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Colisão de Direitos e a Sociedade da Informação

CAPÍTULO QUARTO – PRIVACIDADE COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

4.2. Colisão de Direitos e a Sociedade da Informação

Em decorrência da natureza aberta dos direitos fundamentais, conforme demonstrado no item anterior, a qual permite a variação de seu conteúdo, será possível o choque entre os mesmos ou destes com outros bens juridicamente protegidos, resultando no fenômeno da colisão de direitos fundamentais.

A primeira hipótese ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. No segundo caso, há uma colisão entre interesses individuais e interesses da comunidade, reconhecidos constitucionalmente.

Outrossim, insta pontuar a diferença entre conflitos de regras e colisão de princípios, eis que

É dizer, estabelecido o conflito entre duas ou mais regras jurídicas, apenas uma delas pode ser declarada válida e pertencente ao ordenamento jurídico, pois o sistema jurídico não tolera a existência de regras jurídicas em oposição entre si. ... A colisão de princípios, ao revés do conflito de regras que tem lugar na dimensão da validez, acontece dentro do ordenamento jurídico. [...] Vale dizer: não se resolve a colisão entre dois princípios suprimindo um em favor de outro. A colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou importância relativa de cada princípio, a fim de se escolher qual deles no caso concreto prevalecerá ou sofrerá menos constrição do que o outro.198

É oportuno esclarecer que, independente de ser um conflito de regras ou princípios, a solução da colisão entre direitos fundamentais é fornecida pelo intérprete, adotando este critérios como o cronológico, o hierárquico e o da especialidade, os quais não são suficientes para a solução dessas tensões; concretizando o postulado da unidade do ordenamento jurídico, cujo método é mais dinâmico e flexível, podendo, talvez, amparar as infinitas variáveis fáticas que os conflitos podem ostentar199.

Dessa forma, a análise do caso conforme à Constituição é viável, porque esta possui o condão da perpetuidade (permanência no tempo), sendo, portanto, dotada de válvulas – ou melhor, princípios – que permitem a atualização de seus preceitos diante das modificações da sociedade e, assim, a inserção de seus ditames, também, na Sociedade da Informação.

Sabe-se que o ordenamento jurídico positivo não prevê todos os casos e inovações que hão de surgir ao longo dos anos, como o progresso tecnológico e suas conseqüências no mundo jurídico. Por isso, recomenda-se que, ante essa impossibilidade de previsão de casos particulares, o legislador fixe princípios e preceitos gerais, de forma clara e

198 FARIAS, Edilsom. 1996, p. 95-96

199 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris,

precisa. A conseqüência dessa generalidade é, portanto, a flexibilidade da norma, fazendo com que a ordem jurídica se transforme pela interpretação sem a constante interferência do legislador. Dessa forma, convém mencionar, aqui, a lição sustentada por Paulo Sá Elias200 acerca do tema, na qual a letra da lei deve permanecer e apenas o seu sentido se adaptar às mudanças que a evolução opera na vida social Aplicar-se-ão, assim, os mesmos princípios a condições sociais diferentes. O intérprete melhora o texto legal sem lhe alterar a forma, a fim de adaptar aos fatos a regra antiga. Nesse sentido, a interpretação e a aplicação do Direito devem levar em consideração a realidade sociocultural atual para lograr aceitabilidade ou razoabilidade.

De fato, considerar a realidade sociocultural atual para lograr aceitabilidade ou razoabilidade, permite inserir os direitos da personalidade e os fundamentais, como a privacidade, na Sociedade da Informação e, portanto, vislumbrar o conflito entre os mesmos, também, no mundo virtual. É o que se pretende abordar, no item subseqüente, por meio de julgados brasileiros: a colisão de direitos fundamentais como a privacidade e a propriedade, no âmbito cibernético – monitoração de e-mails, a partir da configuração da relação empregatícia, uma vez que, como demonstrado no Capítulo anterior, o correio eletrônico bem serve para exemplificar a violação ao direito à privacidade na Era das Redes.

Do exposto, verifica-se a relevância da atividade do intérprete neste novo meio de incidência dos institutos jurídicos, tornando possível, assim, amparar legalmente esses direitos e redefinir a dimensão dos mesmos diante do caráter estático da norma.

Dessa forma, a fim de se esclarecer a função desempenhada pela interpretação na solução da colisão de direitos, especialmente os fundamentais, faz-se necessária uma breve análise, ainda que superficial e, meramente, elucidativa, da hermenêutica como parâmetro utilizado na atividade do intérprete. Sendo assim, comentar sobre o papel do hermeneuta é

200 ELIAS, Paulo Sá. Os fundamentos axiológicos da hermenêutica. Prática Jurídica, ano II, nº 21,

demonstrar que a norma é viva e dinâmica, uma vez que ele pondera os interesses envolvidos com a finalidade de concretizar a dignidade humana. Ao interpretar uma norma, torna-a concreta. Assim, indispensável é essa atividade na Sociedade da Informação, pois demonstra a prescindibilidade de novas leis, bastando aplicar o modelo tradicional à realidade e possibilitar a dinamicidade ao ordenamento brasileiro.

Convém esclarecer que a hermenêutica201 não soluciona todo e qualquer problema com a precisão das ciências matemáticas. Ela guia o aplicador da lei no sentido de que possa ele determinar, de modo mais satisfatório, o sentido e o alcance das expressões do Direito202, in casu, a privacidade e suas espécies. Ocupa, pois, papel de vital importância no âmbito do Direito ao assegurar a função ôntica do sujeito (relativa ao seu estudo, às suas características) na constituição da regulação jurídica, recuperando o teor essencialmente humanístico que deve permear o direito em todas as sua situações. Objeto, pois, do fenômeno da repersonalização, consubstanciado no Estado Social. A fim de reforçar essa exposição, válido é o entendimento de Paulo Sá Elias203 sobre a consciência hermenêutica. Ao considerar sua historicidade e eticidade, realiza, pois, a vocação axiológica do Direito, fazendo da interpretação um trabalho constante de reconstrução da norma por meio da procura de um sentido eficaz na garantia da dignidade concreta do sujeito para o qual se destina esta norma.

É a hermenêutica jurídica que atribui a responsabilidade ao operador do Direito pela concreção, louvável ou reprovável, da ordem jurídica ou da idéia de direito. Por essa razão, destaca-se que ela não pode ser pensada sem os devidos fundamentos axiológicos ou éticos.

201 É oportuno ressaltar que a hermenêutica não é objeto de análise deste trabalho, tendo sido abordado

superficialmente, apenas, com a finalidade de propiciar um melhor entendimento da atuação do intérprete quando da colisão de direitos.

202 CARVALHO, Íris de. Critérios valorativos da interpretação constitucional. Revista Forense. Ano 81, volume

291, julho/agosto/setembro 1985, p. 177

Compreender a tarefa hermenêutica de forma a solucionar a tensão existente entre o princípio de supremacia do legislador na concretização dos valores constitucionais e a necessidade de garantir os direitos do cidadão é imprescindível. Surge, a partir daí, a preocupação com o princípio da interpretação conforme à Constituição, objeto de análise do Capítulo subseqüente, o qual tem por base a Carta Magna como norma superior do ordenamento, estando, assim, toda a atividade hermenêutica vinculada ao disposto no texto maior da ordem jurídica. Figura, pois, o texto da norma como fundamento e limite do procedimento hermenêutico204.

Observa-se, portanto, que cresce o número dos adeptos em substituir a interpretação da lei pela concretização do direito – ou mesmo a concretização dos valores constitucionais, trocando-se a invocação do passado pela antecipação do futuro.

Após essa sucinta exposição sobre o atual significado da atividade interpretativa, mereceu atenção, pois, sua dimensão constitucional. Cabe ao intérprete, pois, atualizar o conteúdo da Carta Magna. É mediante a interpretação que qualquer disposição normativa se moderniza. Do mesmo modo, os preceitos da Lei Maior se renovam através de cada leitura realizada pelo intérprete, por meio de uma vivificação constante do sentido normativo do dispositivo constitucional em tela. Assim sendo, a interpretação constitucional também tem por finalidade a concretização da Lei Fundamental205.

De fato, a atividade do intérprete necessita de uma base principiológica, como dignidade humana e proporcionalidade, o que possibilitará a dinamicidade do sistema jurídico. Importa, ainda, ressaltar que o princípio da proporcionalidade é um instrumento de realização dos objetivos da Constituição Federal, buscando conter o arbítrio e moderar o exercício do poder, em favor da proteção dos direitos do cidadão. Convém, por fim, destacar

204 SICCA, Gerson dos Santos. A interpretação conforme à Constituição – Verfassungskonforme Auslegung – no

direito brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, ano 36, nº 143, julho/setembro 1999, p. 20

205

CASTRO, Flávia de Almeida Viveiros de. Interpretação constitucional e prestação jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 18

seus subprincípios, segundo Daniel Sarmento206, os quais desempenham essa função, in

verbis:

O subprincípio da adequação preconiza que a medida administrativa ou legislativa emanada do Poder Público deve ser apta para o atingimento dos fins que a inspiraram. Trata-se, sem síntese, da aferição da idoneidade do ato para a consecução da finalidade perseguida pelo Estado.

... O princípio da necessidade ou exigibilidade, por sua vez, impõe que o Poder Público adote sempre a medida menos gravosa possível para atingir determinado objetivo.

... Em outras palavras, a tônica deste subprincípio recai sobre a idéia de que se deve perseguir, na promoção dos interesses coletivos, a menor ingerência possível na esfera dos direitos fundamentais do cidadão.

... Na verdade, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito convida o intérprete à realização de autêntica ponderação.

A fim de captar o sentido de qualquer disposição do texto constitucional deve- se, portanto, ter em mente toda essa série de direitos fundamentais que, acima de tudo, se pretende sejam preservados no âmbito do Estado brasileiro, com base nos princípios e objetivos fundamentais declarados no Título I da Constituição da República207, independentemente do meio de sua incidência, como na Sociedade da Informação.

Por fim, insta salientar, mais uma vez, que essas questões jurídicas atuais são frutos do Estado Social, sendo, portanto, oportuno recordar a afirmação de Nelson Saldanha208 relativa ao assunto, eis que

A consciência do impacto do chamado Estado Social sobre as linhas do Estado de Direito de origem liberal tem estado presente no modo de interpretar certas situações concretas, nas quais entram em colisão o instrumental de ação dos governos e o tradicional elenco dos direitos fundamentais.

206 SARMENTO, Daniel. 2003, p. 87-89

207 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais: teoria e realidade normativa. Revista dos

Tribunais, ano 84, vol. 713, março de 1995, p. 45

208SALDANHA, Nelson. Ordem e Hermenêutica na Constituição. Arquivos do Ministério da Justiça, ano 44. nº