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1.3 Categorias de análise

1.3.2 Polifonia e dialogismo

Ao termo polifonia, bastante corrente nos anos vinte e emprestado da música, em que o autor pode fazer falar várias vozes ao longo de seu texto, Bakhtin atribuiu,

em obra sobre Dostoiévski (1929), um valor e sentido novos (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2012, p. 384). Os autores afirmam que, estudando as relações recíprocas entre o autor e o herói na referida obra, Bakhtin resume sua descrição na noção de polifonia.

Segundo Maciel (2016) a palavra “polifonia” raramente é empregada por Bakhtin, sendo que seria na expressão “romance polifônico” que a ideia de polifonia aparece.

Para o autor supracitado, o dialogismo se faz presente na interação entre quaisquer vozes, já a polifonia depende da amplitude das ideias que se discute. Essa amplitude deve ser compreendida da seguinte maneira:

No desenvolvimento da ciência do diálogo dostoievskiana, inicia-se com as personagens restritas a seus interlocutores imediatos, passa-se depois a personagens que assimilam temas sociais mais amplos até se chegar a romances cujos arranjos dialógicos entre as vozes de várias personagens são a tal ponto aprofundados que se chegaria à polifonia (MACIEL, 2016, p. 587).

A polifonia pode ocorrer de forma explícita ou insinuada; com a presença de muitas vozes ou uma mesma voz-ideia transitando por inúmeras conjunturas enunciativas (MACIEL, 2016). Entretanto, “mais importante para caracterizar a polifonia é que as vozes não permaneçam em uma única boca e que ninguém tenha a palavra mais forte, aquela capaz de encerrar o diálogo” (MACIEL, 2016, p. 596- 597). Dostoiévski “não fala do herói, mas com o herói” (BAKHTIN, 2013, p. 72, grifos do autor), de modo que o autor é apenas um participante do diálogo (o seu organizador), do qual todos os personagens participam (BAKHTIN, 2013, p. 333).

Se na polifonia não deve haver a palavra mais forte, capaz de encerrar o diálogo,

no enfoque monológico (em forma extrema ou pura), o outro permanece inteiramente apenas objeto da consciência, e não outra consciência. Dele não se espera uma resposta que possa modificar tudo no universo da minha consciência. O monólogo é concluído e surdo à resposta do outro, não o espera nem reconhece nele força decisiva (BAKHTIN, 2013, p. 329, grifos do autor).

Estas são questões muito pertinentes, que nos levam a refletir sobre o estatuto de nossa pesquisa, no sentido das relações que propomos com os sujeitos que dela participam. Lima (2010a) discorre sobre a importância de o pesquisador dar

voz aos sujeitos pesquisados, pois eles têm sempre algo a dizer a respeito das questões que interessam à pesquisa, o que é possível a partir de uma perspectiva dialógica.

Assim, para falar como Bakhtin (2013) sobre Dostoiévski, o pesquisador falaria “com” os sujeitos participantes da pesquisa e não falaria “sobre” eles. Desprovido de voz, ao sujeito seria dado apenas o papel de objeto e, como vimos anteriormente, de um objeto não se pode esperar uma resposta que possa modificar algo no universo da consciência (do pesquisador/dos leitores). Nesse sentido, a questão das relações dialógicas é fundamental para nos orientar na condução da pesquisa, que se pretende não monológica.

Mas quais são as condições de existência das relações dialógicas? Em Bakhtin (2013) podemos ver que a emergência de relações dialógicas está relacionada à materialização das relações lógicas e concreto-semânticas. Estas relações devem “tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado enunciado cuja posição ela expressa” (BAKHTIN, 2013, p. 210, grifos do autor). Portanto, a relação dialógica é uma “relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal” (BAKHTIN, 1997, p. 345-346).

Bakhtin apresenta o seguinte exemplo: “A vida é boa.” “A vida é boa.” A repetição diz respeito às palavras, ou seja, à materialização do juízo, que é um só. Então, “se esse juízo puder expressar-se em duas enunciações de dois diferentes sujeitos, entre elas surgirão relações dialógicas (acordo, confirmação)” (BAKHTIN, 2013, p. 210, grifos do autor).

Assim, o objeto do discurso de um determinado locutor não é objeto do discurso pela primeira vez (BAKHTIN, 1997, p. 319), de modo que todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo, e cada monólogo é a réplica desse grande diálogo (BAKHTIN, 2016, p. 92), que é inconclusível (BAKHTIN, 2013, p. 329). Mesmo um enunciado considerado monológico (por exemplo, uma obra científica ou filosófica), focado em um dado objeto,

não pode deixar de ser em certa medida também uma resposta àquilo que já foi dito sobre dado objeto, sobre dada questão, ainda que essa responsividade não tenha adquirido uma nítida expressão externa: ela irá manifestar-se na tonalidade do sentido, na tonalidade da expressão, na tonalidade do estilo, nos matizes mais sutis da composição (BAKHTIN, 2016, p. 58).

Fiorin (2010) explica que, para Bakhtin, o dialogismo é constitutivo do enunciado, ou seja, ainda que as diferentes vozes não se manifestem em sua estrutura composicional, o enunciado é dialógico. Para Bakhtin, portanto, a partir de uma análise apurada do enunciado, levando em conta as condições concretas da comunicação verbal, é possível descobrir “as palavras do outro ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de alteridade” (BAKHTIN, 1997, p. 318).

Ainda de acordo com Fiorin (2010), partir de Bakhtin, outra forma de dialogismo ocorre por meio da inserção de vozes na estrutura composicional do enunciado. Pode ocorrer de duas maneiras: em uma delas, o discurso do outro é marcado de forma nítida através de formas composicionais como o discurso direto e o discurso indireto, as aspas, a negação. Na outra, o enunciado é bivocal, ou seja, internamente dialogizado, aparecendo formas composicionais como a paródia, a estilização, a polêmica velada ou clara, discurso indireto livre.

Para encerrar, contamos com Bezerra (2012, p. 193): o dialogismo tem na polifonia sua “forma suprema”. Frente ao exposto neste subitem, entendemos que o dialogismo se apresenta no discurso polifônico, mas, nem sempre há polifonia nas relações dialógicas – pode ser que prevaleça o monologismo.