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IV. A alteridade da ficção nas obras O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, O Meu

3. O maravilhoso como alegoria

É incontornável considerar a alegoria pois na literatura portuguesa as incursões da ficção no fantástico e no maravilhoso têm, muitas vezes, uma componente alegórica e, inclusivamente, metaficcional. Uma terceira condição apontada por Tzvetan Todorov para a sustentação do fantástico enquanto género literário é a necessidade da leitura dos elementos fantásticos patentes na narrativa não ser nem poética nem alegórica. Refere o autor que:

Existem narrativas que contêm elementos sobrenaturais sem que o leitor jamais se interrogue sobre a sua natureza, sabendo bem que não os deve tomar à letra. Se os animais falam, nenhuma dúvida nos assalta: sabemos que as palavras do texto se devem tomar noutro sentido, que se chama alegórico. Situação inversa pode ser observada na poesia. O texto poético poderia muitas vezes ser julgado

166 Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D'Água, 2.ª ed., Lisboa, 2002, p. 24. 167 Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D'Água, 2.ª ed., Lisboa, 2002, p. 35. 168 Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D'Água, 2.ª ed., Lisboa, 2002, p. 67. 169

Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D'Água, 2.ª ed., Lisboa, 2002, p. 69. 170 Hélia Correia, Lillias Fraser, Relógio D'Água, 2.ª ed., Lisboa, 2002, p. 25.

fantástico se pedíssemos à poesia para ser representativa. Mas a questão não se põe: se se diz, por exemplo, que o «eu poético» se evola nos ares, não é senão uma sequência verbal, que como tal devemos tomar, sem tentar ir além das palavras.171

Paradoxalmente, na ficção do realismo mágico as metáforas tornam-se reais, numa perfeita antítese da tese de Tzvetan Todorov, que defendia que o fantástico para ser aceite enquanto tal não podia permitir uma interpretação metafórica do que era narrado, sendo possível apenas desde que não fosse passível de uma leitura poética nem alegórica 172.

A literatura enquanto instituição afirma-se assim através do realismo mágico, na medida em que a realidade representada não aponta para o mundo exterior mas sim para o seu próprio mundo enquanto jogo que se constrói a partir da linguagem e da própria ficção. Anne Hegerfeldt considera enquanto especificidade da ficção mágico-realista a forma como o leitor é alertado, no decorrer da própria narrativa, para a necessidade de fazer uma leitura interpretativamente alegórica da narrativa que lhe é apresentada, como se pode constatar na obra de Lídia Jorge, quando o aparecimento da cobra voadora é referido como um signo prodigioso, sendo que a palavra signo remete para essa visão quase teocêntrica da realidade, isto é, um mundo que se escreve com um sentido a apreender. Conclui Anne Hegerfeldt que o leitor, tal como o texto, fica suspenso, sendo-lhe pedido textualmente, de modo bem explícito, que pense no que lê: «the text is suspended halfway between the literal and the figurative, paradoxically encouraging a metaphorical and a literal reading at once.» 173

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171 Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica, 2.ª ed., Editora Perspectiva, S. Paulo, 1994, p. 32. 172 Tzvetan Todorov, op. cit., p. 32.

173

Anne C. Hegerfeldt, Lies that tell the truth: Magic Realism seen through Contemporary Fiction from Britain, Rodopi, Amsterdam-New York, 2005, p. 236.

Manuel Frias Martins refere que a figura de estilo da alegoria é uma constante da produção literária ocidental 174, enquanto discurso que procura conduzir a outro. Esta linguagem que oculta outra pode ser entendida na obra literária como um subtexto que se oculta, de forma mais ou menos evidente, sob o texto literal da obra. De algum modo, esta ideia prende-se com a questão da mimese, no sentido em que a literatura, segundo a Poética de Aristóteles, deveria ser uma imitação da realidade. O real torna-se assim um subtexto que assiste a toda a obra literária. A leitura de um texto alegórico não será assim tão transparente como deveria ser, segundo os ditames realistas. A presença da alegoria na literatura pode fazê-la fugir aos cânones, em que as incursões no fantástico ou no maravilhoso podem remeter o leitor para um outro sentido. Por outro lado, o uso da alegoria permite plurivocalizar a obra literária, abrindo o texto a várias leituras, pois é sempre uma significação deixada em aberto, cujas interpretações são múltiplas e sempre produto mental do leitor.

Imersa na tradição greco-romana e bíblica, os fundamentos da alegoria são essencialmente religiosos, mas tornou-se intimamente associada à narrativa, em especial através do mito. Os mitos, narrativas orais essenciais também ao realismo mágico, fornecem uma explicação de factos universais, associadas ao princípio das coisas e do mundo, em que a simbologia e a interpretação desempenham um papel crucial. Na interpretação do mito, a leitura alegórica revela-se fundamental, de forma a desvendar os significados ocultos que podem ser de natureza variada, desde moral a física ou histórica.

Essa ambiguidade a nível do enunciado remete para o domínio do fantástico. Obras como O Dia dos Prodígios e A Jangada de Pedra servem de exemplo a essa ambiguidade

174

Manuel Frias Martins, «Uma Fundamentação Teórica do Conceito de ‘Alegoria Literária’», in Em Teoria (A Literatura), Ambar, Porto, 2003, p. 163.

que se institui a nível literário, através do maravilhoso. Por outro lado, o leitor é igualmente mantido na dúvida ao nível do significado, sem que se apresente nenhuma explicação para os estranhos eventos ocorridos, característica que define o realismo mágico. Neste caso específico, em que o maravilhoso intervém nas narrativas, a leitura pode tornar-se incompleta – não confundir com insuficiente –, se tomadas literalmente. Maggie Ann Bowers considera que na escrita alegórica «the plot tends to be less significant than the alternative meaning in a reader’s interpretation»175. Helena Béristain refere que para o leitor atingir esse nível mais profundo, é essencial reportar-se a um contexto de leitura. Angus Fletcher, por outro lado, argumenta que

The whole point of allegory is that it does not need to be read exegetically; it often has a literal level that makes good enough sense all by itself. But somehow this literal surface suggests a peculiar doubleness of intention, and while it can, as it were, get along without interpretation, it becomes much richer and more interesting if given interpretation.176

A alegoria pode ainda ser utilizada como arma política. Escreve Morier: «En ne désignant pas les gens par leur nom, l’allégoriste échappe aux poursuites judiciaires d’un gouvernement policier.»177. No caso especificamente português, pode-se notar que o uso da alegoria e da metáfora na produção literária persiste desde o período em que se escreveu sob a censura do regime salazarista. O fantástico era assim outra das roupagens utilizadas que permitiam aos escritores abordar ou contestar assuntos proibidos, como foi anteriormente exemplificado.

Caprettini alerta, a propósito das incursões no fantástico, que

a alegoria pode dissolver-se no meio de um enunciado fantástico cujas alusões são menos evidentes (de acordo, naturalmente, com o grau de conhecimento de

175 Maggie Ann Bowers, Magic(al) Realism, Routledge, New York, 2004, p. 27.

176Angus Fletcher, «Introduction» in Allegory – The Teory of a Symbolic Mode, 3.ª ed., Cornell University Press, 1990, p. 7.

quem lê): o alegórico, não sendo completamente explícito, concede ao fantástico (o termo é aqui usado segundo a acepção que tem em Todorov) uma existência autónoma. 178

O uso da alegoria pode ser entendido enquanto uma sobrevivência do período literário pré-revolucionário, quando a censura levava precisamente a que se procurasse passar mensagens de uma forma críptica, dizendo uma coisa de forma que o leitor pudesse perceber outra. Urbano Tavares Rodrigues chega a considerar que:

O romance metafórico ou alegórico, e tantas vezes polissémico, a que as circunstâncias de antes de Abril por vezes obrigavam, tinham a sua beleza e originalidade próprias. Escancarada a porta da escrita, houve depois de 74 uma enxurrada de prosa directa, com o seu melhor e o seu pior.179

É este o caso do realismo mágico, que vai aliar o maravilhoso e o alegórico, apresentando uma explicação coerente do mundo que é representado, ainda que as suas leis divirjam das leis naturais do mundo real-empírico em que o ser humano vive. Beatriz Berrini, tomando esta linha de pensamento, considera A Jangada de Pedra como uma narrativa alegórica e acaba por excluí-la do domínio do fantástico, optando por uma aproximação com «o maravilhoso presente no romance latino-americano contemporâneo»180. De facto, as directrizes apontadas por Tzvetan Todorov, as regras do jogo literário por ele deixadas, implicam essa leitura, mas essas indicações podem ser revistas de forma a considerar toda a nova estética literária do realismo mágico.

No romance O Dia dos Prodígios, o maravilhoso pode ser igualmente interpretado como tendo um sentido alegórico, através da cobra voadora que é a materialização de um desejo de mudança e representa a Revolução do 25 de Abril. Como se salienta logo na epígrafe do

178

G.P. Caprettini, «Alegoria», in Enciclopédia Einaudi, vol. 31 – Signo, Ruggiero Romano (dir.), Instituto Nacional Casa da Moeda, 1994, p. 274.

179 Urbano Tavares Rodrigues, «A Narrativa: seus caminhos e modelos em Portugal após a Revolução de Abril», in Tradição e Ruptura – Ensaios, Editorial Presença, Lisboa, 1994, p. 156.

180

Beatriz Berrini, «Do maravilhoso ao fabuloso alegórico», in Ler Saramago: O Romance, Caminho, Lisboa, 1998, p. 127.

romance, esta narrativa serve como uma lição ou parábola e que dura o «breve tempo de uma demonstração»181. Não se apresenta, em momento algum, uma explicação plausível que desmistifique os eventos, de forma a trazê-los à ordem do real quotidiano, mantendo o insólito e a dúvida próprias ao fantástico. Mas, por outro lado, a harmonização do extraordinário e do comum apontam para o domínio típico do realismo mágico, em que as personagens aceitam o que lhes sucede e passam a conviver com essas irrupções da suposta ordem normal das coisas. O insólito presente nestas obras não provoca, portanto, o medo, mas, sim, o espanto, a dúvida, procurando abrir os olhos ao leitor para outras possíveis dimensões da realidade.

A problemática da questão da proximidade ou coincidência entre realismo mágico e alegoria reside no facto de o primeiro procurar o não questionamento da natureza extraordinária dos eventos narrados, enquanto a alegoria obriga, claramente, a que o leitor procure uma interpretação para aquilo que lê. Autores como Lídia Jorge ou José Saramago encontram na alegoria, em estreita relação com o maravilhoso, uma estratégia retórica que coloca em causa o cânone, questionando o real e procurando intervir sobre ele: «Nessa amálgama de realidade e magia, (…) é preciso considerar, (…) que nos seus romances esse maravilhoso está ao serviço duma visão e expressão do social.»182. A alegoria, que perdura já desde a cultura greco-latina, revela-se, assim, na prosa destes autores como um modo de pensar e questionar o real, continuando a ganhar contornos novos e bem actuais.

João de Melo, na sua obra O Meu Mundo Não É Deste Reino, publicada poucos anos depois de um forte terramoto na ilha Terceira, procura apresentar a freguesia de Nossa Senhora do Rozário da Achadinha como uma alegoria possível de Portugal, inscrevendo

181 Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, Publicações Dom Quixote, 10.ª ed., 2010, p. 9. 182

Beatriz Berrini, «Do maravilhoso ao fabuloso alegórico» in Ler Saramago: O Romance, Caminho, Lisboa, 1998, p. 127.

esta narrativa no contexto literário do pós-25 de Abril onde perpassam as preocupações de «uma procura quase mítica da nossa identidade cultural» 183. A freguesia da Achadinha transfigura-se numa alegoria do país, tanto que a toponímia do lugar será depois reconvertida para Rozário: «no masculino e em grafia desactualizada, para que mais depressa se aproxime da sinonímia de Portugal» 184, sendo que Nossa Senhora do Rozário era a sua santa padroeira. Mais geralmente surgem ainda na narrativa epítetos como a Ilha e a Cidade, que surgem designados simplesmente assim e maiusculados, o que acentua a dimensão alegorizante e universalizante do espaço da narrativa, ainda que se pareça privilegiar um certo canto encomiástico à sua terra natal.

Ressalve-se, por fim, que na obra em estudo de Hélia Correia não se procede a uma alegorização que procure redimensionar o real como forma de o escalpelizar, ainda que haja uma neutralidade muito grande na descrição (ou ausência de descrição) dos espaços por onde as personagens se movem. Por outro lado, as ruínas, enquanto restos de destruição, escolhos remanescentes da derruição pós-apocalíptica do terramoto de 1755, configuram uma alegoria da própria História que é preciso reconstituir através deste romance que parece ter mais de mágico do que de histórico. Escreve Paulo Alexandre Pereira que as «ruínas reificam o eterno devir da História» 185.