• Nenhum resultado encontrado

II. A Literatura Fantástica

3. O fantástico na actualidade

Na verdade, ainda que a Introdução à Literatura Fantástica de Tzvetan Todorov constitua um trabalho essencial para a compreensão desta categoria, é necessário proceder a

61

Filipe Furtado, A construção do fantástico na narrativa, p. 25.

uma actualização de várias categorias da literatura fantástica que foram entretanto desenvolvidas. O estudo do fantástico enquanto género literário, deixado por Tzvetan Todorov, deixou vários problemas, sendo o principal bem ilustrado por Christine Brooke- Rose na seguinte passagem: «the pure fantastic is not so much an evanescent genre as an evanescent element» 63.

Tzvetan Todorov, ao considerar a literatura fantástica, toma em conta apenas um corpus limitado de obras góticas ou histórias de horror, onde o estranhamento, a dúvida ou, até mesmo, o terror se instalam, de forma privilegiada, ao longo da narrativa. Considera-se que o sobrenatural tenha de ser sempre negativo ou mesmo maléfico como forma de constituir uma ameaça aos parâmetros realistas e conhecidos que confortam o protagonista e, por arrastamento, o leitor. Daí que qualquer narrativa fantástica incida sempre numa descrição atenta de um real em que tudo é como deveria ser.

Alguns autores que entretanto avançaram com novos estudos acerca da literatura fantástica consideram mesmo que o trabalho de Tzvetan Todorov se encontra ultrapassado. É o caso de Christine Brooke-Rose que afirma o seguinte acerca do autor: «(…) his theory no longer holds, and is bound therefore to apply only to the nineteenth-century texts examined, a particular genre with a short life (for the social and historical reasons he gives).»64.

Uma das grandes ameaças à sobrevivência do fantástico na literatura, se se atentar nos requisitos que Tzvetan Todorov considerou, é a do sangue-frio de um leitor cada vez menos impressionável. Ao longo dos tempos, de forma progressiva, mas mais acentuadamente no

63 Christine Brooke-Rose, A Rhetoric of the Unreal: Studies in Narrative & Structure Especially of the Fantastic, Cambridge University Press, 1986, London, p. 63.

64

Christine Brooke-Rose, A Rhetoric of the Unreal: Studies in Narrative & Structure Especially of the Fantastic, Cambridge University Press, 1986, London, p. 67.

século XX, acontece ao autor ter cada vez maior dificuldade em evocar algo fantástico de forma a impressionar o leitor:

os escritores a quem o desconhecido atrai encontram cada vez mais a dificuldade de imaginar situações em que a lógica fria e o saber do homem do século XX possam aceitar, sem uma noção de ridículo. Não se trata de fazer que o leitor acredite, mas sim de estabelecer com ele uma corrente de simpatia que altere por momentos o plano do real e faça vibrar emoções que a rotineira vida diária quase abafa. Daí, por exemplo, a procura de novas definições – que são afinal novos caminhos – do fantástico 65.

Serafina Martins considera, de forma semelhante, esta questão do tratamento do fantástico no século XX enquanto um processo de criação mais difícil ou delicado:

Se o primeiro fantástico nasce da descrença romântica da razão, o fantástico do século XX poderá ter nascido da impassibilidade moderna perante o sobrenatural, menos terrífica, mas mais perturbante do que a inquietação dos textos tradicionais (…). O grande exemplo dessa impassibilidade é, na literatura europeia, o de Kafka, mas será nos textos do chamado «realismo mágico» que melhor se depreendem as convenções do fantástico moderno (…). 66

Esta distinção entre o fantástico tradicional e o fantástico moderno assenta na hesitação do leitor face a um acontecimento insólito, meta-empírico, no decorrer de uma narrativa de moldura realista. De facto, na produção escrita contemporânea, o fantástico deixou de se caracterizar pelo medo e pela confusão sentida pela personagem (e, de preferência, pelo leitor) para dar azo a toda uma nova vertente que aposta em outros mundos possíveis, que podem ou não manter pontos de contacto com o mundo extra-literário, e podem mesmo tornar-se realidades à parte com as suas próprias regras e leis naturais.

Maria Alzira Seixo realiza um importante balanço da ficção literária produzida nos anos subsequentes ao 25 de Abril, salientando o papel decisivo da Revolução que contribuiu cultural e ideologicamente para:

65 Maria Leonor Machado de Sousa, O “horror” na literatura portuguesa, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura Portuguesa, Abril de 1979, p. 80.

66

Serafina Martins, «Fantástico» in Jacinto do Prado Coelho (dir.), Dicionário de Literatura, vol. II, Figueirinhas, Porto, 2003, pp. 332-333.

transformar a vida de cada um de nós, alterando instituições e formas de estar no mundo, componentes essas da nossa relação com a sociedade que profundamente incidem sobre o facto criativo e, no caso que agora nos interessa, literário 67.

Álvaro Manuel Machado ao tentar traçar uma linha comum na novelística contemporânea chega a uma conclusão similar, quando constata que se pode considerar significativa «a genérica influência estrangeira predominante duma certa ficção latino- americana contemporânea, a do chamado realismo fantástico ou realismo mágico, via García Márquez, Juan Rulfo (...).»68. Miguel Real, no seu estudo da Geração de 90, considera a nova geração de novelistas que desconstroem as convenções do chamado «realismo substancialista», cujas narrativas se podiam facilmente identificar com a realidade exterior envolvente. Esse novo começo do romance «passa, antes de mais, pela destruição das estruturas categoriais que até então enquadravam e orientavam a estrutura romanesca» 69. Urbano Tavares Rodrigues considera o modo como a irrupção do fantástico na ficção portuguesa é sintomática da literatura do período pós-revolução: «Com a Revolução do 25 de Abril, ou seja, com o abalo de todas as estruturas da sociedade portuguesa que se lhe seguiu (…), assistimos, ao longo de vários anos, ao perturbado nascimento de uma nova cultura.»70. Maria Alzira Seixo defende, todavia, não haver uma renovação do fantástico enquanto género, mas sim uma apropriação de «elementos, situações, comportamentos, modos discursivos próprios do registo fantástico»71. O

67

Maria Alzira Seixo, «Dez Anos de Ficção em Portugal (1971-1984)» in A palavra do Romance – ensaios de genologia e análise, Livros Horizonte, Col. Horizonte Universitário, Lisboa, 1986, p. 48.

68 Álvaro Manuel Machado, A novelística portuguesa contemporânea, 2ª ed., Lisboa, Biblioteca Breve, Vol. 14, 1984, p.18.

69

Miguel Real, Geração de 90 - Romance e sociedade no Portugal contemporâneo, Campo das Letras, Porto, 2001, p.58.

70 Urbano Tavares Rodrigues, «A Narrativa: seus caminhos e modelos em Portugal após a Revolução de Abril», in Tradição e Ruptura – Ensaios, Editorial Presença, Lisboa, 1994, p. 153.

71

Maria Alzira Seixo, «O Fantástico da História ou As Vacilações da Representação», in Lugares da Ficção em José Saramago – O essencial e Outros Ensaios, Instituto Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1999, p. 51.

fantástico constitui-se, portanto, como «um registo artístico que implica uma sensibilidade mais que uma mundividência»72, caracterizado pela convergência do realismo e do maravilhoso, que a autora designa como uma interferência de dois mundos ou duas ordens:

a natural e a sobrenatural, a racional e a irracional – em termos de indecidibilidade de conversão de uma delas à outra; em segundo lugar, a categoria de alteridade que dessa interferência resulta – e que tem figurações várias no fantasma, no espírito, na duplicação de personalidade, etc. 73

Ao considerar que essas narrativas que incorrem no domínio do fantástico se distinguem por uma indecidibilidade, o que se traduz na convergência do natural e do sobrenatural, Maria Alzira Seixo remete para o realismo mágico, pois este é pautado, justamente, por essa confluência de códigos distintos, marcadamente distinta do fantástico todoroviano. A autora vincula ainda, à semelhança de Álvaro Manuel Machado, esta recuperação do fantástico à literatura sul-americana, enquanto estratégia narrativa da ficção portuguesa que permite um alargamento das concepções romanescas, aliando «uma das mais neoclássicas concepções do romance que é possível observar no século XX a pequenas rupturas que lhe dão um sentido novo ou lhe prosseguem fins determinados»74. Urbano Tavares Rodrigues considera igualmente esta renovação do fantástico como uma influência da literatura latino- americana, em que o prodígio nunca se aparta do realismo:

Porquê o fantástico? Em parte, possivelmente, pela irradiação mundial do realismo mágico hispano-americano. Mas não só. Uma certa decepção pela Revolução perdida, ou pelo resserenar colectivo, pelo regresso a hábitos e egoísmos do antigamente, pelo apagamento das vontades no microcosmos intelectual (embora as lutas sociais e políticas se mantenham vivas) terá determinado nalguns escritores uma transmigração para terrenos banhados pela magia, terrenos da lenda e dos prodígios, sem fugirem no entanto à realidade 75.

72

Maria Alzira Seixo, «O Fantástico da História ou As Vacilações da Representação», in Lugares da Ficção em José Saramago – O essencial e Outros Ensaios, Instituto Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1999, p. 51. 73 Idem, op. cit., p. 52.

74 Idem, op. cit., p. 53. 75

Urbano Tavares Rodrigues, «A Narrativa: seus caminhos e modelos em Portugal após a Revolução de Abril», in Tradição e Ruptura – Ensaios, Editorial Presença, Lisboa, 1994, p. 155.

Note-se como começam entretanto as hesitações entre chamar fantástico ou realismo mágico à nova novelística entretanto surgida. Mas atente-se, primeiramente, nas origens da cunhagem deste termo.

«Não há nos meus romances uma linha que não seja baseada na realidade.»

Gabriel García Márquez

III. O Realismo Mágico