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Os universos femininos: os espelhos e as máscaras

5. O JOGO INTERTEXTUAL EM JUANAMANUELA MUCHA MUJER

5.3 Os universos femininos: os espelhos e as máscaras

A abordagem intertextual que Martha Mercader privilegia em seu romance possibilita a refiguração, com riqueza de detalhes, da escritora Juana Manuela Gorriti, refletida na criatura de papel engendrada pela arte − a personagem ficcional Juanamanuela. Mercader empreende a tarefa de refletir especularmente o ângulo feminino da escritora saltenha, exaltando criticamente a escritora que viveu no século XIX.

A personagem recriada pela ficção diz, faz e pensa tudo aquilo que a criatura de carne e osso, de existência real, não teve possibilidade de dizer, fazer ou pensar, já que estava limitada pela época que lhe tocou vivenciar, no meio de uma sociedade patriarcal e machista, que pouco podia oferecer à inteligência feminina, a não ser um espaço que precisou ser estendido com argúcia, perspicácia e esforço individual.

O discurso ficcional transforma-se numa imensa e harmônica máscara que reproduz e amplia os anseios da vida e a voz da escritora saltenha. O universo romanesco converte-se numa ampla e longa paráfrase da obra e da vida da escritora Juana Manuela Gorriti e,

portanto, numa “máscara totalmente identificada com a voz que fala atrás de si” (SANT’ANNA, 2003, p. 29).

Em relação à personagem Inucha, os espelhos devolvem uma imagem distorcida, refletem uma disputa de sentidos, um choque de interpretações, uma vez que a criada parodia a patroa, pleiteia seu espaço de expressão e, ao mesmo tempo, procura recuperar a humanidade perdida pela escritora de sucesso fazendo-a descer das alturas da perfeição, do pedestal ao qual havia sido içada pela opinião pública.

Inucha assume o papel de escritora, sempre orientada por Juanamanuela, que acompanha seu trabalho, faz correções, observações, críticas e é, enfim, a voz que se sobrepõe à da criada, estabelecendo-se entre ambas um diálogo diversificado por constantes convergências e divergências:

− Me copias las recetas de ‘Manjarina de mojarra a la Pschut’, ‘Balas de General’, ‘Conejo a la bella monjita’. [...] ¿Entiendes mis correcciones? ¿Estas llamaditas?

− Ajá pue.

− Y también esto, señalado con rojo, de ‘El amor de una virgen’, ¿ves?, mechándolo con estos párrafos de ‘Una visita infernal’. ¿Está claro?

− Sí pue.

− Pero ojo, su título será ‘El postrer mandato’. (JMM, 1982, p. 63).

Cuando ricibió la intimación de ‘Las Brisas del Progreso’ para que entregara el reclamado folletín, so pena de cerrar trato con otro folletinista, al rompecabezas que Inucha estaba armando bajo su dirección le faltaban casi todas las piezas. (JMM, 1982, p. 77).

Entre a personagem escritora e a personagem copista firma-se uma relação de cooperação mútua na confecção textual. Além de copiar as receitas para o livro Cocina ecléctica, Inucha colabora na escritura dos folhetins de Juanamanuela, reescrevendo e reelaborando textos mais antigos de sua patroa, como pudemos observar acima. A criada, com essa convivência estreita com a patroa, chega a adotar seu modo de se expressar, seu campo semântico:

− Le digo, deje los zapatos cambiados debajo la cama, pue. − No digas disparates.

− Y si quiere una cura más rápida, se pone lo zapato derecho en el pie izquierdo, y visoverso, como usted dice, pue.

Juanamanuela se rió. Desde que la había ascendido a secretaria, Inucha intentaba hablar en difícil. [...]

− Lo que yo le digo es que no me mezcle con sus hipo y toses. ¿Qué quiere que le cuente? ¿Que anduvimos como dos meses trotando sobre mulas? [...] (JMM, 1982, p. 69-70).

Esse diálogo transcrito ocorre depois de um passeio de Juanamanuela pelas ruas de Buenos Aires, no qual ela fere os pés por estar com um sapato muito apertado. Inucha apela para suas crendices populares para solucionar o problema. Embora Juanamanuela pareça não dar crédito ao que a criada lhe diz, logo que Inucha sai de seu quarto, ela segue as suas recomendações: “Antes de apagar la luz, colocó el zapato derecho a la izquierda y el izquierdo a la derecha” (JMM, 1982, p. 70). A tentativa de Inucha de falar difícil, expressada pelos vocábulos “visoverso” e “hipo y toses”, demonstra que a criada procura imitar a patroa e esta, a seu modo, valida as superstições da empregada, adotando-as e fazendo com que seus papéis tornem-se equivalentes. Ambas são, guardadas as devidas proporções, escritoras e mulheres, o que acaba por lhes acarretar uma situação de marginalização, agravada em Inucha pela cor da pele.

Podemos considerar como uma atitude altruísta o fato de Juanamanuela propiciar a instrução de Inucha e aceitá-la como sua colaboradora. Essa atitude metaforicamente simboliza e reforça a idéia de união que deveria abranger todas as mulheres, independentemente de fatores como cor, raça, credo religioso etc. A situação invulgar da filha de uma ex-escrava, que se equipara à patroa, ressalta as preocupações de Martha Mercader em retratar a condição feminina em geral, contra os preconceitos impostos pela sociedade.

A superposição de vozes que ocorre no romance pelo cruzamento do discurso da personagem-narradora com o discurso da empregada dá origem ao plurilingüismo, que, de acordo com Bakhtin (1993, p. 127),

introduzido no romance (quaisquer que sejam as formas de sua introdução), é ‘o discurso de outrem na linguagem de outrem’, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta da personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões. Ademais, essas duas vozes estão dialogicamente correlacionadas, como se conhecessem uma à outra (como se duas réplicas de um diálogo se conhecessem e fossem construídas sobre esse conhecimento mútuo), como se conversassem entre si. O discurso bivocal é internamente dialogizado.

No romance em análise, entrecruzam-se as vozes das personagens Juanamanuela e Inucha e também da autora do romance, Martha Mercader, que relê os textos da escritora saltenha e põe em destaque a marginalização feminina, enfatizando as atitudes de ousadia e rebeldia nas ações de enfrentamento das normas e regras impostas pela voz dominante e determinante da época.

É possível ainda flagar a personagem Juanamanuela usando as máscaras da ambigüidade, da simulação, quando no prólogo que escreve para seu livro Cocina ecléctica, recomenda às mulheres que aprimorem as virtudes domésticas da cozinha para agradar e reter os maridos no lar, fato que ela mesma contradiz ao longo do romance, pois embora fosse uma excelente cozinheira, não conseguiu manter o marido a seu lado e também não superou a traição de que foi vítima. Com certeza, nem ela mesma acreditava no conselho dado, mas não se pode negar que a recomendação serviu como propaganda para aumentar as vendas de sua obra sobre culinária.

Juanamanuela sugere também a sua amiga Mercedes Carbonera que use a máscara da simulação e do fingimento, em uma carta escrita em 21 de setembro de 1880, na qual lhe recomenda não criar inimigos, expondo em suas obras assuntos que poderiam deixá-la em má situação, e “no herir susceptibilidades, lisonjear, mentir si es necesario; derramar miel por todas partes y ni una sola gota de hiel, que se torna veneno para quien lo vierte” (JMM, 1982,

p. 288). O trecho em questão foi transcrito para o romance exatamente como se encontra na carta que a escritora saltenha enviou a Mercedes Cabello de Carbonera. A sugestão feita revela uma preocupação em não se opor frontalmente ao universo masculino, mas agir com cautela, salvaguardar-se de futuras represálias.

Para a personagem escritora e também para a personagem histórica, que assumem o mesmo ponto de vista sobre a situação da mulher no século XIX, a saída mais sensata para a conquista do espaço feminino é a diplomacia, a máscara que permita o levantamento dos problemas, e a posterior conscientização de suas leitoras.

5.4 O INCÔMODO ESPAÇO FEMININO NO ROMANCE HISTÓRICO