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DES COLONIZADORA

No documento DE SÃO PAULO (páginas 196-200)

O QUE É DESCOLONIZAÇÃO? Haverá algo como uma questão da descolonização? Uma temática passível de ser abordada por trabalhos artísticos que assim se deslocariam temporariamente de sua autonomia estética para tratar de uma demanda social urgente? Uma espécie de assunto de especialidade das ciências humanas que, vez por outra, impõe-se nas artes, contaminando-as de maneira excessiva? A arte deve apenas apresentar, mas jamais representar ou ilustrar essa espécie de temática?

Não se trata aqui de responder a essas questões comuns nos debates atuais, mas de apontar seu erro essencial: a descolonização não é uma temática, um assunto, mas sim uma condição. Ela coloca em questão não apenas a arte, mas outras tantas esferas que compõem os mundos ocidentalizados. O que é, entretanto, uma condição? “Os homens são seres condicionados. Tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência”, escrevia Hannah Arendt.1 Ora, mas “o ser humano, tal como o imaginamos, não existe”, disse certa vez Nelson Rodrigues. Sem compreender o problema da descolonização, jamais seríamos capazes de saber o que seria o humano para além das narrativas metropolitanas. O problema implica, em

POR PEDRO CESARINO

1 ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 17.

(para MITsp 2019)

outros termos, a tomada de consciência dos mundos cerceados, derrotados ou destruídos pela imposição de uma única versão do mundo e do humano.

Não se trata apenas da libertação dos povos do jugo do colonizador, mas também da percepção de outros tantos modos de existência: externos e internos aos nossos, limítrofes, inexistentes, paralelos, infinitesimais. A descolonização não é, enfim, algo que não deveria apenas interessar, mas, sim, fundamentar qualquer produção de sentido, tal como aquela que convencionamos chamar de “arte”.

A condição descolonizadora, para que seja efetivamente percebida, depende de reparação e de justiça; depende de uma repactuação que não seja imposta de maneira unilateral por alguma versão liberal do consenso, como alertava Homi Bhabha. Estamos muito longe de colher os resultados de alguma reparação possível. Ficamos ainda mais distantes agora, frente à reafirmação despudorada das políticas do Homem Branco. Essa reafirmação, entretanto, também evidencia o quanto a tomada de consciência em questão é urgente. Ela já parece apontar para uma aliança nos campos da criação e do pensamento. Estaríamos diante de uma nova partilha do sensível, como diz Jacques Rancière, ou seja, de uma nova forma de produção de subjetividade (e sua decorrente manifestação estética) que explicite paradoxos civilizatórios e que encaminhe alguma transformação do comum?

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No Brasil de 2013 em diante, fenômenos de identificação com a causa indígena já antecipavam algo na direção de tal transformação: enunciados como “Eu sou Guarani Kayowá” indicavam uma outra forma de associação com o que antes era concebido como uma questão restrita aos diretamente envolvidos no assunto. Aos poucos, começava a se alargar a zona de contágio, começava a surgir uma tomada de consciência mais ampla da condição da descolonização. O risco iminente que se apresenta às populações da floresta deverá acelerar ainda mais tal partilha. Afinal, não se trata apenas de uma ameaça às condições de existência dos “outros”, importantes certamente, porém distantes de nossos salões e universidades.

O problema é agora de todos e demanda um realinhamento dos modos de agência e de enunciação.

Estamos agora (mas quem seria o sujeito de tal proposição? Qual seria a sua época?) diante de uma reconfiguração radical do que se poderia chamar de campo envolvente, ou seja, tudo aquilo com que “entramos em contato”, no dizer de Arendt em sua reflexão sobre a condição humana. Mas de que maneira se estabelece um campo envolvente? Através da produção, como queria Gilbert Simondon, de um meio transindividual, da passagem Pedro Cesarino é

professor do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP e autor de Oniska - poética do xamanismo na Amazônia, entre outros livros e artigos.

A CONDIÇÃO

DES COLONIZADORA

entre limites e contornos capaz de produzir uma complexidade intensiva e afetiva. Um campo envolvente não é uma dimensão supraindividual e nem uma esfera interna, psicológica ou imaginária. Tampouco é uma dimensão intersubjetiva. Trata-se mais de uma zona de contato que redefine os limites e fundamentos do humano e de sua política implementada pelos modernos.

As discussões em torno do antropoceno e do capitaloceno estão evidentemente relacionadas com isso. Por caminhos distintos, elas repercutem “a vertiginosa sensação de incompatibilidade – senão de incompossibilidade – entre o humano e o mundo”.2 Eis algo diretamente relacionado à proliferação de monstros como Belo Monte mas, também, com desastres como os da mineradora Samarco, no Rio Doce, e da Vale, em Brumadinho, entre outros casos diversos que parecem se tornar regra e que são uma extensão do processo colonial no auge do capitalismo planetário.

Contudo, essa hibridização generalizada se sobrepõe a relações alternativas entre humano e mundo que já foram praticadas e pensadas por outras pessoas e por outros critérios. Como trazê-los para o debate e para a ação?

O problema da descolonização, a sua condição, é apenas parcialmente um problema social ou humano, que nada teria a ver com aquilo que o cerca e que o excede, tal como a “natureza” ou o “mundo animal”. Se a violência colonizadora produz uma aniquilação de outros campos envolventes, então podemos conceber também que tal processo arrasta e deixa de lado distintas formas de produzir limites e conexões – todas elas agora ameaçadas, quando a existência de um campo tão complexo como a Floresta Amazônica é posto em risco. Em A Queda do Céu,3 obra já nascida clássica, o pensador Davi Kopenawa mostra como a constituição virtual disso que chamamos de

“floresta”, toda marcada pela proliferação dos magníficos e infinitos xapiri que transitam entre espelhos celestes e as casas-corpos dos xamãs, coloca-se atenta à destruição causada pelos devoradores de minérios. O conhecimento derivado dessa conexão entre humanos e outras formas de existência (que mal traduzimos por “espíritos”) bem produziria a libertação acima almejada.

Entretanto, para além das parcerias que, nesses primeiros anos do século XXI, começam aos poucos a se consolidar, o pensamento da floresta tem apontado para um horizonte catastrófico.

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A condição descolonizadora se estende também para as reconfigurações do desejo e dos corpos, para as novas políticas de gênero que reagem ao falogocentrismo e às reafirmações do recalque. Ainda que voltadas para uma dimensão humana, essas políticas não deixam de descentrá-la e de produzir novos campos envolventes, ou seja, novas formas de

compatibilidade entre corpos e afetos, novas capacidades que, outrora e ainda hoje, o recalque insiste em considerar como prerrogativas específicas de classes de seres (tais como homens e mulheres) definidos exclusivamente por critérios de controle. As indagações do filósofo Paul B.

Preciado sobre sua transição propiciada pelo uso intensivo de testosterona não poderiam ser mais precisas: “Que espécie de feminista me tornei hoje, uma feminista dependente de testosterona ou um corpo transgênero dependente do feminismo? Não tenho outra alternativa senão (...) aceitar o fato de que a mudança que ocorre em mim é a metamorfose de uma era.”4 As alterações daquilo com que estabelecemos contato – seja nas dimensões infinitesimais das células ou na escala dos corpos urbanos e florestais – implicam, assim, modos de ultrapassar a condição colonial e de recuperar o tempo perdido. Mas será efetivamente possível ultrapassá-la? Se constatarmos, novamente com Rancière, que o crime da desigualdade é constitutivo da fundação ocidental da democracia, qual seria o horizonte possível de ação e de pensamento? Mas se imaginarmos a possibilidade de outras políticas, muitas delas pensadas e praticadas há milênios, então outras perspectivas poderão surgir, ainda que instauradas nas ruínas do capitalismo.

Não se trata, entretanto, apenas de imaginar outras políticas e sim de reconhecer que muitas delas sempre estiveram aí, embora não tenham sido bem compreendidas. Afinal, antes da atual imposição da velha narrativa bíblica em chave neopopulista, grandes narrativas acadêmicas e sociais já haviam dado sinais de falência. A sensação é de perplexidade, pois o momento da abertura para multiplicidade de vozes e falas que, desviadas do risco essencialista, querem se ver livres do crivo da mediação e da imposição de uma enunciação unilateral, coincide paradoxalmente com a reafirmação do mais arcaico criacionismo autoritário. Temos, entretanto, que insistir nos caminhos abertos e jamais esquecer de sua força, como alerta Djamila Ribeiro: “os saberes produzidos pelos indivíduos de grupos historicamente discriminados, para além de serem contra discursos importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias”.5

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A assunção da condição descolonizadora, contudo, não implica na

convergência para um mundo (aquele imposto pelo processo colonial), mas para a proliferação de mundos, cujas relações talvez pudessem ser mais bem apresentadas pelo que conhecemos por arte. Mas serão esses mundos potencialmente conectáveis ou incompatíveis? A produção de vínculos está no cerne da assunção da condição descolonizadora, embora não deva

2 DANOWSKY, Déborah;

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir?

Ensaios sobre os medos e os fins. Florianópolis: Editora Cultura e Barbárie, 2014, p. 14.

3 KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 493.

4 PRECIADO, Paul B.

Testo Junkie: Sex, Drugs and Biopolitcs in the Pharmacoponographic Era.

Nova York: The Feminist Press, 2013, p. 22.

Tradução minha.

5 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte:

Letramento: Justificando, 2017, p. 75.

No documento DE SÃO PAULO (páginas 196-200)