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1.1 Concepções de trabalho e trabalho docente

1.1.3 O Interacionismo Sociodiscursivo e o conceito de trabalho

O Interacionismo Sociodiscursivo, de agora em diante ISD, tendo Bronckart como seu principal autor, é uma variante e um prolongamento do Interacionismo Social (BRONCKART, 2006). Segundo o autor, o ISD aceita todos os princípios fundadores do Interacionismo Social, contestando, contudo, a divisão das Ciências Humanas/Sociais. Nesse sentido, o ISD não é uma corrente propriamente linguística, psicológica ou sociológica, mas se pretende uma corrente da ciência do humano.

Para o ISD, o problema da linguagem é central para essa ciência do humano. Baseando-se em Saussure e Vigotski, que compartilham a tese de que os signos linguageiros fundam a constituição do pensamento consciente humano, o ISD visa a demonstrar que

as práticas linguageiras situadas (ou os textos-discursos) são os

instrumentos principais do desenvolvimento humano, tanto em relação aos

conhecimentos e aos saberes quanto em relação às capacidades do agir e da identidade das pessoas (BRONCKART, 2006, p. 10, grifos do autor).

Aderida por diversas correntes da filosofia e das ciências humanas, esta posição epistemológica defende que as propriedades específicas das condutas humanas são o resultado de um processo histórico de socialização, em decorrência da emergência e desenvolvimento dos instrumentos semióticos (BRONCKART, 2012).

Os trabalhos de Vigotski são centrais para o ISD. Entretanto, considerando a curta vida científica desse autor, Bronckart avalia que o prosseguimento e o desenvolvimento do trabalho de Vigotski esbarram em dificuldades teóricas e metodológicas, sobre as quais explica detalhadamente.

Segundo Bronckart (2012), a primeira dificuldade refere-se à (ou às) unidade(s) de análise da psicologia. Dado o entrelaçamento das dimensões biofisiológicas, comportamentais, mentais, sociais e verbais que caracterizam as condutas humanas, Vigotski criticava autores que “simplificavam a tarefa”, limitando suas abordagens a dimensões isoladas. Seu objetivo era o de construir o conceito unificador no qual essas diferentes dimensões se organizariam, o qual não chegou a ser atingido. Mais tarde os discípulos de Vigotski, em particular Léontiev (1979) proporiam a ação e/ou atividade como unidades integradoras. Mesmo aderindo a esta escolha terminológica, Bronckart considera que a conceitualização dessas unidades subestima, ou até mesmo rejeita as dimensões sociais e verbais da atividade.

A segunda dificuldade diz respeito à delimitação e à articulação da ordem do social e da ordem do psicológico. Segundo Bronckart (2012), outro objetivo de Vigotski, a distinção entre princípios explicativos e unidades de análise da psicologia, também não chegou a ser atingido, até porque dependia do primeiro objetivo, não alcançado. A esse respeito, Bronckart sustenta, a partir das contribuições de Léontiev e da sociologia compreensiva (HABERMAS, 1987), que “é a atividade nas formações sociais (unidade sociológica) que constitui o princípio explicativo das ações imputáveis a uma pessoa (unidades psicológicas)” (BRONCKART, 2012, p. 30).

A terceira dificuldade refere-se ao estatuto a atribuir à linguagem, em suas relações com a atividade social e com as ações. Vigotski considerava a “palavra” como unidade verbal, opondo-a ao “signo” de Saussure, oposição considerada errônea por Bronckart. Segundo este autor, apesar do interesse de Vigotski pela

análise de obras literárias, este não teria identificado as unidades verbais maiores que Bakhtin começava a conceitualizar como gêneros do discurso.

De acordo com Bronckart (2012, p. 30),

na medida em que essas unidades situam-se claramente em um nível de análise correspondente ao da atividade e das ações, são elas as verdadeiras unidades verbais e é no quadro englobante dos textos e/ou

discursos que pode ser conferido um estatuto às unidades de nível inferior,

isto é, às palavras ou signos (grifos do autor).

Para o autor supracitado, uma psicologia interacionista deve integrar, primeiramente, a dimensão discursiva da linguagem; ainda, comenta sobre a possibilidade de fazer empréstimos aos trabalhos linguísticos e sociolinguísticos; esclarecer as relações sincrônicas existentes entre as ações humanas em geral e as ações de linguagem (semiotizadas); identificar os modos como a atividade de linguagem em funcionamento nos grupos humanos é constitutiva do social e, ao mesmo tempo, contribui para delimitar as ações imputáveis a agentes particulares, moldando a pessoa quanto a suas capacidades psicológicas.

A partir da explicitação dessas três dificuldades, Bronckart conclui que o projeto do ISD é considerar as ações humanas em suas dimensões sociais e discursivas constitutivas. Sua tese central é a de que a ação humana é resultado da apropriação pelo indivíduo das propriedades da atividade social mediada pela linguagem (BRONCKART, 2012).

Como o ISD visa a demonstrar o papel central da linguagem no conjunto dos aspectos do desenvolvimento, preocupa-se, também, com o papel da linguagem nas orientações explicitamente dadas para esse desenvolvimento pelas mediações educativas e/ou formativas (BRONCKART, 2007).

Abordando um pouco a história do ISD, Guimarães e Machado (2007) expõem que esta corrente surge a partir de 1980. Pesquisadores na Unidade de Didática de Línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra (Bernard Schneuwly, Daniel Bain, Joaquim Dolz, Itziar Plazaola – sob coordenação de Jean-Paul Bronckart) se voltaram para um amplo programa de pesquisa comum.

As autoras explicam que, tendo Vigotski como fonte de referência maior, no campo do desenvolvimento; e Bakhtin, no campo da linguagem, esses pesquisadores posicionaram-se a favor da reunificação da Psicologia, atribuindo-lhe

uma dimensão social, com a finalidade de esclarecer as condições da emergência e do funcionamento do pensamento consciente humano. Destacam que Bronckart chegou a dizer que se tratava de um projeto de construção de uma Ciência do Humano integrada, como vimos anteriormente. Em uma consulta a sua obra, localizamos tais palavras: “Portanto, temos um projeto que vai além da linguística e que é de uma ciência integrada do humano, centrada na dinâmica formadora das práticas de linguagem” (BRONCKART, 2007, p. 20, grifos do autor).

Dada a importância atribuída à linguagem, o referido grupo começou a desenvolver pesquisas sobre o “funcionamento dos textos/discursos e sobre o processo de sua produção, bem como sobre as diferentes capacidades de linguagem que se desenvolvem no ensino/aprendizagem formal dos gêneros e dos diferentes níveis de textualidade” (GUIMARÃES; MACHADO, 2007, p. 10).

Segundo as autoras, por volta de 2001, constituiu-se um subgrupo na Unidade de Didática das Línguas (Grupo Linguagem, Ação, Formação – LAF), voltado para um amplo programa de pesquisa para a análise das ações e dos discursos em diferentes situações de trabalho, inclusive educacional (GUIMARÃES; MACHADO, 2007).

Ainda abordando a gradativa ampliação do ISD, as autoras destacam que, no Brasil, essa linha de pesquisa inicia-se com trabalhos no Programa de Estudos Pós- graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL/PUC-SP), que mantinha, desde 1994, acordo institucional com a Universidade de Genebra. Em 2002, inicia-se o grupo Análise da Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relações (ALTER), registrado no CNPp (em 2015), sob liderança de Anna Rachel Machado (PUC)13 e Ana Maria de Mattos Guimarães (Unisinos), que reúne pesquisadores de várias universidades brasileiras, da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, e da Universidade de Rosário, na Argentina. Esse grupo compartilha os mesmos pressupostos gerais e um mesmo tipo de raciocínio global. Os temas e contextos de pesquisa são variados, o que está em perfeito acordo com a concepção multidisciplinar do ISD, uma teoria em construção, que a visa a encontrar, de forma coerente, soluções adequadas aos problemas de cada pesquisa.

13 Após o seu falecimento (em 2012), Eliane Lousada, da Universidade de São Paulo, assumiu a

Os trabalhos do ISD relativos aos textos e/ou discursos filiam-se a uma Psicologia da Linguagem, uma subdisciplina da Psicologia, que se centra na análise do funcionamento e da gênese das condutas de linguagem (BRONCKART, 2006). De acordo com o autor, diferentemente das demais subdisciplinas da Psicologia (Psicologia da Percepção, Psicologia das Emoções, Psicologia Cognitiva, Psicologia Social, Psicologia Clínica etc.), a Psicologia da Linguagem sustenta que

a linguagem não é (somente) um meio de expressão de processos que seriam estritamente psicológicos (percepção, cognição, sentimentos, emoções), mas que é, na realidade, o instrumento fundador e organizador desses processos, em suas dimensões especificamente humanas (BRONCKART, 2006, p. 122).

Como vimos, pesquisas que seguem a perspectiva do ISD são desenvolvidas em diferentes situações de trabalho. No campo educacional, segundo Bronckart (2006), o avanço da didática foi reforçado pelos aportes dos trabalhos da ergonomia francesa europeia e de uma corrente mais recente que é dela derivada – análise do trabalho. Para ele, ao distinguirem o trabalho prescrito e o trabalho real, essas teorias contribuem muito com a didática (educação). Tal distinção já foi detalhada anteriormente. Voltamo-nos, agora, para a definição do conceito de trabalho para o ISD.

O trabalho se constitui, claramente, como um tipo de atividade ou de

prática. Mas, mais precisamente, é um tipo de atividade própria da espécie

humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a sobrevivência econômica dos membros de um grupo [...] (BRONCKART, 2006, p. 209, grifos do autor).

Decorre daí a necessidade de definir a própria atividade, distinguindo-a de ação e agir. Para o autor, à primeira vista, a atividade seriam os comportamentos, as condutas, as intervenções que todos nós desenvolvemos diariamente. Porém, Bronckart (2006) destaca que se trata de uma questão complexa, partindo de três abordagens para melhor compreender essa complexidade.

A primeira abordagem considerada é a filosofia da ação, herdada de Wittgenstein e de Anscombe e reformulada por Ricoeur (1977) sob o nome de semântica da ação. Distingue os acontecimentos que se produzem na natureza (fenômenos) das ações propriamente ditas (envolvem motivo, intenção e capacidade

física). Nessa corrente teórica uma ação só pode ser compreendida a posteriori e as propriedades psíquicas de um sujeito individual da ação têm papel determinante.

A segunda, a teoria da atividade, oriunda, sobretudo, dos trabalhos de Leontiev (1979), dá ênfase às dimensões, primeiramente, coletivas do agir humano – indivíduos com espaço de liberdade ou criatividade restrito.

A terceira delas, proposta por Bühler (1934) e por Schütz (1998), defende a ação como um processo de pilotagem dos comportamentos em redes de restrições múltiplas (externas ou internas). Atribui um papel importante ao sujeito individual (piloto da ação), que deve sempre pilotar, mesmo sem rumo certo, enfrentando restrições sociais e materiais múltiplos.

Dessa exposição, Bronckart (2006) destaca a atividade ou a ação como resultado de um processo interpretativo. Ainda, para o autor, fica evidente um problema de semiologia (uso aleatório dos termos “atividade”, “ação” e “agir”). Daí ele buscar definições estáveis para que suas afirmações sejam inteligíveis, conforme retomamos, de forma resumida:

 agir: qualquer forma de intervenção no mundo (genérico);

 atividade: designa uma leitura do agir que implica as dimensões motivacionais e intencionais e os recursos mobilizados por um coletivo organizado;

 ação: o que ocorre na atividade, mas no âmbito de uma pessoa particular. O autor destaca que aos dois últimos termos atribui-se um estatuto teórico ou interpretativo – por isso a expressão “leitura” do agir.

Nesse sentido, abordar o trabalho docente do ponto de vista da atividade requer uma análise dos motivos, intenções e recursos utilizados pelo coletivo de professores. Sobre estes aspectos, o autor distingue, ainda:

 no plano motivacional: a) determinantes externos – origem coletiva; natureza material ou da ordem das representações sociais; b) motivos: razões de agir (individual);

 no plano intencional: a) finalidades – origem coletiva e socialmente validadas; b) intenções – fins do agir (individual);

 no plano dos recursos para o agir: a) instrumentos – artefatos14 concretos

e “modelos do agir” (gêneros de atividade, para Clot); b) capacidades: recursos mentais e comportamentais (individual).

Tal distinção é bastante pertinente para este trabalho, uma vez que nos propusemos a analisar os gêneros da atividade docente/“modelos do agir”, que envolvem os instrumentos – os recursos para o agir; ainda, visamos a examinar o processo de estilização dos referidos gêneros, o que, para nós, está diretamente ligado aos determinantes externos e às razões de agir de cada professor, bem como relaciona-se às finalidades e intenções, ou seja, os fins do agir de cada docente.

Ao partilharmos dessas distinções, pensamos que estamos considerando a atividade docente enquanto situada não somente nas circunstâncias presentes, mas “igualmente na história pessoal e social do sujeito psicológico e inclusive em seu corpo” (CLOT, 2007, p. 199).