• Nenhum resultado encontrado

O Colapso do Sistema Médico Cooperativo

No documento A assistência à saúde na China continental (páginas 167-173)

AS MUDANÇAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE NA ERA DAS REFORMAS NA CHINA DE DENG XIAOPING E JIANG ZEMIN (1980-2002)

5.2. MUDANÇAS PARA A ASSISTÊNCIA À SAÚDE

5.2.1. O Colapso do Sistema Médico Cooperativo

As reformas no sistema de saúde no início dos anos 1980, resultaram no desaparecimento do sistema médico cooperativo. A grande maioria da população rural obteve os seus serviços de saúde com base numa ticket moderador (FFS), substituindo o pré-pagamento. A maioria das aldeias dissolveu a sua CMS já que a sua principal fonte de financiamento, o fundo de bem-estar apoiado pela renda agrícola coletiva, havia desaparecido. A percentagem de aldeias com um sistema médico cooperativo caiu de 90% na década de 1960 para 5% em 1985. Os serviços preventivos prestados no âmbito da CMS, financiados pelo governo central e pelos fundos de previdência local, cobriam todos os indivíduos. Agora, os serviços

preventivos passam a ser financiados através de vários mecanismos: taxas de usuário, pré-pagamentos e contribuições de vários níveis de governos (ZHANG; UNSCHULD, 2008; LIU; HSIAO; EGGLESTON, 1999; FENG et.al., 1995; DUCKETT, 2011).

Dessa forma, os médicos descalços perderam seu apoio institucional e financeiro. Em janeiro de 1985, o título de médico descalço foi cancelado pelo Ministério da Saúde, e alguns deles se tornaram médicos de aldeia, outros deixaram o setor de saúde e foram trabalhar na agricultura em tempo integral. Os que se tornaram médicos de aldeia transformaram seus postos de saúde em práticas privadas (fee-for-service). O número total de médicos descalços diminuiu de 1,8 milhão para 1,3 milhão entre 1978 e 1985 (HSIAO et.al. 1995).

A cooperação entre as diferentes unidades de saúde rural foi perdida ou enfraquecida após as reformas. Sob o CMS, os postos de saúde da aldeia, os centros de saúde das comunas e os hospitais do condado estavam estreitamente inter-relacionados entre si dentro do sistema de três níveis. Os hospitais do condado e os centros de saúde do município forneceram assistência técnica regular e supervisão às organizações de nível inferior. Após o colapso da CMS, essas organizações de saúde se tornaram instituições independentes (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al. 1995).

As reformas agrícolas na China provocaram um rápido desenvolvimento contribuindo para o aumento da renda de uma parte dos camponeses. Nas comunidades prósperas, apesar da disponibilidade de médicos descalços, muitos camponeses foram diretamente aos hospitais do condado para receber tratamentos médicos. Eles estavam dispostos a pagar com recursos próprios um preço mais alto para obter o que eles acreditavam ser serviços médicos melhores e com profissionais mais qualificados (DIEP, 2008).

De 1982 a 1992, as visitas anuais aos hospitais do condado aumentaram de 1,223 bilhão para 1,439 bilhão, enquanto as visitas para as clínicas do município diminuíram de 1,467 bilhão para 1,015 bilhões. Isto sobrecarregou ainda mais os hospitais nos níveis do condado (HSIAO et. al., 1995).

Em 1982, apenas 5% dos postos de saúde das aldeias exerciam práticas médicas de caráter privado. No final da década de 1990, essa proporção aumentou para cerca de 48%, operando com supervisão mínima do governo e prescrevendo muitos cuidados desnecessários189 para a obtenção de lucros (LIU et. al., 1994).

Isto foi consequência da política de laissez-faire para um padrão dos cuidados de saúde rural implementada na gestão de Deng Xiaoping.

This laissez-faire policy toward rural health care left the rural population to finance and organize their own primary care services at the village level. Most health posts became fee-for-service practices operated by unsupervised 'village doctors'. Patients received their services according to their ability to pay. The government didn't make any serious attempt to replace the CMS so the equitable and efficient method of financing and provision of health care under CMS could be retained (HSIAO et. al. 1995, p. 1087-1088).

O governo continuou a financiar uma grande parte dos programas de prevenção, investimentos em leitos hospitalares e na formação de pessoal de saúde. No entanto, ele reduziu seu apoio financeiro para os custos recorrentes de hospitais e clínicas, especialmente os ofertados por coletivos e comunidades locais (HSIAO et. al., 1995; FENG et.al., 1995; DUCKETT, 2011).

Tabela 3: O orçamento e os subsídios para os cuidados de saúde na China rural

189 “Unnecessary care is generally defined as care provided but medically not needed. More precisely, care is considered unnecessary if on balance it does not benefit patients. In operational terms, care is defined as unnecessary when, for an average group of patients presenting to an average physician, the expected health benefit of care provided does not exceed the expected negative consequences by a sufficiently wide margin, excluding consideration of monetary costs. Unnecessary care includes unnecessary outpatient visits, inpatient admissions, days in hospital, diagnostic and treatment procedures, and drugs. […] If the quantity of care given contributes to determining the income of providers, there is a risk that doctors and hospitals will be motivated to provide more care than is strictly necessary to achieve health benefit” (LIU, MILLS, 1999).

Fonte: HSIAO et. al. 1995.

A tabela acima demonstra que os valores no orçamento para a saúde permaneceram quase constantes, em termos da porcentagem do orçamento total do gasto em saúde do governo, enquanto os subsídios públicos aos cuidados de saúde rural diminuíram quase pela metade entre 1978-1988. Isto em decorrência da argumentação do governo de que os hospitais e clínicas deveriam depender das taxas de utilização dos serviços de saúde para financiar os seus custos recorrentes e que forçariam a concorrência entre os prestadores de cuidados de saúde, o que por sua vez melhoraria a qualidade dos serviços e a eficiência operacional (HSIAO et. al., 1995; LIU et. al., 1994).

De acordo William Hsiao, (et. al., 1995), Feng Xueshan (et. al., 1995) e Jane Duckett (2011), as razões para o colapso do Sistema Médico Cooperativo estão relacionadas a fatores externos (econômicos, sociais e políticos) e internos (má gestão e corrupção).

Como já fora dito, a base financeira essencial do CMS era o fundo de bem-estar coletivo. As comunas e as brigadas de trabalho supervisionaram a coleta de fundos de previdência e a operação do Sistema Médico Cooperativo. Sob o novo sistema de responsabilidade da produção familiar, o fundo de bem-estar coletivo desapareceu e com ele o poder das brigadas para coordenar a produção e gerenciar os serviços sociais. Assim, em muitas regiões da China, as estruturas organizacionais e administrativas rurais, uma vez muito eficazes, foram enfraquecidas. Em consequência, o CMS também perdeu o pilar de sua fundação administrativa (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al., 1995).

Com as mudanças no padrão de vida dos camponeses, a coesão social e as atitudes dos camponeses também mudaram uma vez que os camponeses eram todos membros da mesma comuna, em que os ganhos da produção e os riscos eram igualmente divididos. Após as reformas, esses camponeses se tornaram produtores independentes e consumidores que supostamente cuidariam de seus próprios interesses (HSIAO et. al., 1995).

Do ponto de vista político, entende-se que muitas das decisões na China foram impulsionadas por forças sociais, cujas ideologias, por vezes contraditórias, disputavam o poder no PCC, como também no governo. Neste sentido, parte do grupo político que estava na direção da China, junto com Deng Xiaoping, considerara a Revolução Cultural um erro maoista, assim como tudo que fosse um produto desse movimento. Assim, na era pós-Mao muitas das instituições estabelecidas durante a Revolução Cultural foram abolidas. O Sistema Médico Cooperativo foi rotulado como um dos produtos da revolução cultural, havendo pressões políticas em prol da sua dissolução, o que resultou no rápido movimento para o seu colapso (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al., 1995; DUCKETT, 2011).

No que se refere aos fatores internos, em muitas comunidades acreditou-se haver uma má gestão. Como a cooperativa médica foi estabelecida em muitas comunidades como um empreendimento político, a solvência financeira e a eficiência econômica dos esquemas foram muitas vezes ignoradas. A decisão de arrecadar fundos foi bastante arbitrária e não havia base técnica para a avaliação de prêmios. Os quadros locais, que serviam como gestores dos fundos, muitas vezes não sabiam como gerenciar o regime de forma eficaz e eficiente. Nenhum mecanismo explícito de controle de qualidade e custo foi incorporado ao sistema. A maioria dos esquemas de CMS foi organizado no nível da aldeia, uma base muito pequena de seguro de saúde (risk-pooling). Em caso de seleção adversa e problemas de risco moral, o pequeno fundo CMS seria facilmente esgotado. Como resultado, muitas comunidades experimentaram instabilidades financeiras com seu sistema médico cooperativo (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al., 1995; DUCKETT, 2011).

Quanto à corrupção, muitos quadros locais do partido beneficiaram-se de tratamento preferencial ao receber medicamentos caros e reembolso mais favorável de grandes contas médicas sobre o sistema médico cooperativo. Eles recebiam os maiores benefícios pois tinham o poder de nomear e demitir qualquer trabalhador de saúde ou gerentes dos fundos (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al., 1995; DUCKETT, 2011). De acordo com esses autores, a ascensão e queda do CMS da China revelou suas vantagens, bem como as suas fraquezas. Para evitar o seu colapso, o governo precisaria ter assumido uma maior responsabilidade no que diz respeito à iniciação, organização e gestão desse sistema. Por um lado, o rápido desenvolvimento de

esquemas de CMS não poderia ter sido possível sem as iniciativas impulsionadoras e com apoio do governo da RPC, sob o comando de Mao Tsé-tung. Por outro lado, muitos dos problemas internos dos regimes das cooperativas médicas, como a corrupção, são em parte resultado da centralização excessiva nos quadros do governo, o que muitas vezes tornava as pessoas, em nível local, impotentes nos processos de tomada de decisão. Assim, se conclui que uma lição da experiência do CMS chinês foi a necessidade de equilibrar o papel do controle do governo e a participação da comunidade no sistema (HSIAO et. al., 1995; FENG et. al., 1995; DUCKETT, 2011).

Em 1995, William Hsiao (1995) ao se perguntar se a população rural da China estaria melhor sem os sistemas médicos cooperativos, chega às mesmas conclusões que Feng Xueshan (et. al, 1995), a saber:

The collapse of CMSs, in conjunction with the squeeze on government funding, has had a number of negative influences on the rural health services. The financial burden has been shifted to individual house-holds who have to pay for health care out-of-pocket. Those who cannot afford to do so are denied access to care. Several reports documented that ill health was one of the major contributors to the poverty of families in the poorer areas, and that almost half of them who needed medical care, but did not obtain it, claimed lack of money was the main obstacle (FENG et. al., 1995, p. 1112-1113).

Por fim, o colapso do sistema médico cooperativo e a mudança no papel dos médicos descalços resultaram em um enorme declínio na cobertura de cuidados de saúde primários nas áreas rurais. Em 1990, houve esforços na busca de experiências que pudessem substituir o CMS, porém a maioria não obteve o desempenho desejado190.

De acordo com Adam Wagstaff (et. al., 2009):

Efforts in this period included the RAND Sichuan CMS experiment in mid- 1990s191, the WHO 14-county study in the early 1990s192, the UNICEF 10- county study over the period 1997–2000, and the World Bank Health VIII project in the late 1990s193 (WAGSTAFF et. al., 2009, p. 9).

Com base nesta política de saúde rural, o Governo propôs o desenvolvimento de um novo sistema médico cooperativo em 2003, já sob o comando de Hu Jintao (quarta geração). O novo sistema médico cooperativo procurou atender às necessidades

190 Ver FENG et. al., 1995. 191 Ver CRETIN et. al., 1990. 192 Ver CARRIN et al., 1999. 193 Ver Wagstaff e Yu, 2007.

médicas dos camponeses, mas também enfrentou desafios: como o equilíbrio entre serviço clínico e saúde pública; como garantir as qualificações do médico da aldeia e fornecer sua renda; e como gerenciar e alocar recursos. O novo sistema, que se baseava fortemente nas experiências do programa de doutores descalços, era uma tentativa de resposta aos cuidados de saúde dos camponeses na China rural (ZHANG; UNSCHULD, 2008), como ver-se-á no próximo capítulo.

5.2.2. A fusão do Sistema de Saúde Trabalhista (LIS) e do Sistema de Saúde

No documento A assistência à saúde na China continental (páginas 167-173)