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1.2 Gêneros de atividade

1.2.3 Coletivo de trabalho e trabalho coletivo

Cada coletivo de trabalho, em seus respectivos campos, elabora tipos relativamente estáveis de atividades (CLOT, 2007; 2010b), como uma “resposta comum às prescrições” (SOUZA-E-SILVA, 2004, p. 90); formula regras não escritas que pré-ordenam a ação, sem as quais o próprio coletivo de trabalho não existiria (DE TERSSAC, 1992 apud CLOT, 2007). Nesse sentido, quanto mais compreendermos o coletivo de trabalho, mais entenderemos os próprios gêneros de atividade. Além disso, a experiência coletiva pode também perder-se (CLOT, 2007), o que coloca em destaque a importância do trabalho coletivo nos coletivos de trabalho. Eis que este par conceitual é fundamental nas discussões sobre gênero de atividade.

Começamos expondo a concepção de coletivo adotada nesta pesquisa. Clot (2007, p. 38) adverte que “um grupo não é uma coleção de indivíduos, mas uma comunidade inacabada cuja história define também o funcionamento cognitivo coletivo”. Entretanto, há uma controvérsia acerca do coletivo, pois, “a organização do trabalho oficial tenta rechaçar o coletivo, mas esse coletivo é qualquer coisa que é demandada pelo real do trabalho” (CLOT, 2006a, p. 103).

Na Clínica do Trabalho a questão do coletivo é o problema central (CLOT, 2006a). O autor explica que não se trata do coletivo como grupo, mas do coletivo no indivíduo, como recurso para o desenvolvimento individual e da subjetividade – “o sujeito passa a fazer sozinho, e a seu modo, o que havia experimentado com os outros” (CLOT, 2010b). “Por isso Vigotski é tão importante” (CLOT, 2006a) ao

apresentar a ideia de que o social não é simplesmente uma coleção de indivíduos, mas que o social está em nós, no corpo e no pensamento; de certa maneira, é um recurso muito importante para o desenvolvimento da subjetividade: “o diálogo profissional é uma fonte do pensamento individual, assim, o coletivo é uma fonte do pensamento individual” (CLOT, 2006a, p. 106).

A partir do reconhecimento da importância do coletivo, podemos melhor interpretar a preocupação de Oddone, com seu espírito prático, e de Clot, a partir de sua perspectiva filosófica31, em saber “como”, não “o que” os trabalhadores sabem (CLOT, 2006a). Pensamos que apreender “como” os trabalhadores sabem pode revelar a presença ou a ausência do coletivo de trabalho no processo de renovação dos gêneros de atividade. Trata-se de uma pista que pretendemos seguir em nossas análises.

Da mesma forma, para Diolina (2017), o coletivo não consiste na simples coleção ou agrupamento de pessoas, de profissionais, mas é a “articulação do trabalho coletivo, no qual os operadores/as se engajam, e do coletivo de trabalho do qual eles/elas compartilham” (CAROLY; BARCELLINI, 2013, p. 1 apud DIOLINA, 2017, p. 428). Em outras palavras, uma vez engajados nos coletivos de trabalho, os trabalhadores necessitam dispor dos gêneros de atividade, ou seja, dos conhecimentos que compartilham em cada ofício. Inversamente, a vitalidade do coletivo de trabalho é decorrente da qualidade do trabalho coletivo.

Para melhor compreendermos essa questão, é necessário diferenciar, então, trabalho coletivo e coletivo de trabalho. O primeiro diz respeito ao modo como os trabalhadores organizam-se de maneira eficiente nas situações de trabalho (CAROLY; BARCELLINI, 2013 apud DIOLINA, 2017); nas palavras de Diolina (2017, p. 428), o trabalho coletivo seria a “união de estilos individuais atuando com objetivos comuns, num dado momento, num dado contexto e situação, em prol do desenvolvimento da atividade”. Um coletivo fortalecido representa uma maior possibilidade de elaboração e reelaboração das normas e das regras que enquadram a ação, bem como de validação dos estilos.

31 Clot cursou filosofia e sua tese “O trabalho: entre a atividade e a subjetividade” contou com a

orientação de Yves Schwartz, em Aix-en-Provence. A psicologia do trabalho foi o objeto de sua tese de filosofia (CLOT, 2006a, p. 99).

Por outro lado, o enfraquecimento do coletivo

leva o profissional a um desgaste contínuo de seu estilo em virtude do conflito direto com as prescrições, o que significa isolamento profissional, doenças, transgressões de normas, enfraquecimento da criatividade propulsora do desenvolvimento da profissão (DIOLINA, 2017, p. 429).

Nas palavras de Clot (2010b), o trabalho coletivo é privado de coletivo de trabalho quando o coletivo profissional reduz-se a uma reunião de indivíduos expostos ao isolamento, o que ocorre “quando a história do gênero profissional “degenera” no trabalho coletivo; quando, para afirmá-lo ainda de outro modo, a produção coletiva dos previsíveis genéricos do ofício está em suspenso” (CLOT, 2010b, p. 170-171).

Para o autor, isso representa degradação da saúde no ambiente de trabalho. Cada um, individualmente, sem o interlocutor (coletivo de trabalho), é confrontado com “surpresas ruins de uma organização do trabalho que o deixa “sem voz” diante do real” (p. 171). Nesse âmbito, no início, o coletivo de trabalho é objeto de apropriação para a atividade individual; na sequência, deve tornar-se meio para o desenvolvimento da ação de cada um (CLOT, 2010b), porque “sua função não é sedentária” (CLOT, 2010b, p. 177).

Assim, é do ofício que se deve cuidar – manutenção do instrumento genérico do trabalho coletivo – de modo que este trabalho seja mediatizado por um referencial comum.

O coletivo pode assumir formas diversas (AMIGUES, 2004), de forma que um mesmo professor pode pertencer a mais de um coletivo (coletivo dos professores da disciplina, o dos professores da classe, por exemplo). Faïta (2004) relembra a categoria iniciantes, proposta por Saujat (2002): independentemente dos lugares de lotação e exercício de professores iniciantes, estes apresentariam traços comuns, como, por exemplo, empenho em gerir a classe (entrada e saída de aluno) ou coordenar a classe (regulação dos comportamentos dos alunos). Segundo Faïta (2004), os professores iniciantes teriam a característica de dar maior importância a determinadas práticas que são menos centrais para os professores experientes, o que faz com que formem uma comunidade.

Quando se fala em coletivo de professores iniciantes, de determinada disciplina, de uma dada classe, parece que estes coletivos já nascem prontos; que o

fato de os professores estarem ligados por algo em comum, faria dos mesmos um coletivo de trabalho. Entretanto, como já apontado por Clot (2007) e por Diolina (2017), com base nos estudos de Caroly e Barcellini (2013), coletivo de trabalho e coleção de indivíduos não devem ser confundidos. De acordo com Lima (2016), é o tipo de caminhada juntos que define se um grupo permanece uma coleção de indivíduos ou se este grupo se desenvolve a ponto de se tornar um coletivo de trabalho, que pressupõe a reunião, mas, sobretudo, a união em condições de vida em comum.

A partir disso, somos instigados a identificar os coletivos aos quais possa a professora pertencer, mas, principalmente, observar se as relações entre os professores (trabalho coletivo, engajamento) denotam um verdadeiro coletivo na escola, ou se o grupo se mantém uma coleção de indivíduos.

Após essas considerações sobre a constituição de um verdadeiro coletivo de trabalho, retomamos Amigues (2004) que, a partir Espinassy (2003), discorre sobre o coletivo mais amplo, o da profissão, para além dos coletivos restritos, pois há questões que são compartilhadas pela maioria dos professores (instância transpessoal da atividade de trabalho), apesar das suas especificidades profissionais. É justamente a partir das instâncias da atividade de trabalho que a questão do coletivo será abordada na sequência.

Além da dimensão transpessoal, o ofício compreende as instâncias impessoal, interpessoal e pessoal (CLOT, 2013): o ofício é, em cada situação, singular (pessoal); é sempre interpessoal, pois, sem destinatário, a atividade perde seu sentido; a dimensão transpessoal é caracterizada por uma “história coletiva que passou por muitas situações e dispôs de sujeitos de diferentes gerações a responderem por ela, de uma situação a outra, de uma época a outra” (p. 6); é impessoal, pois passa pela tarefa prescrita, que mantém o ofício, codificando-o.

Ao mesmo tempo, a prescrição é entendida como um “modelo resfriado a ser descongelado por cada um e por todos, face ao real, com a ajuda dos pressupostos da história comum” (CLOT, 2013, p. 6), dado que é o que há de mais descontextualizado no que o autor chama de “arquitetura da atividade de um trabalhador”. Aqui, vemos claramente as dimensões pessoal (cada um), interpessoal (por todos) e transpessoal (história comum) “agindo” sobre a impessoal. É esse movimento entre as instâncias que mantém o ofício vivo. Retomando a expressão de Vigotski (1977), em outro contexto, Clot (2013) afirma que é por meio deste

movimento que o ofício mostra o que é. Por outro lado, um ofício se apaga quando uma ou outra dessas instâncias “falha em se tornar meio para o desenvolvimento das outras” (CLOT, 2013, p. 7).

A esse respeito, Diolina (2017) e Diolina e Bueno (2017) afirmam que as instâncias não têm ordem hierárquica e que todas atuam conjunta e dinamicamente em favor do desenvolvimento da atividade. Dito isto, voltemos a nossa proposta de situar “os coletivos”: a instância interpessoal refere-se ao trabalho coletivo e a transpessoal, ao coletivo de trabalho.

No jogo entre as instâncias, a participação do coletivo é fundamental, do contrário, o profissional fica no isolamento e muito mais sujeito à imposição de normas. Isso representaria um embate direto entre a instância pessoal e a impessoal, reduzindo a capacidade criativa e transformadora da atividade, o que, por consequência, desvitaliza o coletivo, em suas dimensões interpessoal e transpessoal (DIOLINA, 2017). A falha de qualquer instância faz com que o ofício entre numa espécie de círculo vicioso, comprometendo-o, uma vez que tudo está ligado.

Na sequência, trazemos alguns exemplos de pesquisas que discutem, entre outros, a questão do coletivo. Muniz-Oliveira (2015), ao pesquisar o trabalho docente no ensino superior, sublinha o papel do coletivo de trabalho: buscar meios para a resolução de seus conflitos, para a diminuição do seu sofrimento no trabalho e para evitar a amputação do seu poder de agir. Segundo a autora, sua pesquisa "indica a necessidade da consolidação da formação de um coletivo de trabalho fortalecido que possa se desenvolver no seu trabalho, sem sofrimentos” (p. 243). Para a mesma, é importante um momento de discussão do coletivo sobre os vários estilos dos professores, dos diferentes modelos de agir, com vistas ao desenvolvimento de suas capacidades para a realização na sua profissão.

Um exemplo do já mencionado rechaçamento do coletivo (CLOT, 2006a) pode ser verificado nas considerações finais da obra de Muniz-Oliveira (2015). A autora questiona os indicadores da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) utilizados na avaliação da Pós-graduação stricto sensu (na época, trienal) na área de estudos da linguagem, justamente por não privilegiar um enfoque qualitativo, nem mesmo requerer um papel mais ativo do coletivo de trabalho (p. 248). Ao contrário, na organização atual de trabalho do professor de pós-graduação, se cada professor não cumprir as tarefas prescritas pela agência

responsável pela avaliação mencionada, a avaliação do Programa de Pós- graduação pode ser afetada, o que pode prejudicar, inclusive, os alunos. O professor é “posto como responsável pelo sucesso ou insucesso coletivo, sem que, muitas vezes, sejam-lhe concedidas as condições necessárias pela instituição” (MUNIZ- OLIVEIRA, 2015, p. 245). Consideramos isso um tanto contraditório, porém proposital, ao mesmo tempo: em nome de um coletivo de trabalho que não é requisitado, o trabalho individual é fomentado. Isso acaba fragilizando o coletivo de trabalho, pois cada um precisa cumprir suas próprias metas.

Diolina e Bueno (2017), objetivando problematizar o papel do coletivo na produção de soluções para desafios diários vividos por oito professores de uma escola estadual na grande São Paulo32, expõem que a estratégia coletiva denominada pelos professores de “o combinado” foi uma das mais significativas em relação ao desafio diário da indisciplina dos alunos.

De acordo com as autoras supracitadas no “combinado”,

além do uso da mesma linguagem com os alunos, há um modo de fazer (um agir experiente) já previsto entre os professores (instância inter e transpessoal). O combinado em particular refere-se a um acordo sobre o que falar e como agir com os alunos, existe um agir comunicacional que gera o agir praxiológico [...] (DIOLINA; BUENO, 2017, p. 79).

Para as autoras, a estratégia do combinado pressupõe interação contínua dos professores, bem como implica um agir que seja legitimado pelo grupo: construção de regras comuns e trocas de ações significativas para a solução dos desafios diários da profissão. Ressaltam, ainda, citando as palavras de Caroly e Barcellini (2013), que é possível visualizar na referida estratégia a existência de uma articulação do trabalho coletivo em que os professores se engajam e do coletivo de trabalho do qual eles compartilham modos de agir.

Por fim, Diolina e Bueno (2017) acentuam que, embora a estratégia do “combinado” possa parecer simples, “nem sempre os professores têm em seu convívio a oportunidade e a confiança mútua necessária para dividir seus desafios e construir, com o outro, estratégias em prol de seu poder de agir” (p. 79). Além disto, a manutenção do “combinado” é difícil, pois este pode facilmente sofrer com mudanças de professores, o que pode desvitalizar o coletivo.

Nascimento e Zirondi (2017) analisam um coletivo de trabalho que se construiu a partir da aproximação de três professores (4º Ano do Ensino Fundamental), em um contexto de formação continuada oferecida pelo município à escola em que atuavam no período da manhã. Buscando vencer os obstáculos advindos dessa formação, estes professores resolveram se unir. Segundo as autoras, os resultados mostram que a formação desse coletivo só foi possível por fatores primeiramente afetivos e emocionais, sendo que os três professores “se tornaram parceiros na realização do trabalho e amigos extramuros” (NASCIMENTO; ZIRONDI, 2017, p. 315). Assim, entendem que uma mediação formativa adequada estimula e propicia essa união.

Também, demonstrando a importância da afetividade, uma análise do agir docente na escola quilombola revela que o agir afetivo e o coletivo de trabalho são fortemente impulsionados pelo sentimento de pertencimento a um grupo – quilombola (MODOLO; MUNIZ-OLIVEIRA; SANTOS, no prelo). As autoras explicam que neste contexto escolar o agir afetivo e o coletivo são estratégias não conscientes, formas de empoderamento da cultura quilombola para enfrentar a histórica dominação cultural.

Concordamos, assim, com Nascimento e Zirondi, para as quais a formação do coletivo de trabalho é o principal fator de empoderamento do agir docente; só é possível estabelecer esse coletivo “se esse envolver, além das relações profissionais, as emoções tão necessárias para a (con)vivência humana” (NASCIMENTO; ZIRONDI, 2017, p. 321), a exemplo dos afetos que marcam o agir docente na escola quilombola, conforme visto anteriormente.

O trabalho coletivo, como toda atividade, “supõe a presença de uma necessidade afetiva” (VYGOTSKY p. 203 apud CLOT, 2007, p. 159). A configuração do coletivo de trabalho está diretamente relacionada ao sentido atribuído ao mesmo, entendendo-se por sentido a “relação entre o objetivo imediato da ação e a motivação da atividade” (CLOT, 2007, p. 158), com base em Leontiev (1984).

A ausência ou o enfraquecimento de um trabalho de organização promovido e mantido por um coletivo representa desregramentos da ação individual e, por consequência, perda do sentido e da eficácia do trabalho (CLOT, 2007).

Neste âmbito, o coletivo tem o papel de possibilitar ao sujeito que enfrente a situação desenvolvendo seu poder de agir pessoal; inversamente, o sujeito exerce

uma função no coletivo, ao propiciar que este último amplie seu raio de ação (CLOT; FAÏTA, 2016).

Queremos registrar um último caso envolvendo um coletivo de trabalho. Ruelland-Roger (2013) discorre sobre a experiência de um grupo de professores que participaram de uma intervenção clínica: eles chegaram, à época, a dialogar com a inspeção regional de matemática a respeito da tutoria dos professores estagiários por colegas experientes, em que propunham transformar as maneiras de fazer dos tutores, ao inspirarem-se naquilo que eles próprios experimentaram, por meio da intervenção clínica.

A autora lembra, contudo, a grande dificuldade que é levar adiante as aspirações de um coletivo. Na França, “o lugar e o papel dos profissionais, como componentes ativos da definição, das modalidades de exercício e do desenvolvimento das profissões, constitui, atualmente um desafio” (RUELLAND- ROGER, 2013, p. 143). No Brasil, não é diferente, o que não deslegitima a importância que atribuímos, até aqui, aos coletivos de trabalho, trabalhando coletivamente, uma vez que é o desenvolvimento do trabalho coletivo que “alimenta a história do coletivo de trabalho” (CLOT, 2010b, p. 183).