• Nenhum resultado encontrado

COEXISTÊNCIA

No documento DE SÃO PAULO (páginas 50-56)

DA INGENUIDADE

Movida por um projeto de desenvolvimento único e supostamente universal, desde sempre baseado na rentável exploração de corpos, culturas e terras alheias, a atitude colonizadora costuma justificar suas ações a partir da ideia de solidariedade, apoiando-se em discursos que pressupõem o valor exemplar de seus modelos comportamentais, sociais, políticos e econômicos. Aos múltiplos povos situados do outro lado da linha, reduzidos de sujeitos a objetos, caberia o silêncio, a submissão e a reprodução do modelo ocidental. Aos comportamentos diversos, penas como o extermínio e outros tipos de violência.

Com a intenção de interpretar e analisar essa persistente e violenta ordem colonial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos desenvolveu o conceito de pensamento abissal, associado à criação artificial de abismos entre as nações autointituladas modernas e as populações que a elas interessa colonizar. “A humanidade moderna não se constitui sem uma subumanidade moderna”2, sintetiza o autor, em referência à divisão, a partir de então imposta, entre Norte e Sul global – sem desconsiderar, evidentemente, os abismos e as violências reproduzidos nos domínios de cada hemisfério.

Também sobre a atitude colonizadora, a antropóloga e escritora surinamesa Gloria Wekker, radicada na Holanda desde os anos 1970, publicou, em 2016, o livro White Innocence. Deixando em segundo plano discussões sobre culpa e inocência, a autora problematiza a ingenuidade como traço marcante à sociedade holandesa e à Europa Ocidental. Ingenuidade que abrangeria tanto a autoimagem do continente, ilusoriamente homogêneo, branco e cristão, quanto o seu passado-presente imperialista e colonial. “A reivindicação por ingenuidade, entretanto, é uma espada de dois gumes: contém o não saber, mas também o não querer saber”3, afirma Wekker, que nos acompanha, assim como Boaventura, em algumas reflexões a partir da trajetória do artista suíço Milo Rau.

II

Nome emergente da cena teatral europeia, Milo Rau nasceu em 1977, em Berna.

Filho do bem estar social europeu, teve a infância marcada pela separação dos pais, sendo criado pela mãe e por um padrasto trotskista que lhe estimulou o interesse por lutas políticas e sociais, nem sempre situadas em seu país natal.

Na juventude, estudou Sociologia, Alemão e Literatura, transitando entre as cidades de Zurique, Berlim e Paris – onde teve aulas com Pierre Bourdieu.

Outro de seus professores editava o suplemento cultural de um jornal diário em Zurique, e foi quem lhe abriu as portas para a reportagem e a crítica. Aos 23 anos, Rau se mudou para Berlim, atuando como correspondente da publicação.

Foi a essa altura, já na década de 2000, que Rau iniciou sua trajetória como diretor de teatro, estimulado por um contexto favorável a oportunidades e financiamentos para atividades culturais. Conciliou as duas carreiras por

1 Ver: PERRENOUD, 2010.

2 SANTOS, 2007, p. 76.

3 Tradução livre do inglês:

“The claim of innocence, however, is a double-edged sword: it contains not-knowing, but also not

2016, p. 17).

Daniel Toledo é ator, dramaturgo, professor, pesquisador e crítico em artes cênicas, performance e artes visuais. Mestre em Sociologia pela UFMG, desenvolve pesquisa sobre participação e descolonização na arte contemporânea.

algum tempo, até que optou pelo teatro, decidido a realizar obras originais. Perto dos 30 anos, em 2007, fundou o International Institute of Political Murder (IIPM)4, com sedes na Suíça e na Alemanha. Com dezoito projetos realizados, a produtora tem se engajado em longos processos de pesquisa sociológica, jornalística e historiográfica, originando espetáculos, filmes e performances coletivas de apelo documental, nas quais repetições, duplicações e imitações poéticas surgem como formas de acessar a realidade.

Entre os principais projetos realizados pelo IIPM, figura Tribunal Congo (2015), trabalho que se apropria da estrutura de um tribunal judicial para investigar as raízes políticas, sociais e principalmente econômicas de violentos conflitos armados que se estendem por mais de 20 anos na região do Congo. Para tanto, foram reunidas, em duas ocasiões, mais de 60 testemunhas e especialistas, desde vítimas dos conflitos e integrantes de exércitos rebeldes até representantes de ONGs, corporações locais e internacionais. Além dos encontros no Congo e na Alemanha, o projeto gerou um videodocumentário5 e uma publicação, assim como a demissão de dois ministros congoleses e uma comissão que segue monitorando os conflitos.

A partir de obras como Tribunal Congo , e também de outras relacionadas às lutas de povos romenos (The Last Days of the Ceausescus, 2009), palestinos (Land of Hope, 2010) e ruandeses (Hate Radio, 2011), o IIPM tem se dedicado à reconstituição de variados conflitos políticos, históricos e sociais, atentando para as suas relações com o imperialismo europeu. Ainda que alguns parceiros de dramaturgia, pesquisa e técnica integrem de modo continuado os trabalhos, é comum que novos performers sejam recrutados a cada obra, de acordo com o contexto específico a ser explorado. Se as fisionomias e epistemologias percebidas nas obras do artista se renovam a cada projeto, fenômeno semelhante acontece também entre as plateias de seus trabalhos, pouco a pouco mais frequentadas, ainda que criticamente, por povos diaspóricos e seus descendentes6.

Ao assumir, em 2018, a direção artística de um teatro público situado em Gent, na Bélgica, Rau publicou o Manifesto de Ghent7, documento no qual reúne algumas práticas realizadas em sua trajetória e propõe dez diretrizes referentes às futuras produções da instituição. Ante um contexto regional em que predominam montagens de clássicos interpretados por um corpo fixo de atores profissionais, o diretor aposta em outros caminhos.

Em A Repetição, há um momento em que o ator Johan Jeysen e uma performer não profissional, cuidadora de cães na vida real, sentam-se juntos, contando uma história. [...]

Há uma hierarquia que se mantém aparecendo e desaparecendo. [...] Quando você trabalha por alguns meses com um grupo de pessoas bastante diversificado, a percepção e as relações de poder se transformam. Esse é o motivo pelo qual os castings são tão longos. Eu quero trabalhar com pessoas que sejam inteligentes no palco, e isso não tem nada a ver com as carreiras que tiveram antes.8

Mesmo que o resultado visual das obras não traga inovações significativas em relação à produção contemporânea europeia, o que parece se mover, ali, são as estruturas e os procedimentos de criação. “Não é meu objetivo ser dogmático, mas abrir a discussão”9, afirma o artista, quem sabe em referência aos abismos e ingenuidades que o teatro, quando fechado ao mundo e sua complexidade, corre sérios riscos de reforçar.

III

Resultado de uma parceria entre o IIPM e a Schaubühne10, de Berlim, o espetáculo Compaixão. A História da Metralhadora (2016) se volta ao mesmo conflito explorado em Tribunal Congo (2015), destacando, no entanto, a atuação paliativa de ONGs europeias em território africano. Conduzida pelas atrizes Ursina Lardi e Consolate Sipérius, a obra trata de contradições e limitações de valores como compaixão, humanismo e filantropia – tradicionalmente associados à privilegiada posição europeia. Enquanto Consolate, de origem burundesa, tem uma participação discreta, com depoimentos no início e no final do espetáculo, a maior parte do tempo de cena é consumido pela ação de Ursina, atriz suíça que extensivamente revela ao público – europeu? – aspectos do que Gloria Wekker certamente entenderia como “ingenuidade branca”.

Além do franco desequilíbrio temporal entre as duas presenças, chama a atenção o fato de que Consolate permanece no palco, silenciosamente, durante toda a performance de sua companheira, e Ursina, por outro lado, deixa a cena ao terminar sua longa reflexão. Ainda que o trabalho se proponha a uma crítica sobre os vestígios de colonialidade nas relações filantrópicas entre Europa e África, o que se tem é a reprodução de semelhante hierarquia entre duas narrativas que, no fim das contas, acabam não coexistindo.

Cinco Peças Fáceis (2016), por sua vez, reconstitui um episódio traumático da história recente da Bélgica: a trajetória do pedófilo e serial killer Marc Dutroux, condenado em 2004 pelo sequestro e abuso de seis meninas, tendo quatro delas sido assassinadas. Resultado de um convite feito a Rau pelo centro de arte Campo11 também sediado em Gent, o projeto tinha como demanda inicial a escalação de atores mirins, e caberia ao diretor selecionar a história a ser contada. Interessado na força de episódios traumáticos, Rau fez sua escolha e teve como parceiros de criação sete crianças que representam, em cena, alguns personagens envolvidos no episódio – muitos deles previamente visitados pelo elenco da peça. Além de tais personagens, atores e atrizes inicialmente performam, diante do público, trechos dos testes que fizeram para integrar o elenco, assim como, ao final, disparam comentários críticos e pessoais sobre a história que acabaram de encenar.

international-institute.de 5 Disponível em: www.the-congo-tribunal.com

7 Disponível em: www.

ntgent.be/en/manifest

“In La Reprise there is a moment where the star actor Johan Leysen and a non-professional performer, a dog-sitter in real life, sit together, telling a story.

[...] There is a hierarchy that keeps appearing and

you work several months with a very mixed group of people, the perception and the power relations change.

That’s why the castings take so long. I want to work with people who are intelligent on stage, which has nothing to do with the career they

9 Tradução livre do inglês:

“It’s not my aim to be dogmatic, but to open the discussion” (idem) schaubuehne.de

Ao mesmo tempo em que chama a consciência do espectador para a falência de um estado de paz e bem-estar social que não cansa de mostrar suas fragilidades, Cinco Peças Fáceis sutilmente nos convida a rever entendimentos comuns sobre a infância, problematizando, mais uma vez, de que lado da linha se situa a ingenuidade.

12 Tradução livre do inglês:

“In Western cultures, childhood is set aside as a special period, in which the child is not seen as a full member of society yet, and society adjusts to the child, for instance, through special furniture for children [...]

or little gates at the top of stairs so the child does not fall down. In other societies, childhood is something to be overcome as fast as possible, and the model is ‘the child needs to adjust to society.”

13 Tradução livre do inglês:

“storehouse of ideas,

which is between our ears, in our hearts and minds, regarding race, based on four hundred of imperial rule”

Nas culturas ocidentais, a infância é definida como um período especial, no qual a criança não é percebida como um membro integral da sociedade, e a sociedade se ajusta à criança, por exemplo, por meio de móveis infantis [...] ou pequenos portões no topo das escadas para que a criança não caia. Em outras sociedades, a infância é algo que deve ser superado o mais rápido possível, e o modelo é que a criança se ajuste à sociedade.12

Primeira obra realizada pelo IIPM após a publicação do Manifesto de Ghent, A Repetição. História(s) do Teatro (I) (2018) apresenta estrutura semelhante à de Cinco Peças Fáceis, também trazendo breves entrevistas com o elenco no início do espetáculo e reflexões críticas, ao final. De igual modo, estão presentes o uso extensivo de equipamentos de cinema, o trânsito entre narrações, depoimentos e reconstituições dramáticas, e, ainda, aproximações entre atores, atrizes e os personagens que representam. Reunindo performers com distintas fisionomias e experiências artísticas, a montagem tal-qualmente se volta a um trauma recente da sociedade belga: neste caso, o assassinato de Ihsane Jarfi, jovem belga de ascendência marroquina, violentamente morto em 2012, aos 32 anos, aparentemente em decorrência de uma inesperada combinação entre sua etnia e sua homossexualidade.

Propondo-se à reconstituição do crime a partir da linguagem teatral, o processo de criação incluiu visitas de atores e atrizes ao julgamento dos assassinos, assim como à prisão onde agora vivem. Também figura no elenco um ator de ascendência árabe, intérprete de Jarfi, que em seu depoimento inicial reclama da visão reducionista geralmente atribuída à própria presença em palcos europeus. Mesmo assim, a montagem deixa em segundo plano a problematização de um contexto social repleto de preconceitos em relação à população muçulmana, entre os quais, conforme aponta Wekker, uma visão estanque e limitada em relação à sexualidade do outro racial. Ao ignorar aspectos obscuros de uma modernidade prometida e jamais cumprida, o que se percebe, ao final da peça, é ainda certa perplexidade em relação a mais um ato violento, com ares de homofobia e xenofobia, no seio de uma sociedade pretensamente civilizada – e já não mais do outro lado da linha, onde a violência impera, normalizada, desde os tempos das primeiras invasões coloniais.

IV

Não é fácil, decerto, falar sobre os próprios traumas, e às vezes nem mesmo trazê-los à consciência. Mas a esse propósito dedicam-se os artistas e

pesquisadores que nos acompanharam até aqui. Seja no que se refere a traumas pessoais e sociais, seja até mesmo a geopolíticos, parece ser a conscientização o primeiro passo, dos muitos recomendados, para superar abismos e ingenuidades.

No livro White Innocence, Gloria Wekker apresenta-nos o conceito de arquivo cultural, entendendo-o como um “armazém de ideias, práticas e afetos raciais, situado entre nossos ouvidos, nos nossos corações e nossas mentes, baseado em quatro séculos de regulação imperial”13. Boaventura de Sousa Santos, por sua vez, convida os leitores de sua obra a superarem o pensamento abissal a partir de conceitos como o interconhecimento e a ecologia de saberes.

REFERÊNCIAS

Joachim Bey Yakoub in conversation”. In: The Theatre Times (07

during decolonisation and the beginnings of development cooperation”. In: Revue internationale de politique de développement

Nachtktitik

abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”. In:

Revista Novos Estudos Cebrap, n. 79, p. 71-94 (nov. 2007).

White Innocence: paradoxes between colonialism and race. Durham: Duke University Press, 2016.

O pensamento pós-abissal [...] confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes, na medida em que se funda no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos e em interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer sua autonomia. A ecologia de saberes se baseia na ideia de que o conhecimento é interconhecimento.14

Na obra de Milo Rau, por fim, o que se propõe talvez seja justamente o estranhamento e a ampliação de um velho e caduco arquivo europeu, há alguns séculos tornado universal, chamando a atenção para contradições e vestígios de um passado colonial em meio a um presente dito progressista.

Parece ser impossível, afinal, pensar em progresso sem antes romper os abismos criados pela modernidade, inclusive entre o que se pode falar no teatro e que não se pode falar sequer fora dele.

No documento DE SÃO PAULO (páginas 50-56)