos, representados pelos escritores mais importantes do momento, tais como Bartolomeu Mitre (1821-1906), José Hernández (1834-1886), Rafael Obligado (1851-1920), Marcos Sastre (1809-1887), Santiago Estrada (1845-1929), Juan María Gutiérrez (1809-1878) oferecem-lhe a Palma Literária, uma homenagem ofertada pelas figuras de maior prestígio social e literário que incluiu também um álbum de reconhecimento público, não só por sua atuação social, mas também por sua prodigiosa e farta produção literária e jornalística.

Em 1890, Gorriti publica um livro contendo receitas de cozinha de toda a América, Cocina ecléctica, e em 1892, alguns meses após sua morte, sai à luz Lo íntimo, um livro deliberadamente fragmentado, com notícias de sua infância, reflexões sobre a condição feminina, relatos, saudações, mensagens e pensamentos expressos diante da proximidade inevitável da morte.

Juana Manuela completa, dessa forma, uma cartografia literária pessoal e única, que poderia ter inspirado os movimentos de liberação feminina que se produziram no século seguinte, em outras partes do mundo, não fosse o apagamento cultural, social e político a que ficou relegada. Esse fato ocorreu não só em relação a Juana Manuela Gorriti, mas também em relação à maioria das escritoras do século XIX. Essa situação chega a um ponto extremo quando se tem notícia de que várias gerações de argentinos desconheciam a importância da escritora saltenha, ou, se sabiam da sua existência, reconheciam-na apenas como uma figura a mais na galeria das mulheres ilustres, que recebiam, como por reflexo, as glórias de seus pais ou maridos.

Nesse sentido, a presença da escritora, quase anônima, restringia-se a retratos pendurados nos corredores escolares, como uma homenagem póstuma a qual pouca atenção era dada. Faziam companhia a tais retratos as litografias de Manuelita Rosas, a filha do ditador Juan Manuel Rosas, e também a de Remedios de Escalada de San Martín, a frágil esposa do general San Martin, entre outras damas ilustres.

Juana Manuela Gorriti, como já dissemos, era filha de um homem valente, José Ignacio Gorriti, que deteve em Salta o avanço dos realistas que eram tropas espanholas enviadas pela metrópole para conter os partidários da independência e os colonos americanos que lutavam contra os realistas e faziam parte do grupo chamado de unitários. Ela era sobrinha de um religioso, Juan Ignácio Gorriti, assinante da Ata da Independência da Argentina em Tucumán. Esses dados sim eram conhecidos, mas pouca gente sabia ou se dava

conta, algum tempo depois de sua morte, de que havia existido uma romancista, uma jornalista, uma viajante incansável, que enfrentou todo tipo de preconceito de seu século na luta constante pela conquista de um espaço feminino que lhe era devido, assim como a todas as mulheres.

Foi o romance histórico de Martha Mercader, Juanamanuela mucha mujer, publicado pela primeira vez em 1980, que resgatou a romancista do século XIX, quase sempre oculta por trás de enxutas e exíguas chamadas ou informações que apareciam nos livros de história literária e, particularmente na obra Historia de la literatura Argentina (1922), de Ricardo Rojas (1882-1957), que foi durante muito tempo uma das únicas publicações que tratavam dos escritores argentinos e que servia de fonte de consulta para os estudiosos de literatura na Argentina.

A respeito das menções extremamente curtas ou da ignorância completa que as escritoras do século XIX receberam por parte dos críticos, a investigadora Bonnie K. Frederick (1995), em um texto denominado “Borrar al incluir, las mujeres em ‘La historia de la literatura Argentina’ de Ricardo Rojas”, publicado na revista literária Feminária, pergunta- se por que a lembrança das escritoras do século passado perdeu-se durante as primeiras décadas do século XX. Uma das respostas que Frederick aponta é a de que a história formal da literatura de mulheres do século XIX não foi escrita por aquelas que participavam dela, sendo tal tarefa assumida pelos homens que, por uma série de motivos, negligenciavam as escritoras e suas obras. A segunda resposta para a questão formulada surge da constatação de que o destino da literatura Argentina encontrou-se quase exclusivamente nas mãos de um único crítico, isto é, nas mãos do escritor Ricardo Rojas, primeiro professor de Literatura Argentina da Universidade de Buenos Aires, que escreveu uma obra monumental, Historia de la literatura Argentina, publicada em 1922, em três tomos.

No segundo volume, Ricardo Rojas trata das mulheres escritoras do século XIX, no capítulo intitulado “As mulheres escritoras”. Sua iniciativa seria louvável se o capítulo em questão não encerrasse uma série de controvérsias e preconceitos a respeito da escritura feminina, motivo pelo qual alguns pontos de referido capítulo merecem um exame mais detalhado.

A pesquisadora Bonnie Frederick (1995) em seu artigo discute exatamente o espaço concedido às mulheres no livro de Ricardo Rojas, concluindo que a inclusão das mulheres na obra foi muito mais o resultado de um gesto de cortesia do que o resultado de estudos sérios realizados sobre as obras das escritoras. Seus comentários e juízos críticos superficiais justificam a pouca atenção dedicada mais tarde às escritoras argentinas do século XIX.

O capítulo dedicado às escritoras deixa patente a existência de uma escritura feminina, embora não ressalte sua importância. Além disso, o historiador discriminou as mulheres ao reuni-las num capítulo à parte, tirando-as do contexto de seus pares masculinos e dando a impressão de que as mulheres não participavam das principais correntes literárias. Ao separá- las pelo sexo, deixou claro que a biografia pode ser usada para ignorar a obra de uma escritora ou de um escritor.

Como conseqüência desses fatos, a inclusão das mulheres no livro de Rojas acabou se convertendo num mecanismo eficaz para distanciar possíveis leitores, funcionando mais como instrumento de exclusão do campo histórico-literário das figuras femininas. Dessa maneira, Ricardo Rojas apagou a memória das mulheres escritoras quando as incluiu em sua Historia de la literatura Argentina.

Frederick, nas conclusões apresentadas em seu artigo acima mencionado, assinala que é duvidoso o fato de que Ricardo Rojas houvesse, deliberadamente, desejado marginalizar as escritoras, mas é fato que a sua inclusão e os arrazoados críticos emitidos por ele a respeito dos livros de autoria feminina foram responsáveis pela eliminação das obras das mulheres do

cânone literário. Dessa forma, pode-se entender a ignorância que imperou por muitos anos nos meios acadêmicos a respeito da existência das escritoras do século XIX e, dentre elas, aquela que poderíamos considerar como a mais importante, Juana Manuela Gorriti.

Acreditamos na hipótese que essa escritora sofreu um processo de apagamento e esquecimento, possivelmente em decorrência de sua atuação, que sempre revindicou, com profissionalismo e audácia, a liberdade em todos os níveis, político, social, étnico e econômico. O apagamento e o esquecimento mencionados tornaram-se uma forma sutil e eficaz de banimento, isto é, a marginalização da escritora no campo literário.

Evidentemente, Juana Manuela Gorriti foi, para aqueles que organizaram a história literária do século XIX, uma grande mulher e, talvez por isso mesmo, tenha sido silenciada com uma tênue presença no âmbito do saber masculino. No entanto, se ela foi esquecida e ignorada por leitores e críticos por um longo período, com a retomada de suas obras por meio da reescritura poética empreendida por Martha Mercader, é possível aos leitores contemporâneos efetuar a reavaliação dos textos de Gorriti que, seguramente, fundou e consolidou a modalidade literária que conhecemos como escritura feminina, na Argentina do século XIX.

4. OS ESPAÇOS EXTERIORES E INTERIORES EM OBRAS DE JUANA

MANUELA GORRITI

Como acercar-se da escrita feminina sem o sentimento constrangedor de algo muito antigo, muito familiar, que retorna, e a constatação de um estranho vazio que nos escapa e nos arrebata como uma aparição? Lúcia Castello Branco

[...] la figura de Juana Manuela Gorriti, mezcla absoluta de profesionalismo y exotismo, se deja atrapar por momentos como un fantasma lejano que incomoda a antiguos y modernos. Mirar esa figura desde el lugar de anfitriona y difusora cultural [es reconocer] una figura firmemente sostenida por una propuesta rotundamente americanista [...].