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A Clínica da Atividade parte de uma abordagem dialógica, de Bakhtin e Voloshinov, e de desenvolvimento vigotskiano, ao considerar o diálogo como motor do desenvolvimento (MUNIZ-OLIVEIRA, 2015).

Para possibilitar esse diálogo, a Clínica da Atividade propõe alguns métodos, entre eles a instrução ao sósia, que foi formulada pelo médico e psicólogo italiano Ivar Oddone na Fiat, em 1970, no contexto de seminários de formação operária na Universidade de Turim, Itália (CLOT, 2007). O exercício de instrução ao sósia tem por objetivo uma transformação do trabalho do sujeito mediante um deslocamento de suas atividades e implica um trabalho de grupo, sendo que um sujeito voluntário recebe uma tarefa: “Suponha que eu seja seu sósia e que amanhã eu deva substituir você em seu trabalho. Que instruções você deveria me transmitir para que ninguém perceba a substituição?” (CLOT, 2007, p. 144).

O método de instrução ao sósia foi reelaborado por Clot no contexto da Clínica da Atividade do Conservatoire National des Arts et Métiers – CNAM, situado em Paris, França, no início dos anos de 1990. Segundo Oliveira (2007), ao recuperar o método de instrução ao sósia, Clot modifica-o em vários pontos:

(1) estas instruções não são mais produzidas como monólogos, mas sim como um resultado do diálogo entre pesquisador e trabalhador; (2) uma sequência do trabalho é determinada para se focalizar a experimentação sobre os detalhes do trabalho; (3) a este diálogo que é gravado, demanda- se do instrutor a sua transcrição, e posterior comentário a partir das quatro

rubricas definidas por Oddone34; (4) as instruções são formuladas na

segunda pessoa (ODDONE, RE & BRIANTI, 1981; GOUDEAUX & STROUMZA, 2004) (OLIVEIRA, 2007, p. 35-36).

34 A tarefa, os companheiros de trabalho, a hierarquia da empresa e as organizações de classe.

Esses quatro domínios da realidade da empresa definidos por Oddone orientavam as instruções ao sósia (OLIVEIRA, 2007).

O diálogo, oriundo da instrução ao sósia, pode durar mais que uma hora, estando presente o psicólogo ou pesquisador, o grupo de trabalho e um voluntário (instrutor), que dará as instruções ao psicólogo ou pesquisador (MUNIZ-OLIVEIRA, 2015).

O exercício de instrução ao sósia possibilita o que Clot (2007) denomina autoconfrontação, que se realiza em dois momentos: primeiramente, o sujeito confronta-se consigo mesmo pela mediação do sósia, que faz perguntas a respeito de sua atividade que ele mesmo não se faria, da mesma forma que “formulamos a uma cultura alheia novas perguntas que ela mesma não se formulava” (BAKHTIN, 1997, p. 368). Com base neste autor, Clot (2007) confere à exotopia papel importante no processo de compreensão das atividades dos sujeitos. Busquemos visualizar melhor esta questão recorrendo ao próprio Bahktin.

Bakhtin (1997) fala da exotopia (distância) como o instrumento mais poderoso da compreensão, em se tratando de cultura. O autor elucida que, se, de um lado, em um primeiro momento, é importante que vejamos o mundo pelos olhos da cultura alheia (que nos “transplantemos para esta cultura”); em um segundo momento, é fundamental que tomemos distância, pois “a cultura alheia só se revela em sua completitude e em sua profundidade aos olhos de outra cultura (e não se entrega em toda a sua plenitude, pois virão outras culturas que verão e compreenderão ainda mais)” (BAKHTIN, 1997, p. 368).

Cabe ao sósia colocar “obstáculos a fim de aprender mesmo aquilo que o outro não previu lhe ensinar” (CLOT, 2007, p. 149). Então, embora haja uma proposição que dá início ao diálogo estabelecido entre a sósia e a professora- instrutora, é papel da sósia “imaginar certas situações” (CLOT, 2010b, p. 209). Como exemplo dessas situações, temos: “Y.C. – Então... estou atrasado 5 minutos, eu encontro o Reitor. O que devo fazer?” (CLOT, 2010b, p. 212).

Em um segundo momento, o sujeito se confronta com o texto transcrito, com base no qual escreve um comentário reflexivo sobre suas instruções. Nessa ocasião, a autoconfrontação se dá pela “mediação de uma atividade de escritura que é ela mesma, eventualmente, endereçada a outros que não o sósia” (CLOT, 2007, p. 144).

Esses procedimentos para a realização dos exercícios de instrução ao sósia nos remetem ao que Nouroudine (2002) diz a respeito do diálogo enquanto recurso para exteriorizar a linguagem interior. Para o autor, o processo de exteriorização e

de explicitação da linguagem e do pensamento implicados na atividade não se dá de forma mecânica, mas passa por um esforço necessário de distanciamento, de elaboração e de expressão. Nesse sentido, as etapas da instrução ao sósia visam a contribuir nesse processo.

Souza-e-Silva (2002), referindo aos aportes metodológicos da Clínica da Atividade, afirma que estes possibilitam perceber nas atividades de trabalho outros sentidos até então inacessíveis. Referindo-se aos procedimentos de autoconfrontação35, a autora explica que

dá-se nesse momento a distância não mais entre o trabalho prescrito e o real, mas entre o próprio real pensado, isto é, o modo pelo qual os agentes imaginavam fazer o próprio trabalho, e o real vivido, os procedimentos aos quais recorrem, efetivamente, no cotidiano (SOUZA-E-SILVA, 2002, p. 74).

Os métodos desenvolvidos pela Clínica da Atividade, e, aqui, reforçamos a importância da instrução ao sósia, são fundamentais para acessar o que não é facilmente observável, a atividade. Diferentemente do trabalho, que pode ser visto, a atividade “não pode ser tocada com o dedo” (HUBAULT, 1996; CLOT, 1999 apud SAUJAT, 2004).

O duplo nascimento do pensamento – a primeira vez quando se discute coletivamente, renascendo, na atividade individual – é o ensinamento mais importante de Vigotski (CLOT, 2006a). No quadro da Clínica da Atividade, os trabalhadores são solicitados a pensar, e o pensamento se desenvolve na discussão, na confrontação.

Para o autor, os métodos desenvolvidos pela Clínica da Atividade são muito característicos do método indireto que Vigotski desenvolveu em psicologia, “que consiste em tentar se apropriar do objeto pela mediação de outro, por meio do conflito entre as pessoas” (CLOT, 2006a, p. 106). Na Clínica, portanto, o elemento mediador é representado pelo pesquisador, pelo psicólogo interveniente, pelo “outro”, em contexto de diálogo no coletivo.

Finalizamos esta parte recordando que “a contribuição de uma clínica da atividade é, em primeiro lugar, metodológica” (CLOT, 2010b, p. 118). O autor advoga que uma ação transformadora duradoura não pode ser proveniente de um especialista da transformação, não pode ser objeto da intervenção de uma expertise

35 A autoconfrontação simples e a autoconfrontação cruzada são métodos desenvolvidos em Clínica

“externa”. É neste sentido que devemos entender a contribuição metodológica a que Clot se refere, de modo que o trabalho seja um objeto de pensamento no seio dos próprios coletivos de trabalho – daí a implementação de dispositivos metodológicos destinados a tornarem-se instrumentos para a ação desses coletivos.

Guérin et al. (2001) destaca que, em geral, quando o trabalhador (em todos os níveis, do presidente ao operador) é solicitado a falar sobre seu trabalho, o que ele faz, na verdade, é comentar sobre as tarefas que cumpre. Por exemplo, os operadores falam em termos de resultados a obter: “ele embala produtos, ela costura vestidos, ela atende desempregados, ele dirige trens [...]”; também, descrevem os meios que usam: “eu disponho de um estoque de caixas de papelão, bandejas plásticas e uso um rolo de filme de PVC, tenho uma máquina de costura [...]” (GUÉRIN et al., 2001, p. 13).

Assim, os métodos indiretos desenvolvidos em Clínica da Atividade vêm justamente instigar os trabalhadores a falarem além de suas tarefas, fazendo com que eles mesmos percebam sua atividade de trabalho real, ou ainda, o real da atividade.