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Coexistência do realismo e do maravilhoso

IV. A alteridade da ficção nas obras O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, O Meu

2. Coexistência do realismo e do maravilhoso

O realismo dá sempre o tom de base ou a música de fundo à ficção do realismo mágico. Ao contrário do realismo mágico na pintura o princípio base não é operar através de um estranhamento do quotidiano mas sim, muito mais comummente, através da normalização do extra-ordinário, o que pode ser conseguido através de um ponto de vista mais externo como alguém ingénuo ou toda uma comunidade de algum modo isolada no espaço a viver num mundo fora do tempo, em que a modernidade não parece ter tocado. Talvez por isso seja mais fácil pô-los a acreditar numa dimensão mítica e mágica da vida. No entanto, como se atentou antes, os escritores ao incorrerem no realismo mágico desviam-se nitidamente do realismo, desconfigurando inclusivamente as categoriais do espaço e do tempo que seriam os referentes mais precisos numa narrativa de um realismo clássico, e adoptando diversas técnicas e temáticas associadas ao pós-modernismo.

A ocorrência do maravilhoso, como algo prodigioso e sobrenatural que intervém no real, é a primeira característica que determina a ficção do realismo mágico, originando situações que não são empiricamente explicáveis. A magia revela-se assim como a principal característica que distingue a ficção do realismo mágico dentro do amplo leque da ficção do pós-modernismo. É de acentuar que o maravilhoso é aceite, conduzindo o leitor a um mundo próximo dos contos de fadas, onde a ordem do real é subvertida e o sobrenatural convive harmoniosamente com o natural. O mundo retratado é descrito como empiricamente real, ao contrário dos mundos ficcionais alternativos que distinguem a literatura de fantasia. Mas nesse mundo aparentemente normal irrompe, de forma súbita e inexplicável, o sobrenatural, afastando, decisivamente, o leitor dos parâmetros tradicionais do realismo.

A ficção do realismo mágico constitui-se como um conjunto de narrativas pautadas pelos realia, cujo modelo referencial do mundo é próximo do leitor, mas onde se instauram os mirabilia (o maravilhoso) numa solução de complementaridade, sem criar a tensão ou própria do fantástico 148. O conceito de realismo mágico constitui assim um oxímoro, resultando da junção de dois termos que se contrapõem numa certa tensão, sem que nenhum chegue a dominar o outro, segundo alguns autores. Todavia pode-se alegar que o realismo prevalece, sendo ele o primeiro destes dois pólos a ser referido e a instaurar o ambiente que vigora ao longo das narrativas. Selma Calasans Rodrigues explicou como o sintagma do realismo mágico resulta num paradoxo, na medida em que o realismo pressupõe uma relação de verosimilhança com o referente, enquanto que, no maravilhoso, se cria uma relação de inverosimilhança 149. Maria Alzira Seixo segue a mesma linha de pensamento, ao considerar o fantástico ficcionado enquanto inverosímil, abrindo deste modo as vias do modo feérico e do modo fantástico 150.

Wendy Faris, à semelhança de Brenda Cooper quando falava num terceiro espaço criado através da junção de coordenadas 151, conclui igualmente que o real e o maravilhoso convergem e confluem num outro mundo:

magical realist narrative conjures a narrative space that we might call the "ineffable in-between". It is not the magical events themselves that are ineffable, because they are often described in detail, but the fact that they are present within an otherwise realistic narrative makes that narrative the space of the ineffable in-between, a space in which the realistic and the magical coexist. 152

148 Selma Calasans Rodrigues, O Fantástico, Editora Ática, S. Paulo, 1988, p. 59. 149 Selma Calasans Rodrigues, op. cit., p. 59.

150

Maria Alzira Seixo, Lugares da Ficção em José Saramago - O Essencial e outros ensaios, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1999, p. 84

151 cf. Brenda Cooper, Magical realism in West African fiction – seeing with a third eye, Routledge, New York, 1998.

152

Wendy B. Faris, Ordinary Enchantments: Magical Realism and the remystification of narrative, Vanderbilt University Press, Nashville, 2004, pp. 45-46.

Na intriga da primeira obra de Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, existem diversos elementos que atestam a ocorrência do sobrenatural: uma comunidade que acredita numa cobra que depois de morta ganhou asas e atravessou o céu voando; um rio que secou há cem anos sem razão aparente (embora aqui possa haver uma explicação causal bem lógica); crenças ou superstições locais, como na passagem «Só havia ali na curva do rio um moinho velho, onde, de noite, apareciam medos»153; os poderes mágicos de Branca, personagem em torno da qual mais se concentra o mágico, e o medo que a invade pelo dragão da sua colcha que sente como vivo; Pássaro Volante julgando que a sua mula se riu dele e lhe fugiu; as cigarras que não se calam à passagem de João Martins 154; o menino vedor que procura água no subsolo, «de olhos fechados, e de manitas estendidas a procurar, a procurar»155, conforme lembra José Jorge Júnior; em Manuel Gertrudes também «o renascer do tempo se fez anunciar» pois depois de comer uma sobremesa de figos, ao acordar «arrotou a rábano» 156

. As insolações lunares de Macário que o deixam a dormir durante catorze dias do mês: «Quando fica vaga mingua a gente. Claro que nuns quase não se sente essa vaguidade, mas noutros. No Macário. É um desconcerto acabado. Ou dorme ou faz bacoradas.»157. Outros acontecimentos insólitos espalham-se pela terra de Vilamaninhos sempre conotados com o anúncio de renovação, conforme chega a Primavera:

Na casa da taberneira Matilde, quando o azeite pingou no chão e a nódoa se fez verde e alastrou até à porta. Na casa de João Martins quando se perdeu um canivete e alguém disse que deveria estar debaixo da moita das maravilhas. Na casa de Branca Volante quando um filho imitou o cuco, e passados dois dias ainda o imitava. (...) Na casa de Jesuína Palha quando ela própria atirou uma pedra à chaminé da casa fechada da falecida Rosa Governa, e a pedra levou à

153 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 31. 154 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 45. 155 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 91. 156

Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 148. 157 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 122.

frente de si o último redondel do bico. Puxou o braço, olhou a mão, o punho fechado. 158

Em contrapartida, além do falar algarvio que é retratado surgem outras indicações que pontuam e orientam a leitura da narrativa com base num mundo realista, possível, ainda que recriado. Um desses pormenores reais que se pode citar é a camioneta de uma rede de transportes rodoviários: «A princípio, a camioneta era verde e cinzenta, e todos os que sabiam ler diziam chamar-se eva.» 159. Retrata-se ainda o quotidiano destas gentes do campo, mediante as suas tarefas e os seus gestos.

Na obra O Meu Mundo Não É Deste Reino, existem diversos referentes que apontam para um mundo extratextual empiricamente comprovável, que são depois contrabalançados pela ocorrência do maravilhoso. Além de topónimos reais, existem pequenos apontamentos de pormenores locais, bem como uma recriação, ainda que possivelmente de intenção humorística, de recriar o falar das ilhas. Elementos que surgem como referentes extatextuais são, por exemplo, o caso dos milhafres e das cagarras, aves tipicamente açorianas (sendo o milhafre a ave que deu o nome, numa associação errónea, ao arquipélago). Outras espécies animais e alguns alimentos típicos, que surgem em paralelo com o sentir próprio e com o modo de subsistência destes micaelenses, vão sendo elencados ao longo da narrativa. A seguinte passagem é ilustrativa dessa procura de sustentação da verosimilhança ou de um certo efeito do real através da referência a especificidades insulares:

Os chicharros, salgados para o Inverno, chegavam ali nas carroças da Ribeira Quente, e esse nome rimava com excomunhão-e-pão-quente. Vinham nas sedosas manhãs de Outubro, mês do absinto e mês do mel, com tal berraria de pregões de charro fresco, charro fresco, que toda a freguesia acudia a essa voz, de prato na mão à procura de quem vendesse mais barato: uma maquia de milho

158

Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 145. 159 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 57.

amarelo por uma dúzia dos ditos peixes, azuis como as unhas no Inverno, meia maquia de feijão grado, uma quarta de favas, meio alqueire de milho por umas três centas de cabeças das mais miúdas para salgadeira, outras vezes umas sardinhas com tripas fora para não apodrecerem no boião, outras, ainda um lombo da albacora ou cavala sortida ou atum verde como o bolor. 160

Numa aura de estranhamento mais forte que a da narrativa de Lídia Jorge, ocorrem diversos casos insólitos que vão polvilhando a narrativa: «Jesus Mendonça, todos recordavam, era apenas um pobre velho a quem uma esquisita doença retirara por completo a vontade de dormir. Não um louco, mas um insone.» 161. Existem ainda outras doenças complexas, como a de Jorge-Maria que se vê inibido de crescer pela tristeza:

(...) ele tem a tristeza encostada à carne, e a tristeza já lhe entrou nos ossos. Pois será que ela mina os seres assim por dentro, chupa-os até devorar a seiva dos ossos e dos nervos; será que a tristeza envelheceu um corpo antes mesmo de ele crescer e se tornar jovem para então poder multiplicar-se? 162

Ou o episódio do choro dos animais que comprova o desespero como uma forma de sofrimento comum a todos os seres animados, cuja exteriorização não é, afinal, um privilégio estrito aos humanos:

A seguir às vacas, choraram os cães, as ovelhas e as cabras - e assim passou a haver motivo para acreditar no fenómeno universal da adivinhação, porquanto o pranto dos animais não era senão um sinal do tempo, visto na sua grandeza futura. 163

Além dos milagres provocados com intervenção do padre Governo, multiplicam-se outros eventos prodigiosos na Ilha, bem como pragas bíblicas e acontecimentos como a chuva dos noventa e nove dias. Estes eventos são sempre encarados com alguma surpresa e assombro, mas nunca se coloca em dúvida a sua ocorrência, como acontece com a figueira

160 João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 42. 161 João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 54. 162

João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 217. 163 João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 71.

que se despe completamente da folhagem, quando se enterra o caixão com o corpo de Sara, mulher de João-Maria:

E abraçavam-se ainda, todos a chorar, ajoelhados em terra, quando, sem se esperar uma coisa assim, todas as folhas se desprenderam dos galhos da figueira e a despiram por completo com um ruído semelhante ao do vento no Inverno. Alarmados, os olhos do padre encheram-se de copiosas lágrimas brancas, pois ele concluíra que estava ocorrendo o grande milagre da sua vida: é que, dizia, as folhas da figueira não eram mais do que asas de anjos invisíveis, mandados à Terra para resgatar a alma daquela santa. 164

Este milagre que, desta vez, não é criado pelo padre Governo mas sim testemunhado e comprovado por si, vai mitificar esta mulher que se converte em Sara, a Santa. A própria figueira acaba por fenecer numa semana apenas e quando se desenterra o ataúde verifica-se o desaparecimento do corpo, afirmando-se que teria ressuscitado. Outro acontecimento- chave, com laivos autobiográficos (os olhos de João de Melo são dessa cor de mar) é o de todas as crianças terem olhos azuis:

O professor Cadete não encontrou explicação para o facto de todas as crianças da Ilha terem nascido com olhos azuis, não obstante os pais possuírem o olhar inexpressivo e sem cor dos homens nascidos em todas as partes do mundo. Elas eram talvez filhas do mar em repouso, e traziam consigo a memória da água desde a sua criação. Mesmo as copiosas chuvas de noventa e nove dias sem cessar tinham de ser interpretadas como uma espécie de ciclo sem fim, entre o nascimento e a morte. 165

No caso de Hélia Correia, em especial no seu romance Lillias Fraser, laureado com o Prémio do PEN Clube Português, em 2001, e o Prémio D. Dinis, em 2002, o mágico concentra-se mais fortemente em torno da personagem principal homónima, Lillias Fraser, à semelhança da personagem Branca de O Dia dos Prodígios, mas existem ainda outras marcas do maravilhoso: a morte surge como uma figura personificada a lavrar os campos

164

João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 160. 165 João de Melo, O Meu Mundo Não É Deste Reino, Publicações Dom Quixote, 6.ª ed., Lisboa, 1998, p. 72.

de soldados 166; quando a natureza auxilia com a luz e estrondo de uma trovoada durante a batalha167; a palavra «solteirona» escrita na neve como uma informação da própria alma que se materializa 168; a crença de que nas horas da madrugada as fadas se intrometem nas conversas provocando ilusões 169; o grito dos Távoras ouvido pelos séculos; o ranger dos ossos de Maria Aires, a morta enterrada na cozinha; as ratazanas do Convento de Mafra que parecem monstros pensantes. A recorrente alusão a bruxas e fadas é outro aspecto que não se afigurará estranha ou fantástica se for considerada como uma marca da moldura do pensamento da época, em que, na cultura céltica, se acredita nesse povo pequeno e, em terras de Portugal, a Inquisição perseguia e queimava bruxas, entendendo-se depois um cataclismo como o terramoto enquanto obra divina. Os duendes são outra criatura nomeada: «O fogo começou a crepitar e ela espreitou, julgando conhecer naquele estalido os passos de um duende.» 170.