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II. A Literatura Fantástica

2. O maravilhoso

Tzvetan Todorov define o fantástico como próximo de outras duas categorias, o estranho e o maravilhoso. Ao reportar-se ao romance negro (ou gótico) como um dos grandes períodos da literatura sobrenatural distingue duas tendências gerais: a do sobrenatural explicado (o estranho) e a do sobrenatural aceite (o maravilhoso) 50:

O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; desde que escolhamos uma das duas respostas, deixamos o fantástico para entrar num género vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por uma criatura que não conhece senão as leis naturais, perante um acontecimento com aparência de sobrenatural. 51

As obras que integram o conjunto da literatura fantástica devem assim empenhar-se em apresentar «como provável a realidade objectiva da manifestação meta-empírica que encena e como a falsidade de tal proposta não deverá tornar-se aparente à leitura, a narrativa fantástica procura envolvê-la em credibilidade, acentuar por todas as formas a sua verosimilhança.» 52.

O autor conclui que ainda que o estranho e o maravilhoso se cruzem com o fantástico, este não pode existir na medida em que a hesitação experimentada pelo leitor, geradora da ambiguidade da própria narrativa, só dura num momento da leitura. O estranho provoca a

49 Tzvetan Todorov, op. cit., p. 32. 50 Tzvetan Todorov, op. cit., p. 41. 51

Tzvetan Todorov, op. cit., p. 26.

ambiguidade desejada mas acaba por a dissipar, oferecendo ao leitor uma explicação racional para os eventos meta-empíricos:

esse elemento pode vir a revelar-se afinal algo de invulgar mas não impossível, resultado de várias coincidências pouco prováveis. (…) É o caso sobretudo da literatura de terror dos fins do séc. XVIII, onde a intervenção do F. passou a ser substituída por aquilo a que se chamou o «sobrenatural explicado». 53

O maravilhoso, por outro lado, não carece de nenhuma explicação, pois entrelaça-se com a realidade, sendo aceite pelo leitor como parte integrante e factual de um mundo em que as leis naturais são “flectidas” de forma a comportar novas dimensões onde tudo é possível, em que o mundo adquire uma natureza mágica.

Filipe Furtado, num estudo mais sistemático sobre o tema do fantástico, colocando a tónica na estrutura do texto, refere mesmo que o maravilhoso tem um certo efeito compensatório onde a realidade pode falhar, pois segundo ele o maravilhoso «procura ocupar um vácuo multiforme: cognitivo (explicando o mundo, as coisas e a História)» 54. Não deixa de ser sintomático o ressurgimento do romance histórico enquanto género literário em voga mas que, em autores como José Saramago e Hélia Correia, surgirá aliado ao maravilhoso na narração de acontecimentos históricos do passado nacional. Ao contrário do que acontecia com o fantástico que, ao imiscuir-se no real desestrutura a moldura das conveniências e asserções sociais e ontológicas do ser humano, o maravilhoso auxilia assim a compreensão das lacunas existentes nas versões oficiais. Cristina Robalo Cordeiro reforça a importância do realismo na construção da novela fantástica:

O estudo dos elementos de figurativização da novela autoriza-nos a partir da preeminência do mundo exterior como primeiro critério definidor do género. (...) a ancoragem no real, em mundos não apenas

53 Maria Leonor Machado de Sousa, «Fantástico» in José Augusto Cardoso Bernardes e outros (dir.), Biblos, Vol. II, Verbo, Lisboa/S. Paulo, pp. 368-369.

plausíveis, mas conhecidos e textualmente construídos por um consistente sistema de informantes constitui uma etapa primeira e obrigatória 55.

Um problema que se coloca acerca da consideração do maravilhoso é que enquanto certos autores, inclusive Tzvetan Todorov, o definem unicamente por um não questionamento dos fenómenos sobrenaturais e mágicos, outros autores consideram o maravilhoso como a esfera de acção dos seres extra-terrenos, sejam eles deuses, fadas ou espíritos benéficos. Selma Calasans Rodrigues integra-se neste segundo grupo, fazendo a distinção entre o maravilhoso cristão (com santos, anjos, etc.) e o maravilhoso pagão (que se pode encontrar na mitologia greco-latina e em Os Lusiadas) 56. A autora considera ainda momentos da história literária ocidental em que estas duas variantes do maravilhoso se contaminaram na obra de alguns autores, como é o caso de Dante Alighieri.

Tzvetan Todorov faz uma tipologia do maravilhoso, fornecendo quatro classes diferentes 57

: a) o «maravilhoso hiperbólico», em que a sobrenaturalidade reside nas dimensões fornecidas pelas narrativas. Pode-se pensar, por exemplo, na colectânea de contos de As Mil

e Uma Noites, em que esta simples unidade – a uma noite –, acrescentada às outras mil,

acaba por denotar um certo exagero; b) no «maravilhoso exótico», que se situa muito próximo do hiperbólico, narram-se acontecimentos sucedidos em regiões indicadas pelos autores como distantes, de forma a garantir que o leitor não as conheça, e por isso mesmo não duvide daquilo que lhe é contado. Tzvetan Todorov recorre, como exemplo, ao exemplo do conto de Sindbad, enquanto que, no caso português, poder-se-ía referir a

Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que procura provocar o mesmo efeito no leitor,

55 Cristina Robalo Cordeiro, «O Sujeito Fantástco: dualidade ou dualismo...» in Maria João Simões (coord.), O Fantástico, Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Coimbra, 2007, p. 44.

56 Cf. Selma Calasans Rodrigues, O Fantástico, Editora Ática, S. Paulo, 1988, pp. 54-55. 57

Cf. Tzvetan Todorov, Introdução à Literatura Fantástica, 2.ª ed., Editora Perspectiva, S. Paulo, 1994, pp. 52-54.

quando descreve animais impossíveis nas regiões orientais por ele visitadas; c) o «maravilhoso instrumental», por seu lado, relaciona-se com objectos, dispositivos criados pela mão humana, inexistentes mas realizáveis ou possíveis, como é o caso do tapete mágico. Tzvetan Todorov distingue este tipo de instrumentos de outros objectos de origem mágica, como a lâmpada de Aladino; aponta ainda, por último, d) um «maravilhoso científico» que se pode equiparar à expressão mais corrente: «ficção científica». Nesta última categoria, acontece um tratamento peculir do fantástico:

(…) o sobrenatural é explicado de uma maneira racional mas a partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece. Na época da narrativa fantástica, são as histórias onde intervém o magnetismo que se manifestam no maravilhoso científico. O magnetismo explica cientificamente acontecimentos sobrenaturais, só que o próprio magnetismo depende do sobrenatural. 58

Outra questão crucial é que o género da literatura fantástica, definido por Tzvetan Todorov, assenta fortemente na figura do demónio. Louis Vax considerara igualmente que: «Deus, a Virgem, os santos e os anjos, tal como os génios bons e as fadas boas não são seres fantásticos59.

O diabo é fantástico na mesma proporção em que o sobrenatural religioso na sua vertente positiva se revela nocivo a esse género literário. O efeito de desordem do mundo que se pretende transmitir seria anulado se os autores do género recorressem a figuras benévolas do panteão religioso. Filipe Furtado declara ainda como um requisito do fantástico a necessidade de que a fenomenologia meta-empírica utilizada seja sempre «alheia à experiência física ou psíquica do destinatário da enunciação, o que inclui a sua hipotética experiência religiosa» 60. O autor vai ainda mais longe ao proclamar que «o uso exclusivo ou predominante de elementos positivos (de índole religiosa ou não) na temática

58 Tzvetan Todorov, op. cit., p. 54. 59

Louis Vax, A Arte e a Literatura Fantásticas, Arcádia, Viseu, 1972, p. 15.

sobrenatural»61 acaba por negar o fantástico, remetendo-o, no mínimo, para o género maravilhoso. Este aspecto que pode comprometer seriamente o fantástico é na verdade o trunfo do realismo mágico na escrita de certos autores que, como é o caso de Lídia Jorge e de João de Melo, recorrem a um maravilhoso que não é nem demoníaco nem terrificante, antes remete para um maravilhoso cristão, ou pela presença de figuras religiosas, pela analogia ou alusão indirecta com estas, como através de uma subversão de temas bíblicos.

Tzvetan Todorov, ao colocar a tónica da existência do fantástico no leitor e na interpretação da sua leitura do mundo a partir da obra que tem em mãos, preconizara já essa identificação do leitor com o protagonista, na actualização de uma leitura que se pretende evitar alegórica. Por outro lado, assiste ainda a essa identificação do leitor com o fantástico, a recusa do humor e do riso. Louis Vax considera esta problemática da seguinte forma:

À primeira vista, a ironia, o humor duma parte, o fantástico doutra, excluem- se como a água e o fogo. Quando se ri duma história de terror é porque o terror se dissipa. O riso é tão fatal aos monstros e aos farsantes como a manhã é fatal à noite e aos fantasmas 62.

Para corroborar esta ideia basta invocar o provérbio popular que recita algo como "Quem ri seus males espanta". Mas apesar desta afirmação, que implica uma renúncia necessária ao humor como forma de permitir vigorar o fantástico, o autor acaba por considerar relações mais complexas e inclusive uma certa proximidade entre o riso e o medo, como acontece por exemplo com o humor negro. No realismo mágico pode-se constatar como o humor é um dos atributos deste tipo de ficção, aliado à ironia.