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Nas ações coletivas, o comando da sentença que transitou em julgado pode, e deve, atingir pessoas que na prática não participaram do processo. Ou seja, há a possibilidade de a autoridade da coisa julgada estender-se a pessoas que não participaram do contraditório. Por isso, nas demandas coletivas fala-se em coisa julgada erga omnes e ultra partes, em que o comando da sentença estende-se ou não à coletividade, dependendo do resultado do processo. Em suma, por um lado, a coisa julgada pode abranger pessoas determinadas ou indeterminadas de todo o país, dependendo dos interesses que foram objeto de litígio na ação coletiva. De outro modo, a coisa julgada pode ser indiferente a terceiros se a sentença lhes for prejudicial.

A partir de agora, cuidar-se-á, pois, das especificidades da coisa julgada nas ações coletivas, matéria que diz respeito também à ação civil pública.

54 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 307. Embora apresentada pelos processualistas, a lição é de Liebman (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 500).

Como foi visto no tópico 2, os grandes problemas na sistemática do processo coletivo são o da legitimidade e o da coisa julgada, temas esses que se encontram em momentos processuais opostos – um no início da demanda outro no final – mas que são complementares.

Não se pode estudar a coisa julgada nas ações coletivas sem antes relembrar que a legitimidade nesse tipo de ação dá-se por substituição processual, ou seja, uma parte vai a juízo defender direitos de outrem (art. 6º, do Código de Processo Civil). No caso dos direitos transindividuais, as partes agem em nome de toda a coletividade ou em nome de um grupo ou categoria de pessoas. Por isso a sentença, formando a coisa julgada, impõe-se a toda a coletividade ou grupo ali representado, conforme o caso.

Nas ações coletivas, a extensão subjetiva do julgado para beneficiar terceiros assemelha-se, em termos práticos, ao efeito da sentença penal condenatória (Código de Processo Penal, art. 63), uma vez que a coisa julgada coletiva, assim como a condenação penal, certifica a ocorrência do dano e obriga à indenização dos prejudicados. Através da lei (ope legis), há um aumento do objeto da lide, nele incluindo-se a obrigação de indenizar os prejudicados pelo dano.

Independentemente do resultado do processo, se favorável ou não à parte autora da ação coletiva, a sentença nele proferida deveria obrigar a todos, mas assim não se dá no Brasil. No sistema da ação popular, da ação civil pública e da ação coletiva do Código de Defesa do Consumidor, a sentença que extingue o processo por insuficiência de provas não faz coisa julgada material (secundum eventum probationis).55 Portanto, pode o processo ser renovado com mesmo fundamento e objeto pelos co-legitimados, ou até pela mesma parte que intentou a ação carente de provas.56

55 Cf. art. 18 da Lei 4.717/65, art. 16 da Lei 7.347/85 e art. 103, I e II, da Lei 8.078, referentes, respectivamente, à ação popular, à ação civil pública e à ação coletiva do Código de Defesa do Consumidor.

No caso de a ação coletiva ter seu pedido julgado improcedente por outro motivo, que não a falta de prova, isso não impedirá que os particulares que sofreram o dano ajuízem ações individuais para reaverem seus prejuízos. Ou seja, a coisa julgada é transportada para os processos individuais somente in utilibus, nunca para prejudicá-los. Se favorecer os indivíduos, dá-lhes a possibilidade de só liquidar a sentença e, depois, executá-la. Se prejudicar, não impede que ajuízem suas ações individuais ou continuem com as já ajuizadas. As exceções a essa regra estão no art. 104 do Código de Defesa do Consumidor, o que não necessita de maior vagar para o tema que se quer abordar aqui. Cumpre dizer apenas que a coisa julgada coletiva só prejudica posteriores ações coletivas, não entrando no universo das ações individuais, a não ser nos termos supracitados.

Em suma, a coisa julgada secundum eventum litis das ações coletivas tem vários desdobramentos: primeiro, não faz coisa julgada material se for julgada improcedente por insuficência de provas, o que se chama coisa julgada secundum eventum probations; segundo, ainda que julgada improcedente por outro motivo, não prejudica os indivíduos nem suas ações; por fim, conclui-se que a extensão da coisa julgada coletiva à coletividade só se dará caso a beneficie, procedendo-se ao transporte in utilibus da sentença favorável.

Apesar de criticada por alguns, 57 a adoção da coisa julgada secundum eventum

litis nas demandas coletivas foi a forma mais prudente de tratar a questão no processo coletivo

brasileiro. Primeiro, porque o sistema pátrio, diferentemente do common law, não faz o controle judicial da representatividade adequada quando do ajuizamento das ações coletivas. Assim, sendo a ação extinta por insuficiência de provas, é de se permitir a repetição da lide, desde que existam novas provas, haja vista a relevância dos interesses albergados por essas espécies de ações; segundo, porque era necessário conciliar a coisa julgada erga omnes e ultra

partes ao devido processo legal, como imperativo da ordem constitucional. Embora se

dissesse que os adequadamente representados não são, a rigor, terceiros, 58 não se podia permitir que a coisa julgada coletiva prejudicasse aqueles que não intervieram no processo; em terceiro lugar, transportar integralmente, para o Brasil, o sistema das class actions, que permite ao cidadão escolher se quer ou não se aproveitar da coisa julgada, 59 não seria o mais adequado para a realidade brasileira, por motivos vários:

[...] a deficiência de informação completa e correta, a ausência de conscientização dos canais de acesso à justiça, a distância existente entre o povo e o Poder Judiciário, tudo a constituir gravíssimos entraves para a intervenção de terceiros, individualmente interessados, nos processos coletivos, e mais ainda para seu comparecimento a juízo visando à exclusão da futura coisa julgada.60

Destarte, preferiu o Código de Defesa do Consumidor, que disciplina todo o sistema do processo coletivo, optar pela coisa julgada secundum eventum litis, aproveitada aos substituídos somente para lhes beneficiar e não fazendo coisa julgada material quando da improcedência por falta de provas. É o que se depreende do art. 103 do Código Consumerista. Para o presente estudo, a lição da coisa julgada segundo o resultado do processo é apenas propedêutica, a fim de que se possa visualizar melhor quando vai acontecer a extensão subjetiva do julgado e quando não ocorrerá. Essa extensão subjetiva, no entanto, depende também do interesse que fundamenta o pedido na demanda coletiva. Se for interesse difuso, abrangerá pessoas indeterminadas; se coletivo, vai abarcar determinado grupo ou categoria de pessoas e, por fim, se for individual homogêneo, dirá respeito a cada indivíduo prejudicado.

Para melhor compreensão do tema, transcreva-se o art. 103 do Código de Defesa do Consumidor:

58 WATANABE, Kazuo et. al. Op. cit., p. 834.

59 No sistema do common law, o indivíduo decide se quer ou não participar do processo como litisconsorte e arriscar-se às conseqüências favoráveis ou desfavoráveis da sentença coletiva. A participação ou não do indivíduo no processo coletivo chama-se opt out, caso não queira submeter-se à coisa julgada, e opt in, se o indivíduo desejar participar do processo, submetendo-se à sentença nele proferida.

Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará coisa julgada:

I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;

II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;

III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81.

É importante a referência do dispositivo aos incisos do art. 81 da Lei 8.078/90, que define os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. No presente trabalho, o tema foi tratado no item 2.3, ao qual se remete o leitor, para maior aprofundamento.

Depreende-se do citado art. 103 que a extensão subjetiva do julgado àqueles que, na prática, não participaram do processo pode dar-se erga omnes ou ultra partes. As expressões, interpretando-se literalmente, são idênticas, uma vez que transmitem a idéia de que a coisa julgada ultrapassa as partes do processo. Mas assim não deve ser a compreensão doutrinária. O legislador já as diferenciou porque não quis dar igual sentido a elas. Ao utilizar o termo ultra partes, advertiu que, neste caso, a coisa julgada será menos abrangente do que nos casos erga omnes. Tanto é assim que, complementando a expressão ultra partes, o inciso II, disse que a coisa julgada limita-se ao grupo, categoria ou classe.61

Por força do art. 21 da Lei 7.347/85, o dispositivo aplica-se também à ação civil pública, no que for com ela compatível. Como foi visto, a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor complementam-se reciprocamente no que tange à defesa dos interesses transindividuais em juízo. Além disso, o Código Consumerista tratou exaustivamente de matéria de que a Lei 7.347/85 não cuidou com tanto vagar, qual seja, a disciplina da coisa julgada erga omnes. Destarte, é inteiramente aplicável a Lei 8.078/90, no ponto em que aborda a extensão subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas.

Mas o objetivo do presente trabalho não é estudar detalhadamente como vai se dar a extensão da coisa julgada em cada espécie de direito transindividual. A pretensão, aqui, é analisar a norma que limitou essa extensão subjetiva ao limite territorial da competência do órgão prolator, restringindo a aplicabilidade do art. 103 da Lei 8.078/90. Do artigo citado do Código de Defesa do Consumidor, aproveita-se a lição de que a extensão da coisa julgada coletiva depende da espécie de interesse defendido.

Apresentados todos os temas pertinentes à questão central a ser abordada, a partir de agora, será analisada a limitação territorial da coisa julgada na ação civil pública.

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