• Nenhum resultado encontrado

Leitura de Juana Manuela Gorriti: Juanamanuela mucha mujer, de Martha Mercader

5. O JOGO INTERTEXTUAL EM JUANAMANUELA MUCHA MUJER

5.1 Leitura de Juana Manuela Gorriti: Juanamanuela mucha mujer, de Martha Mercader

A escritora argentina Martha Mercader nasceu na cidade de La Plata, em 1926. Exerceu a docência, o jornalismo, a política, escreveu para vários meios de comunicação e publicou romances, novelas, ensaios, peças de teatro, narrativas infantis, roteiros para filmes e séries de televisão. Recebeu vários prêmios, entre eles, o Prêmio Municipal de la Ciudad de Buenos Aires, em 1981 e, nesse mesmo ano, Prêmio do Clube dos XIII, ambos pelo romance Juanamanuela mucha mujer. Esta obra conta com várias reedições na Espanha e na Argentina que, segundo dados editoriais, equivalem a mais de dez mil exemplares vendidos.

De 1973 a 2000, Martha Mercader publicou diversos romances, entre os quais se tornaram mais conhecidos do público-leitor os seguintes: Los que viven por sus manos (1973), Solamente ella (1975), Belisario en son de guerra (1984), Para ser una mujer (1997) e também livros de contos: Octubre en el espejo (1966), Un cuento de pilas y pilas de cuentos (1982), Cuentos de un dormilón (1983). Os títulos aqui elencados comprovam a fecundidade da produção artística da escritora, que ainda continua a escrever.

Em Madri, foi diretora do Colégio Maior Argentino, durante quatro anos (1984-1989) e por igual período, de 1993-1997, foi senadora nacional pela U. C. R., União Cívica Radical, partido de oposição peronista.

Em depoimento ao Jornal Página 12. Las 12 – Miradas de mujeres (MORENO, 2001, p. 1), Martha Mercader fala sobre a escritura de Juanamanuela mucha mujer e tece algumas considerações sobre o romance histórico contemporâneo nos seguintes termos:

[...] Lo que yo creo es que la historia y la ficción son cosas distintas, pero se entremezclan en distinto grado porque la historia nunca fue una ciencia exacta. Nació como literatura desde Heródoto, que cuenta una cantidad de fábulas como si fueran historia. De todas maneras, la historia busca la verdad y esa búsqueda es eterna porque los seres humanos necesitamos conocer

algunas verdades, por ejemplo, sobre nuestro pasado y si no alcanza la historia, está el mito. Los mitos pueden movilizar a los pueblos en esta época en que los conocimientos precisamente se han modificado tanto.

Martha Mercader justifica a escrita de seu romance quando afirma que história e ficção se mesclam na construção romanesca. Além disso, é fato que o romance histórico pode oferecer novas versões e revisões de personagens ou de acontecimentos passados. Determinadas personalidades históricas quer pela sua atuação, quer pelas dificuldades pelas quais passaram, atingem o estatuto de mitos, dos quais a literatura está apta a oferecer recriações e novos ângulos para sua reavaliação. O romance histórico contemporâneo apresenta também um caráter reivindicatório de figuras históricas que foram esquecidas ou menosprezadas pela história oficial.

Mercader aponta como causas da renovação do interesse pelo romance histórico na Argentina, uma demanda de mercado editorial, na década de 70. Segundo a escritora, ocorreu um “boom de la historia [que] empezó con los encargos de muchas editoriales, y sobre todo el encargo de escribir la biografia de muchas mujeres olvidadas” (MORENO, 2001, p. 2). Ainda de acordo com Mercader, quando, por exemplo, as editoras encomendavam histórias e biografias de personagens históricos que haviam sido esquecidos, ela afirma, na entrevista mencionada, que Juanamanuela mucha mujer não foi imaginada como uma exigência de mercado e que essa obra exigiu-lhe muito trabalho, principalmente no que se refere à documentação sobre a vida de Juana Manuela Gorriti em Buenos Aires e na Bolívia. Seu interesse pela personagem originou-se da leitura que fez de um verbete de dicionário que mencionava Juana Manuela Gorriti num pequeno parágrafo. Por meio de leituras posteriores, Mercader ficou sabendo que se tratava de uma mulher que tinha lutado pela organização de seu país em vários momentos e que, separada do marido boliviano, conseguiu sobreviver de seu próprio trabalho de escritora, enfrentando todo tipo de dificuldades numa sociedade

repressiva, que sempre relegava às mulheres um segundo plano, confinando-as no restrito espaço doméstico.

O romance de Mercader aborda essas questões de forma explícita, demonstrando a luta de Juana Manuela no século XIX para vencer as barreiras impostas às mulheres pela hegemonia masculina, para que pudessem atuar na sociedade com liberdade e igualdade de direitos. Juanamanuela mucha mujer custou à escritora dez anos de pesquisas e foi escrito numa época em que o romance histórico, como sempre, encontrava grande ressonância junto ao público-leitor.

Conforme demonstramos, temas como a liberação feminina, a identidade, a nacionalidade e a liberação nacional são enfocados ao longo da vasta produção literária de Juana Manuela Gorriti, logicamente a partir de uma visão própria do século XIX, na qual a estética romântica é o eixo que norteia toda a sua produção. Martha Mercader consegue, na recriação ficcional que faz da escritora saltenha, além de um ponto de vista mais firme e decidido em relação à situação da mulher no século XIX, graças aos avanços e conquistas atingidos pela luta feminina no século XX e às práticas escriturais inerentes a esse século, focalizar ângulos da vida de Gorriti que a mostram mais vital e atuante, menos heroína e mais ser humano, com inúmeras qualidades, mas com defeitos também.

O romance empreende “uma revitalização” de toda a obra de Juana Manuela Gorriti. Dessa forma, a leitura propiciada pelo romance de Mercader sobre a vida e os escritos de Gorriti reavalia a tradição e direciona novas luzes, novas interpretações sobre os textos do passado. Em termos comparatistas, Eduardo Coutinho (1995, p. 625-626), em seu artigo “Sem centro nem periferia: é possível um novo olhar no discurso teórico-crítico latino-americano?”, proporciona alguns esclarecimentos importantes a respeito desse tipo de relação intertextual. Confiramos as colocações do crítico:

Agora, contrariamente ao que ocorria antes, o texto segundo, no processo de comparação, não é mais o ‘devedor’, mas o responsável pela revitalização do primeiro, e a relação entre ambos, em vez de unidirecional, adquire sentido de reciprocidade, tornando-se em conseqüência mais rica e dinâmica. O que passa a prevalecer na leitura comparativista não é mais a relação de semelhança ou continuidade, sempre desvantajosa para o texto segundo, mas o elemento de diferenciação que este último introduz no diálogo intertextual que estabelece com o primeiro.

De acordo com as proposições de Coutinho, entendemos que o segundo texto, no caso o romance de Martha Mercader, é o responsável pela revitalização do primeiro, ou seja, de toda a obra de Juana Manuela Gorriti, introduzindo um elemento de diferenciação, ou seja, uma nova visão do lugar e das lutas da mulher no século XIX. Esse elemento de diferenciação constrói-se de acordo com o conceito bakhtiniano de interdiscursividade, segundo o qual o teórico russo afirma que existe uma mudança de ideologia produzida no interstício existente entre um texto e outro no diálogo intertextual.

O diálogo intertextual sendo uma das características centrais de todo romance, é também característica do romance histórico contemporâneo, além de outras, tais como a desmitificação de personalidades consideradas como ícones da história oficial e a dessacralização de períodos marcados por fortes crises políticas, econômicas e sociais, como bem especifica Peter Elmore (1997, p. 12):

La insistencia en desmitificar íconos patrióticos o reconsiderar períodos cruciales es, en sí misma, reveladora de una crisis de consenso: las novelas históricas contemporáneas delatan con su propia existencia que las mitologias nacionales latinoamericanas han perdido su poder de persuasión, su capacidad de convocatoria.

Elmore coloca a historiografia como suporte dialogante ou interlocutor da ficção narrativa, porque tanto a historiografia quanto a ficção histórica põem em jogo a memória e o registro do devenir de uma comunidade politicamente organizada. Considera ainda Elmore que os “momentos de fissura”, aqueles assinalados por processos dramáticos da história

hispano-americana, como é o caso do começo da experiência colonial dos séculos XV e XVI e a fundação dos estados autônomos no começo do século XIX, são os momentos em que se condensam as contradições que caracterizam a sociedade hispano-americana.

No romance Juanamanuela mucha mujer, nas posições assumidas pelas personagens, principalmente aquelas em que se coloca Juanamanuela, há um protesto contra a supremacia masculina, que revela facetas próprias do século XIX no tocante à liberdade da mulher. Veja- se, por exemplo, o paralelo estabelecido entre os direitos das mulheres e os dos homens na seguinte seqüência narrativa extraída do romance: “[...] A ustedes los hombres no los entiendo, se jactan de cuanta conquista logran hacer, las ostentan como chafalonía en vidriera, pero ¡guay de una mujer que confiese que ha vivido un romance!” (JMM, 1982, p. 92). A vantagem masculina é confirmada pelos sintagmas “se jactan” e “ostentan [las conquistas amorosas] como chafalonía en vidriera”. Esses sintagmas conotam uma mentalidade típica do século XIX e, de uma forma geral, uma mentalidade machista que ainda se faz presente em alguns segmentos da sociedade atual.

Aos homens é deferido o direito de se vangloriar de suas conquistas, exibi-las, torná- las públicas. À mulher, ao contrário, é vedado confessar suas intimidades. Se uma mulher revelasse que tinha um amante, essa revelação desencadearia maledicências das pessoas próximas e causaria também grandes transtornos para aquela que se atrevesse a desafiar os padrões de moralidade estabelecidos para a época, como deixa patente o fragmento transcrito.

A voz da protagonista do romance de Mercader levanta-se como um libelo contra a desigualdade social que impera no século XIX, principalmente contra “[...] todos los infames que no perdonan a una mujer que levante la cabeza” (JMM, 1982, p. 99).

Se a escritora saltenha só podia fazer referências indiretas à situação da mulher, atuando de modo apaziguador e até tímido, Martha Mercader expõe em Juanamanuela mucha

mujer os dramas e os problemas femininos no século XIX, como se pode conferir pelas seguintes passagens extraídas do romance:

Acá las mujeres no pueden salir solas (¡vaya novedad!). Me lo tienen prohibido. (Me pueden pasar cosas, dicen.) Mis anfitriones se ponen a veces harto cargantes y en cuanto puedo les doy el esquinazo. [...] (JMM, 1982, p. 20).

Desde que comprendí el castellano, me machacaron: ‘La joven salteña debe estar siempre en la casa.’ (JMM, 1982, p. 43).

[...] Yo tenía expreso mandato de mi marido, durante su ausencia, de no asomar ni la nariz por allí. (JMM, 1982, p. 178).

Era un comienzo. Lo difícil era seguir. Para nosotras, las mujeres, no existían más que las rutas señaladas por los hombres. A menos que... (JMM, 1982, p. 243).

Nos fragmentos transcritos fica patente a situação de submissão e de fragilidade da mulher, que deveria ser obediente ao marido, não andar sozinha pelas ruas, manter-se dentro de casa e seguir os caminhos traçados pelos homens. Às mulheres, como se nota, cabia um espaço restrito, delimitado, que a ficção procura ressaltar pela oposição “fechado-aberto”, tal como o postula Iuri Lotman (1978, p. 373):

Ao lado do conceito ‘alto-baixo’, existe um traço essencial que organiza a estrutura espacial do texto e que é a oposição ‘fechado-aberto’. Sendo o espaço fechado interpretado nos textos sob a forma de diferentes imagens espaciais usuais: da casa, da cidade, da pátria, dotando-se de determinados traços: ‘natal’, ‘quente’, ‘firme’, opõe-se ao espaço ‘exterior’ aberto e aos seus traços: ‘estrangeiro’, ‘hostil’, ‘feio’. [...]

O espaço da intimidade, do lar opõe-se ao espaço exterior que representa a liberdade, o desconhecido, a aventura. Para subjugar as mulheres, os homens apontavam só as desvantagens do espaço exterior − um mundo hostil, feio, perigoso − ao passo que o espaço interno, o “dentro” da casa, representava a segurança, a felicidade, o aconchego. A casa converte-se assim num espaço de fronteira entre a mulher e o mundo circundante. A fronteira, para Iuri Lotman (1978, p. 373), divide

todo o espaço do texto em dois subespaços, que não se tornam a dividir mutuamente. A sua propriedade fundamental é a impenetrabilidade. [...] a fronteira que divide um espaço em duas partes deve ser impenetrável e a estrutura interna de cada subespaço diferente.

Desse modo, como assinala Lotman, a marca principal da fronteira é a sua impenetrabilidade. Em Juanamanuela mucha mujer, observamos que a personagem protagonista procura sempre romper essa fronteira da casa e suas dependências, para alcançar o espaço exterior e a liberdade. O trecho abaixo confirma a determinação da personagem de não se intimidar e enfrentar os obstáculos criados pelo sexo oposto para manter a posição de superioridade sobre as mulheres: “[...] Yo no seré pulsuda, no seré de armas llevar, y sin embargo ya aprendí que la vida es lucha, soy una litigante dispuesta [...] a conquistar o reconquistar no sé que derechos ante un tribunal que desconozco” (JMM, 1982, p. 129). Pelo emprego de vocábulos como “litigante”, “direitos”, “tribunal”, cujo campo semântico centra- se na jurisprudência, a personagem-narradora manifesta a sua preocupação com o poder e a força do status quo masculino vigente no século XIX.

Abraçando um discurso pacifista − “no seré de armas llevar” − a personagem Juanamanuela expõe sua posição e sua intenção de não se opor frontalmente ao padrões e normas impostas pela sociedade machista do século XIX, mas ao mesmo tempo, por meio da conjunção adversativa − “sin embargo” − deixa expresso que seu propósito é lutar pela conquista/reconquista dos direitos da mulher na sociedade.

A mulher faz parte de um universo de minorias, como nos deixa entrever o narrador na seguinte passagem do romance:

[...] mientras ella [Inucha], a una edad en que la gente ya no va a la escuela, en un país donde ni los negros, mulatos, zambos, pardos y cholos tampoco van, las negras, mulatas, zambas, pardas y cholas, menos que menos, y había adquirido el arte de escribir bonito, incluso florido, desde la primera sentada. (JMM, 1982, p. 150).

Em Juanamanuela mucha mujer, a personagem Inucha, filha de uma ex-escrava da família de Juanamanuela, vive na casa da família Gorriti, efetuando trabalhos domésticos e é uma exceção nessa sociedade na qual a escrita é também um privilégio masculino. Poucas eram as mulheres que tinham acesso a tal privilégio e a empregada de Juanamanuela só aprendeu a escrever por bondade e incentivo da família Gorriti e também da personagem Juanamanuela, que precisa de seu trabalho de copista para dar conta do enorme acúmulo de textos que necessita entregar para publicações em jornais, revistas e editoras. Ainda que ambas personagens levem uma certa vantagem pelo fato de terem acesso à escrita, a situação de marginalização perdura porque as duas eram mulheres numa época em que, como afirma a escritora Juana Manuela Gorriti (1988, p.198) em Lo íntimo, “nada hay más despiadado para una mujer, como su sexo”. Diante dessa situação desvantajosa e opressiva, resta a opção de ir minando as imposições masculinas por meio da escritura num lento trabalho de crisálida, abrindo caminhos para que novas escritoras surgissem, ampliando os espaços da escritura feminina para esta pudesse florescer, revelar-se e se afirmar em todo seu esplendor nos séculos seguintes.