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3 TEORIAS PÓS-COLONIALISTAS, FORMAÇÃO DOCENTE E CURRÍCULO – O PENSAMENTO DECOLONIAL COMO OPÇÃO POLÍTICA E EPISTÊMICA

3.1 Colonialidade: o avesso da Modernidade

Assim como em um bordado, a Modernidade também tem seu avesso, o qual a todo custo ela tentou esconder que é a Colonialidade: “equivalente a matriz o patrón colonial de poder, el cual o la cual es un complejo de relaciones que se esconde detrás de la retórica de la modernidad (el relato de salvación, progreso y felicidad) que justifica la violencia de la colonialidad” (MIGNOLO, 2011, p. 24). Desta forma, a Modernidade e seu avesso constituem o binômio Modernidade/Colonialidade.

Quijano nos explica como ambas se constituíram juntas, uma agindo nos bastidores para a outra brilhar sob os holofotes. E tudo começa com a invenção da América que “se constituyó como el primer espacio/tiempo de un nuevo patrón de

poder de vocación mundial y, de ese modo y por eso, como la primera id-entidad de la modernidad” (QUIJANO, 2000, p. 01). São em nome dos discursos civilizadores que se justificaram todas as formas de violência contra aquelas/es que resistiam a começar a narrar sua história a partir do desafortunado encontro com os europeus e sua lógica exploradora/acumuladora de recursos.

Não é difícil perceber como a identidade da Modernidade ia se tecendo como referência de ser sob nossas vistas. Nossos livros didáticos, por exemplo, importante artefato curricular, geralmente traziam em suas ilustrações pinturas que estabeleciam o lugar e o papel de cada “personagem” retratado na narração de nossa História como: “Desembarque de Cabral" (Imagem 01) do pintor brasileiro Oscar Pereira da Silva32, ou ainda “Primeira Missa no Brasil” (Imagem 02), de Victor Meirelles33.

Fonte: Google Imagens

Por meio destas ilustrações são produzidos discursos imagéticos que expressam a superioridade do invasor, tido como desbravador, descobridor, civilizado, diante dos habitantes nativos curvados, assustados, deslumbrados e passivos, prontos para receber a civilização de além-mar.

Outro aspecto que ainda podemos citar é que estes e outros discursos imagéticos dessa mesma linha contribuíam também para cristalizar as identidades de africanas/os como escravas/os e de indígenas como aquelas/es que não existem mais, uma vez que índio hoje não usa canga e cocar, como nas ilustrações das Imagens 01 e 02.

32 Descobrimento do Brasil, de Oscar Pereira da Silva, disponível em: Google Imagens. 33 Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, disponível em: Google Imagens.

Tais discursos imagéticos reforçam dentro do currículo colonizado/colonizador estereótipos de identidades subalternizadas, influenciando a negação e, até mesmo, diversas outras atitudes racistas para com aquelas/es que se identificassem com eles (os discursos). A matriz ou o padrão de poder, baseada/o na racialização da população mundial e da racionalização como forma de controlar as formas de produzir conhecimento e de classificar o trabalho, tornou-se o mais eficaz e mais duradouro meio de dominação, pois se converteu: “en el modo básico de clasificación social universal de la población mundial”, naturalizando a inferioridade dos povos conquistados. Tal matriz ou padrão de poder é a Colonialidade:

Coloniality, instead, refers to long-standing patterns of power that emerged as a result of colonialism, but that define culture, labor, intersubjective relations, and knowledge production well beyond the strict limits of colonial administrations. Thus, coloniality survives

colonialism. It is maintained alive in books, in the criteria for

academic performance, in cultural patterns, in common sense, in the self-image of peoples, in aspirations of self, and so many other aspects of our modern experience. In a way, as modern subjects

we breath coloniality all the time and everyday34 (MALDONADO- TORRES, 2007b, p. 131 – Grifo nosso).

Se respiramos a colonialidade cotidianamente é porque, como nos mostra Quijano (2005), as identidades se tornaram identidades “raciais” e passaram a servir para classificar e dividir a sociedade, “sendo a raça branca a dos dominantes/superiores ‘europeus’ e os índios e negros, as raças dos dominados/inferiores ‘não europeus’” (FERREIRA, 2013, p. 39). É por isso que Mignolo (2007, p. 32) vai afirmar que “la ‘colonialidad’, entonces, consiste en develar la lógica encubierta de que impone el control, la dominación y la explotación, una lógica oculta tras el discurso de la salvación, el progreso, la modernización y el bien común”.

Rita Segato e Paulina Álvarez (2016) nos mostram que tal racialização da sociedade se perpetuou e ainda que os sujeitos distribuídos nos níveis, lugares e papéis subalternizados da estrutura de poder não carreguem traços tão evidentes de

34 Colonialidade se refere a um antigo padrão de poder que emerge como resultado do colonialismo moderno, porém em vez de estar limitado a uma relacão estrita às administrações coloniais, refere- se à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se definem. Assim, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Mantem-se viva nos livros didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, nos padrões culturais, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspitações de si mesmos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna. De certa forma, respiramos a colonialidade na modernidade o tempo todo e todos os

sua colonização; pelo olhar do colonizador, ele sempre será visto como subalternizado:

Aunque nuestros padres o nuestros cuatro abuelos hayan nacido en Europa, el ojo del Norte mira nuestra corporalidad y nuestra situación geopolítica, la posición de nuestros cuerpos en la historia. Eso es la raza, no algo sustantivo del organismo, de la persona, sino una posición en un sistema histórico de relaciones de dominación, es la historia leída en el cuerpo (SEGATO; ÁLVAREZ, 2016, p. 2012-3).

Segato e Álvarez nos ajudam a compreender como a formação de tais identidades raciais acaba por produzir uma hierarquia social/racial, ainda que não carreguemos os traços que serviram para categorizar as ditas “raças” humanas; elas foram forjadas apenas para situar a posição histórica do dominado enquanto tal e para que se mantenha tal conformação.

Fanon também nos fala sobre o ser e sentir-se “estrangeiro na própria terra”, ou seja, ser e sentir-se ligado a hábitos e valores ancestrais que são compelidos a ser abandonados tornando-lhe alheio a si próprio e aos valores culturais de sua realidade ao abraçar outra realidade que não lhe aceita completamente:

Enquanto o negro estiver em casa não precisará, salvo por ocasião de pequenas lutas intestinas, confirmar seu ser diante de um outro. Claro, bem que existe o momento de “ser para-o-outro”, de que fala Hegel, mas qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada (FANON, 2008, p. 103).

O objetivo de situar a posição histórica dos diferentes sujeitos que a constituem só é alcançado por meio da articulação de vários eixos da Colonialidade. Não bastou criar a matriz ou padrão de poder, mas se fez necessário ensiná-la/o, fez-se necessário que as pessoas acreditassem na hierarquização racial imposta. A Colonialidade, dessa forma, vai assumindo diversas faces e se dividindo em eixos que possuem sentidos (sociais, culturais, epistêmicos, existenciais, ecológicos e políticos), os quais se relacionam, complementam-se, reconfigurando a matriz ou o padrão de poder estabelecido. No Quadro 7 destacamos seis desses eixos e apresentamos suas características:

Quadro 7 - Eixos da Colonialidade

Eixo Definição Materialidade

Colonialidade do Poder Sistema de classificação social da Manifesta-se através da instrumentalização e mecanização

(QUIJANO, 2005, 2007)

população mundial baseada na ideia de “raça”. De acordo com esta construção mental

se formam identidades sociais e se desenvolve

uma hierarquia social classificando de superior a inferior os

brancos, mestiços, índios e negros.

dos trabalhos/conhecimentos e manutenção da lógica de consumo.

Colonialidade do Saber (QUIJANO, 2005;

GROSFOGUEL, 2007a)

É tomar como única perspectiva de conhecimento o eurocentrismo, ao passo que descarta os

conhecimentos e as racionalidades epistêmicas que não sejam a dos homens brancos europeus ou

europeizados. O eurocentrismo, de acordo com Quijano (2005), é um processo produzido pela elaboração intelectual da Modernidade que demonstra o caráter do padrão mundial de poder ao estabelecer uma perspectiva e um modo de produzir conhecimento, em contraposição às formas outras: “Sua constituição ocorreu associada à específica secularização burguesa do pensamento europeu e à experiência e às necessidades do padrão mundial de poder capitalista, colonial/moderno, eurocentrado, estabelecido a partir da América” (2005, p. 247) Manifesta-se, principalmente, no estabelecimento de epistemes/conhecimentos de um locus de enunciação de conhecimentos (eurocentrismo) e da

inviabilização das outras formas de saber que são deliberadamente silenciadas (saberes dos povos indígenas, quilombolas, do campo, das mulheres etc.). Desta forma, as epistemes válidas estabelecidas pelo

padrão de dominação servem para inferiorizar e desqualificar as outras

formas de produção de conhecimento. Colonialidade do Ser (MIGNOLO, 2005b; MALDONADO- TORRES, 2007b) Estabelece um padrão de SER na intenção de promover a desumanização da pessoa outra, ou seja, aquela que se afasta do

padrão etnocêntrico

Manifesta-se na ação baseada numa lógica

masculina/branca/heterossexual/cristã europeia ou europeizada para definir

o padrão de referência. Assim, invisibiliza e inferioriza todas as diferenças humanas, impondo aos

estabelecido pelos colonizadores europeus.

“outros” (negros, indígenas, ciganos, povos do campo, mulheres, pessoas

homossexuais e transexuais) a condição de não ser.

Biocolonialidade do